O Santuário de Fátima é, em agosto, ponto de chegada de muitos emigrantes que regressam ao seu país. A estes juntam-se também peregrinos de várias partes do mundo. Apesar da pandemia, tal não foi excepção: por volta das 11h00, o recinto tinha uma lotação de 90% do previsto, estando encerradas sete portas, disse fonte do Santuário ao SAPO24.

Tal como na noite de 12 de agosto, também hoje as palavras do cardeal jesuíta Jean-Claude Hollerich se dirigiram em especial aos migrantes, tomando como mote o Evangelho escutado — que dá o tema à Jornada Mundial da Juventude que acontece em 2023, em Lisboa: "Maria levantou-se e partiu apressadamente".

No início da sua intervenção, o cardeal começou por interpelar os ouvintes. "Será que acreditamos mesmo na ressurreição de Jesus e na ressurreição dos mortos? Vós dir-me-eis: talvez, com certeza, pois, de outro modo, não estaríamos aqui em Fátima, mas em nossa casa".

"Acreditar não significa pensar que alguma coisa seja verdadeira sem que se possa provar. Acreditar na ressurreição é mais do que isso; acreditar na ressurreição é uma força de vida, uma força que nos incute esperança quando, ao nosso redor, a esperança morreu. Crer na ressurreição, quer dizer, crer, com todo o nosso coração, que Deus pode transformar tudo. Mesmo tudo!", afirmou.

Remetendo para o Evangelho, Jean-Claude Hollerich apontou o exemplo de Maria — que pode personificar os medos e anseios de tantas pessoas.

"Maria, grávida, consola sua prima Isabel, também ela à espera de um filho. Um encontro a quatro: Maria, Isabel, João Baptista e Jesus. Jesus permanece o centro vital daquele encontro; ele manifesta a sua presença a João Baptista; Maria fica perturbada e canta o louvor profético do Magnificat", começou por dizer.

"Maria que é jovem e pobre, está grávida sem ser casada, tem todas as razões para estar muito transtornada; o que irá fazer da sua vida? Como vai conseguir proteger e alimentar o bebé que vai nascer? Ela percebe que naquele momento tudo mudou, que vai ser afinal o seu menino a protegê-la, a alimentá-la e a dar sentido à vida dela".

Assim, sendo Maria "um modelo de vida", esta "muito provavelmente, durante o caminho rumo a casa de Isabel, elevou orações muito concretas: orações relativas ao concreto da vida quotidiana... o dinheiro, a saúde, a família, o trabalho, entre outras", salientou o jesuíta.

"Podemos imaginar Maria muito preocupada com a sua vida a pedir ajuda a Deus. Estou certo de que muitos de nós — peregrinos de Fátima — viemos a este Santuário, com o mesmo género de orações: pela saúde dos familiares, os problemas do trabalho, a preocupação com o sucesso escolar dos filhos e netos, as incertezas da emigração, entre outras", frisou.

Por isso, disse o cardeal, "também nós, como Maria, temos a feliz oportunidade de, agora e aqui — neste lugar sagrado — reencontrar Jesus na Palavra de Deus, nesta solene Eucaristia e na Sagrada comunhão. Este encontro encerra uma força de mudança nas nossas orações: elas são invadidas pelo sentimento da presença real de Jesus, e a nossa oração de súplica pode atingir a oração de louvor".

PAULO CUNHA /LUSA

Maria e o exemplo do serviço — que é pedido também a todos os emigrantes

Contudo, Maria não é apenas mulher de oração: é também de mulher de serviço aos outros. "É o Espírito que reza nela, mas ao mesmo tempo é a mulher Maria de Nazaré que reza com toda a sua liberdade, com toda a sua força. Ela, mulher, reza integrada na sua particular experiência humana. Ela não se fica apenas pela oração, mas está presente para ajudar concretamente a sua prima, ela está lá para se colocar ao inteiro serviço do outro", lembrou o cardeal.

Associando este facto à história dos emigrantes, Jean-Claude Hollerich referiu que "são numerosas as famílias portuguesas que vivem este espírito de serviço".

"Recordo-me de um bom amigo português que, com uma vida tocada pelo cancro e marcas da doença no seu corpo, encontrou no amor à esposa e aos seus filhos, a força última para finalizar os detalhes da sua casa. Na verdade, Ele ofereceu o amor através do trabalho e da sua atitude de serviço. Se, como Maria, queremos atingir a consolação da esperança, temos de nos colocar ao serviço dos outros, começando pela família", disse, deixando depois um pedido.

"Apelo-vos a alargar este espírito de serviço aos vossos vizinhos, às pessoas com quem vos cruzais habitualmente, aos vossos amigos. Porque não roubar tempo ao tempo para visitar os irmãos doentes ou idosos? A verdade é que a fé sem espírito de serviço não passa de um sentimento... e os sentimentos são passageiros", atirou.

Desta forma, salientando que "a atitude de serviço pode ser posta à disposição da Igreja", o cardeal afirmou que "as paróquias precisam de homens e mulheres, jovens e adultos, dispostos a servir o Evangelho e o próximo".

"Na catequese não é necessário ter um doutorado em teologia, mas uma fé viva é bem mais importante e fecunda na transmissão da fé aos mais novos ou adultos; nos grupos de solidariedade cristã são precisas pessoas abertas que favoreçam o acolhimento dos refugiados e migrantes; por que não servir a Igreja, por exemplo, no acolitado ou noutros ministérios laicais?", exemplificou.

"Irmão, Irmã: a Igreja precisa de ti! Caros amigos, portugueses, caros emigrantes, caros refugiados, com as vossas mãos, trabalho, suor do rosto, inteligência, sacrifício das vossas famílias, tendes ajudado a construir a riqueza económica e cultural dos países que, por esse mundo fora, vos acolhem", reforçou, garantindo que "as comunidades portuguesas são um sinal de esperança para a Igreja" no Luxemburgo, realidade que conhece mais de perto.

"Gosto muito de ouvir dizer sobre mim: 'o senhor é o nosso bispo'! E de facto, sendo bispo de todos, sou também bispo dos portugueses e de outros migrantes que compõem 48% da população do meu país. Somos um laboratório de comunhão e interculturalidade", disse.

Todavia, deixou ainda um apontamento que encerra em si um desafio: "a Europa hoje vive longe de Deus, esqueceu-O! Com o vosso espírito de serviço, com a vossa fé e a vossa religiosidade procurai continuar a ajudar os países que vos acolhem para viver a não perderem a esperança. Jesus ressuscitou verdadeiramente! Tudo pode mudar", rematou.

Além das palavras para os emigrantes, esta celebração de agosto destaca-se pela oferta de trigo, uma iniciativa que começou há 81 anos pela Ação Católica de Leiria. Segundo dados apresentados pelo Santuário, em 2020 foram entregues 4.973 quilos de trigo e 504,5  quilos de farinha, o que foram transformados em 7.000 hóstias medias, 50 grandes, 371.300 partículas e 30 para celíacos, utilizadas nas 2.784 celebrações que ali ocorreram.

EPA/PAULO CUNHA

Outro ponto alto das celebrações é, habitualmente, a palavra aos doentes — que, mais uma vez, devido à pandemia, não assinalaram a sua presença na galeria do recinto. Porém, Eugénia Costa Quaresma, da Obra Católica Portuguesa de Migrações, deixou-lhes uma mensagem antes do final da missa. "O meu coração reza contigo que te abeiras do Senhor em busca de sabedoria, para aceitar os factos que não podes mudar, aceitar a vulnerabilidade como nova condição transitória ou prolongada, para tomar uma decisão vital", disse. "Louvai o Senhor que levanta os fracos – é a oração que quero rezar contigo e por isso me incluo!".

"Hoje louvo o Senhor por cada um de vós que na vulnerabilidade da doença dão testemunho de comunhão e no silêncio se convertem em modelo de santidade, pois à semelhança da Santa Jacinta oferecem o seu sofrimento a Deus e sorriem à vida", afirmou.

"Hoje aqui neste Altar do mundo, no colo da mãe, peço à nossa Senhora Consoladora dos Aflitos, Nossa Senhora do Rosário, que interceda por cada um de nós e nos ajude a viver o sofrimento e o sacrifício com o sentido que o Senhor mais anseia: um coração disponível para se compadecer, converter e amar", rematou.

Uma "fraternidade universal multicolor"

Por sua vez, também D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, dedicou algumas palavras a todos os presentes e a quem acompanhou a celebração através dos meios de comunicação social.

"Esta peregrinação de agosto reveste-se de particular encanto, ternura e emoção, precisamente porque é a peregrinação dedicada aos irmãos e irmãs emigrantes e refugiados que hoje acorrem aqui como filhos que vêm à casa da Mãe, que a querem saudar e que se querem sentir mais próximos dela e vêm agradecer e invocar a sua proteção", começou por dizer.

"A mim compete-te dirigir-vos uma palavra de saudação, de acolhimento e boas-vindas. Quanto desejaria, neste momento, poder estar fisicamente próximo de cada um e de cada uma de vós aqui presentes e poder trocar convosco um gesto, uma palavra de afeto pessoal. Como é fisicamente impossível, até por causa da pandemia, então abraço-vos espiritualmente: um grande abraço do coração, um abraço de amizade", sublinhou.

Referindo que a peregrinação de agosto é uma "experiência viva e concreta daquela fraternidade universal multicolor que todos somos chamados a construir, através do intercâmbio na riqueza de povos e culturas, na harmonia e na paz entre todos", D. António Marto lembrou que em Fátima "sentimo-nos todos irmãos e irmãs".  "É belo fazer esta experiência aqui no Santuário", disse.

O bispo de Leiria-Fátima afirmou ainda, na sua intervenção, que "a nossa oração é universal e torna o nosso coração universal também", pelo que é possível "construirmos juntos o futuro de justiça e paz do mundo" — sendo essa "uma graça particularmente própria desta peregrinação", devido à junção de peregrinos de diferentes locais naquele que é considerado o Altar do Mundo.

Lembrando que estes foram, também, "alguns dos tópicos que o presidente da celebração ajudou a meditar e a concretizar nas vidas pessoas, familiares e sociais", D. António Marto deixou elogios ao cardeal Jean-Claude Hollerich.

"Como arcebispo do Luxemburgo e presidente da comissão das conferências episcopais da União Europeia, ele tem-se demonstrado um grande defensor da dignidade e dos direitos dos migrantes e dos refugiados — e por isso merece aqui o nosso reconhecimento", apontou o bispo português.

"Além disso, é um grande devoto de Fátima: sempre que pode vem aqui. E é um grande amigo das comunidades portuguesas no Luxemburgo e grande amigo de Portugal. Senhor cardeal, em nome de todos os peregrinos, em nome do Santuário de Fátima e em meu nome pessoal, eu quero dizer-lhe, do fundo do coração, um agradecimento pela sua presença entre nós, pela presidência da peregrinação e pela mensagem tão simples, mas tão profunda e tão rica, que nos deixou nas homilias de ontem à noite e de hoje. Muito e muito obrigado", agradeceu.

Cumprindo a tradição, D. António Marto não poderia deixar de se dirigir aos peregrinos mais pequenos presentes no recinto. "Caros amiguitos e amiguitas, vi que estais aqui em grande número, vi nos vossos olhos a alegria e o encanto com que olháveis para a imagem de Nossa Senhora quando ela passava, uns ao colo do pai ou da mãe, outros já mais crescidos com o telemóvel a tirar uma fotografia à imagem. Eu, daqui de cima, quero enviar-vos uma saudação cheia de carinho, de afeto, de estima e de amizade por cada um e cada uma de vós", frisou.

No final da celebração, ao som do cântico do adeus e do repique dos sinos, todos os presentes — miúdos e graúdos — repetiram o gesto simbólico que marca o encerramento da peregrinação aniversária: lenços brancos serviram para acenar na despedida, entre a certeza de muitos de que, se a vida permitir, ali voltam a estar pelo menos no próximo ano.