A justiça tomou de assalto a atualidade. Primeiro, foi o anúncio de que o Ministério Público entregou o recurso relativamente à decisão instrutória do juiz Ivo Rosa na Operação Marquês. Depois foi a revelação de que João Rendeiro não se encontrava em Portugal - e que não ia regressar - no dia em que foi condenado a uma pena efetiva de três anos e seis meses de prisão, num processo por crimes de burla qualificada, e a poucos dias de ter de se apresentar em tribunal  para ouvir as novas medidas de coação a que será submetido no âmbito de um outro processo em que foi condenado a 10 anos de prisão.

Depois, foi o anúncio da condenação, na terça-feira, de João Rendeiro… a que se seguiu um anúncio, pouco tempo depois, de que este não só não se encontrava no país como não tencionava voltar.

Vamos por partes.

Como é que a Procuradoria-Geral da República está a tentar inverter a decisão do juiz Ivo Rosa sobre José Sócrates e os outros arguidos na Operação Marquês?

O recurso do MP deu entrada na instância central criminal na terça-feira, com o intuito de que “o Tribunal da Relação de Lisboa reverta a decisão instrutória da não pronúncia” dos factos que constavam na acusação, que tem o ex-primeiro-ministro José Sócrates como principal arguido. “No essencial”, o MP quer que seja levado a julgamento aquilo que estava na acusação, observando que a não pronúncia incidiu sobre “quase tudo”.

O que significa quase tudo? Nunca é demais recordar. A instrução do processo Operação Marquês durou mais de dois anos e teve decisão instrutória em 9 de abril de 2020, tendo Ivo Rosa determinado que, dos 31 crimes de o ex-primeiro ministro estava acusado, seria julgado por três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos. Dos 28 arguidos do processo, foram pronunciados cinco: o empresário Carlos Santos Silva, o ex-presidente do BES Ricardo Salgado, o antigo ministro Armando Vara e o ex-motorista de Sócrates João Perna, este último por posse ilegal de arma. Ficaram ilibados na fase de instrução, entre outros, os ex-líderes da PT Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, o empresário Helder Bataglia e o ex-administrador do Grupo Lena Joaquim Barroca.

No recurso de mais de 1.800 páginas, a que a agência Lusa teve acesso, os procuradores dizem não poder aceitar a apreciação que o juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal “fez sobre a atividade de recolha de prova, sobre a congruência da acusação, sobre a leitura dos indícios recolhidos nos autos e sobre a interpretação jurídica”, considerando que aos factos foi dada uma “sequência de forma viciosa e tendenciosa”.

O MP critica a agressividade da decisão instrutória, e considera que o juiz manifestou desprezo em relação à acusação, sendo a principal expressão disso as “circunstâncias de a decisão instrutória ter omitido os factos relacionados com os movimentos financeiros, que ocupam uma parte significativa da acusação”.

Na mesma argumentação, “a decisão instrutória deturpa a conjugação de indícios que suporta muitas das imputações realizadas, optando a mesma decisão por atender a indícios isolados ou desinseridos das suas circunstâncias, formatando-os para justificar uma decisão de não indiciação e consequentemente de não pronúncia”, refere o recurso.

O Ministério Público critica ainda que muita da prova recolhida, com base nos pedidos de informação bancária e cartas rogatórias, tenha sido dada como “factos inúteis” pelo juiz de instrução, sendo “integralmente omitidos e desconsiderados”.

Em contraponto, o MP reitera que os factos da acusação “refletem a evolução da recolha da prova e a identificação de um sentido comum para todos os movimentos financeiros detetados, face à sua contemporaneidade com negócios, contratos e operações bancárias que envolveram entidades favorecidas no seu relacionamento com o Estado”, nomeadamente o grupo Lena, o Grupo Espírito Santo, os acionistas do empreendimento de Vale do Lobo, vincando que “as formas assumidas por esse favorecimento tiveram sempre a presença de José Sócrates”.

Segundo o recurso, a que a agência Lusa teve hoje acesso, e que será analisado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, foi através de personagens de proteção que foram recebidos os pagamentos das vantagens indevidas, tendo sido identificados planos para fazer circular fundos e para os fazer chegar, “de forma oculta ou justificada diretamente ou diluída no pagamento de despesas” à José Sócrates.

Outro dos exemplos mais críticos do recurso do MP visa Carlos Santos Silva e José Pinto de Sousa, primeiro do ex-primeiro-ministro.

Em relação ao primeiro, ao invés do entendimento do juiz, os procuradores consideram que a subserviência de Carlos Santos Silva a Sócrates leva a que o primeiro seja utilizado para o recebimento de montantes, correspondentes a vantagens indevidas, sem que o mesmo tenha qualquer tipo de proximidade com corruptor ativo, “como acontece" quanto ao arguido Ricardo Salgado e ao GES [Grupo Espírito Santo].

“O arguido Carlos Santos Silva não se encontra assim, do lado ativo da corrupção, como se evidencia claramente nos casos das vantagens pagas com origem no Grupo Vale do Lobo ou com origem em entidades integradas de facto no GES”, realça o MP, numa posição oposta à do juiz.

No recurso é criticado que o juiz num “ato de fé cego” tenha acreditado e tomado decisões com base em testemunhos, transformando os juízos sobre a prova “em meras proclamações intuitivas, baseadas apenas nas perceções íntimas do julgador”.

“A decisão instrutória revela ser o fruto de uma apreciação dos indícios suportada na intuição e em crenças pré-adquiridas, revelando incapacidade de uma análise cruzada e global dos indícios, o que implicou o cometimento de erros lógicos e mesmo o cair em falsidades empíricas”, lê-se no documento.

Neste contexto, o MP alega que o magistrado desvalorizou indícios e depoimentos, utilizando, para o efeito, expressões tais como “por si só” (repetida 50 vezes ao longo do texto), “que nos permita” (repetida 30 vezes) e “não é possível” (utilizada 182 vezes) e, de modo a forçar respostas negativas para questões de suficiência da prova, repete, pelo menos por 20 vezes, a conclusão de a prova ser “manifestamente insuficiente”.

Outras das críticas a Ivo Rosa residem em que este tenha desvalorizado o valor probatório de alguns indícios da acusação, nomeadamente os interrogatórios dos arguidos e os circuitos financeiros.

A título de exemplo, entende o MP que não é atribuída a devida ponderação aos interrogatórios judiciais de Carlos Santos Silva e Joaquim Barroca, tendo este último, em declarações espontâneas admitido ter pago apenas um montante total de 1,8 milhões de euros ao empresário, como compensação extraordinária pelo seu alegado contributo na internacionalização do Grupo Lena, contrariando Carlos Santos Silva que diz ter recebido oito milhões.

Se o juiz “tivesse compreendido a lógica negocial entre os arguidos e o narrativo da acusação teria constatado que o que se indicia é a existência de uma soma de entendimentos parcelares”, incluindo o acerto entre Sócrates e Carlos Santos Silva para o estabelecimento de um novo circuito financeiro para receber futuras vantagens, a que se seguiu o acordo entre o empresário e Barroca “para que este último deixasse passar fundos pela sua conta”.

Além de Carlos Santos Silva, o MP aponta também como personagens de proteção do ex-primeiro-ministro o seu primo José Pinto de Sousa, considerando que estes terão servido para “diluir, esconder, justificar e até distribuir”, a obtenção de vantagens ilícitas através de contratos e negócios forjados, mas com a aparência de conduta comercial e pessoal normal daquele empresário.

Onde anda José Rendeiro?

João Rendeiro foi condenado na terça-feira a uma pena efetiva de três anos e seis meses de prisão, num processo por crimes de burla qualificada.  Na origem deste julgamento está a queixa do embaixador jubilado Júlio Mascarenhas que, em 2008, investiu 250 mil euros em obrigações do BPP, poucos meses antes de ser público que a instituição liderada por João Rendeiro estava numa situação grave.

Também neste processo estavam acusados os ex-administradores Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital. O primeiro foi condenado a três anos de prisão e o segundo a dois anos e seis meses de prisão.

O tribunal decidiu que os ex-gestores do BPP terão ainda de pagar 225 mil euros por danos patrimoniais e 10 mil euros por danos morais a Júlio Mascarenhas.

No entanto, esta não é a maior dor de cabeça para o antigo banqueiro. Em maio deste ano, o tribunal condenou Rendeiro a 10 anos de prisão efetiva, num processo em que foram ainda condenados Salvador Fezas Vital a nove anos e seis meses de prisão, Paulo Guichard a também nove anos e seis meses de prisão e Fernando Lima a seis anos de prisão.

As condenações foram pelos crimes de fraude fiscal, abuso de confiança e branqueamento de capitais e resultam de um processo extraído do primeiro megaprocesso de falsificação de documentos e falsidade informática.

João Rendeiro deveria marcar presença em tribunal para conhecer as medidas de coação esta sexta-feira, dia 1 de outubro, mas não está em Portugal. Em boa verdade, ninguém sabe do paradeiro do antigo gestor do BPP. "Ninguém" é naturalmente uma força de expressão. Alguém saberá, a justiça portuguesa é que não.

Depois de Rendeiro ter confirmado ao SAPO4 que estava fora do país e que não tencionava voltar, recorreu ao seu blogue, Arma Crítica, para revelar que já pediu ao advogado para comunicar a decisão à justiça portuguesa, afirmando que se tornou “bode expiatório de uma vontade de punir os que, afinal, não foram punidos”.

No mesmo texto, João Rendeiro lembra que já num outro processo em que tinha sido condenado a pena suspensa por falsificação de documentos e falsidade informática o Tribunal da Relação acabou por tomar uma “decisão inesperada” ao reverter a pena para oito anos de prisão efetiva.

“É uma pena manifestamente desproporcionada, em que verifiquei ter sido condenado em função de um critério dito de prevenção criminal geral por virtude dos escândalos bancários que não se verificavam à data dos factos e não poderiam retroagir contra mim. Tornei-me bode expiatório de uma vontade de punir os que, afinal, não foram punidos”, escreve.

Ainda no blogue, o antigo gestor diz que se sente injustiçado pela justiça portuguesa e que vai tentar que “as instâncias internacionais avaliem o modo como tudo se passou”.

Quanto ao processo de 2006, alega que recorreu tanto para o Supremo Tribunal de Justiça como para o Constitucional, mas que lhe foram rejeitadas as suas pretensões, o que considera injusto.

“Ao ter recorrido para o Supremo Tribunal de Justiça, este decidiu que eu poderia recorrer da pena final mas não das penas parcelares que levaram aquele resultado, ou seja, negou-me direito ao recurso. Ao ter-me socorrido do Tribunal Constitucional (TC), este rejeitou-me o recurso alegando que eu não recorria de leis que tivesse por inconstitucionais, sim da decisão judicial que as aplicava”, alega.

Sublinha ainda que o argumento do TC “já se tornou numa forma de tal instância rejeitar larga maioria dos casos que lhe são submetidos”.

“Tenho direito a ser julgado pelos critérios legais que vigoravam à data, tendo direito a recorrer de uma pena inesperada, tenho direito a que se não fuja a considerar contrárias à Constituição as leis que tudo isto permitam”, insiste.

Rendeiro considera ainda que foi vítima de “uma campanha populista de intoxicação da opinião pública e de pressão sobre a justiça” e que, por via deste contexto, num segundo processo, iniciado em 2014 e que na terça-feira conheceu uma decisão, foi convocado agora para comparecer perante um juiz, para que se altere a medida de coação e se proceda à detenção.

“Naturalmente, tornou-se mais fácil seguir condenando, como ontem sucedeu, em que fui condenado a mais três anos e seis meses, quando nada permitia tal condenação”, considera.

Diz que a sua ausência do país é “um ato de legítima defesa contra uma justiça injusta” e que assume a responsabilidade no quadro dos atos bancários que praticou, mas que não se sujeitará a esta situação “sem resistência”.

“Recorrerei às instâncias internacionais, pois há um Direito acima do que em Portugal se considera como sendo o Direito. Lutarei pela minha liberdade para o poder fazer”, conclui o ex-presidente do BPP.

Em resposta, a juíza encarregue pelo processo de João Rendeiro mandou emitir mandados de captura internacional para prender o ex-banqueiro. Segundo a SIC, o despacho seguiu hoje e está a ser formalizado para seguir para várias polícias, entre as quais Europol, Interpol, PSP e Polícia Judiciária.

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