Arrisco dizer que, muito provavelmento, o risco de "batatada" no Parlamento não estava nos primeiros rankings de problemas da Assembleia da República, mas segundo o líder do Chega, André Ventura, está.

Em declarações aos jornalistas no final de uma audiência com Marcelo Rebelo de Sousa no Palácio de Belém, em Lisboa, o deputado disse que transmitiu ao Presidente que "não acautelar, ao não exercer nenhuma influência sobre o presidente da Assembleia da República, a possibilidade de um escalar de conflito físico, verbal e político é real".

Apontando que "o ambiente está muito tenso", o líder do partido de extrema-direita salientou que "ninguém quer ver no parlamento situações como já vimos noutros países do mundo, em que há deputados desentendidos uns com os outros, quase à batatada no hemiciclo".

"Tudo acontece porque o ambiente dentro do hemiciclo, que era onde se deviam dispersar as energias políticas, é abafado e limitado por um presidente da Assembleia da República", alegou.

Na ótica do Chega, "a única figura que pode chamar a atenção de Augusto Santos Silva é Marcelo Rebelo de Sousa" e cabe ao chefe de Estado "garantir que o ambiente serena", tendo pedido a sua intervenção.

O presidente do Chega afirmou também ter ficado com "a sensação" de que o Presidente da República "foi recetivo aos argumentos" que ouviu, "independentemente das ações que venha a tomar", e que "foi sensível à situação de maioria absoluta e de possível mordaça sobre a democracia que o país enfrenta" e também "aos argumentos de cerceamento constante da liberdade".

O que se passa entre o Chega e Augusto Santos Silva?

Para contar devidamente esta história temos de recuar até à tomada de posse de Augusto Santos Silva como Presidente da Assembleia da República, quando o socialista dedicou boa parte da intervenção ao Chega, afirmando que "o único discurso sem lugar aqui há de ser o discurso do ódio. O discurso de negar a dignidade humana seja a quem fora, de insultar o outro só porque é diferente, de discriminar seja qual for o motivo da discriminação, de incitar à violência ou a perseguição".

“Por mais esdrúxulas que pareçam ser, as expressões das ideias dos outros devem ser acolhidas com cortesia. Não é por impedir o outro de se exprimir que alguém fica com a razão. E as ideias próprias não precisam de ser limitadas porque a qualidade dos argumentos não se mede em decibéis. O único discurso sem lugar aqui há de ser o discurso do ódio. O discurso de negar a dignidade humana seja a quem fora, de insultar o outro só porque é diferente, de discriminar seja qual for o motivo da discriminação, de incitar à violência ou a perseguição. A liberdade e a igualdade custaram demasiado para que agora aceitássemos regredir para novos tempos”, completaria.

Mais tarde, foram surgindo algumas divergências. No início do mês, por exemplo, Santos Silva recusou admitir o projeto do Chega que previa penas até 65 anos para crimes de homicídio “de especial censurabilidade ou perversidade”, prevendo um mínimo de 25 anos e máximo de 65.

No despacho que dita a não admissão deste projeto de lei (e que foi divulgado aos jornalistas pelo Chega), o presidente da Assembleia da República considera que "esta iniciativa é semelhante" ao projeto do mesmo partido que pretendia introduzir a prisão perpétua no Código Penal português em alguns tipos de homicídio, e que não tinha antes sido admitido.

Augusto Santos Silva defende que uma pena máxima de 65 anos "traduz, na prática, uma pena de caráter perpétuo (comprometendo, ademais, qualquer propósito de reinserção social após o cumprimento da pena)", uma vez que "a idade para a imputabilidade penal é de 16 anos e a esperança média de vida em Portugal é cerca de 80 anos".

No entanto, a dita 'tensão' aumentou durante o debate sobre a revisão da lei de estrangeiros, quando a bancada parlamentar do Chega saiu do plenário da Assembleia da República a meio de uma intervenção de Augusto Santos Silva, quando este respondia diretamente às críticas de André Ventura, que acusou o presidente do parlamento de não ser isento e representar o PS nas suas funções.

A troca de argumentos começou depois de uma intervenção do líder do Chega, no debate sobre uma proposta do Governo que altera o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, três projetos de lei do Livre e uma iniciativa do Chega.

André Ventura acusou o Governo de querer que os imigrantes “venham de qualquer maneira” para o país e atirou: “Só há uns que nunca têm prioridade no discurso do Governo, os portugueses que trabalharam toda a vida, que pagam impostos e estão a sustentar o país”.

O líder deste partido chegou mesmo a dizer que os imigrantes que chegam a Portugal não são iguais aos portugueses que emigram para outros países, intervenção que gerou muitos protestos por parte de vários deputados no hemiciclo e levou à intervenção do presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva.

“Devo dizer que como presidente da Assembleia da República de Portugal considero que Portugal deve muito, mas mesmo muito aos muitos milhares de imigrantes que aqui trabalham, que aqui vivem e que aqui contribuem para a nossa Segurança Social, para a nossa coesão social, para a nossa vida coletiva, para a nossa cidadania e para a nossa dignidade como um país aberto inclusivo e respeitador dos outros”, declarou, tendo sido aplaudido por deputados de várias bancadas, à exceção do Chega.

André Ventura ripostou, considerando que o presidente do parlamento deveria “abster-se de fazer comentários” sobre as intervenções dos deputados e acusando-o de representar o PS nas suas funções. Nesta intervenção ouviu críticas de outras bancadas, tendo o presidente do parlamento intervindo para pedir aos deputados que ouvissem André Ventura.

Augusto Santos Silva – que foi várias vezes aplaudido por deputados de várias bancadas nas suas intervenções – respondeu que não representa o PS nas suas funções, mas sim “o chão democrático comum desta Assembleia, tal como a Constituição o determina e o regimento o impõe”.

“A minha função mais básica é de assegurar o prestígio da Assembleia da República e sempre que o prestígio da Assembleia da República esteja em causa pode vossa excelência ter a certeza que eu intervirei”, disse, tendo a meio desta intervenção a bancada do Chega abandonado o hemiciclo.

O deputado do Chega Diogo Pacheco de Amorim saiu apenas uns momentos mais tarde, uma vez que entrou atrasado no hemiciclo e só depois se deu conta da saída do seu grupo parlamentar, o que gerou alguns risos de deputados.

O líder da bancada do PS, Eurico Brilhante Dias, pediu a palavra para vincar que se, em março deste ano, os socialistas já tinham a convicção de que Santos Silva era “o melhor para desempenhar essas funções”, atualmente “essa convicção reforçou-se”.

Momentos antes, a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, tinha apresentado aos deputados as linhas gerais da proposta de lei do Governo, salientando “três fundamentos essenciais”.

“Continuarmos a acolher e integrar bem aqueles que aqui chegam. Agilizar procedimentos para os vistos de residência ou de trabalho e garantir a redinamização da nossa economia com mais mão de obra em Portugal, mão de obra essa que também é muitas vezes qualificada”, considerou.

Depois de uma primeira intervenção de Ventura, crítica desta proposta de lei, Ana Catarina Mendes já tinha acusado o líder do Chega de ter um discurso em relação aos estrangeiros de “nós e os outros” e defendeu que o país ganha com a imigração.

“O país ganha porque enriquece na diversidade, o país ganha porque enriquece na cultura, porque enriquece na democracia, porque ganha na economia e em garantir uma sociedade mais justa, mais inclusiva e mais solidária princípios que o senhor deputado desconhece quando faz o discurso dos nós e dos outros”, vincou.

Chega assume “custo” de abandono do plenário que foi feito “de forma pensada”

O Chega defendeu hoje que “a democracia tem de ter espaço para todos os estilos de fazer política”, assumindo que abandonar o plenário em protesto contra o presidente do parlamento foi decidido “de forma pensada” apesar de ter “um custo”.

Após esta saída, o Chega não voltou ao plenário, tendo o presidente do partido, André Ventura, dado uma conferência de imprensa, com todos os deputados atrás de si, para explicar os motivos desta decisão.

“O Chega decidiu hoje abandonar o plenário da Assembleia da República por uma razão que penso que foi evidente, por Augusto Santos Silva ter deixado por um momento de ser presidente da Assembleia da República e se ter tornado deputado do PS. O que tivemos hoje foi algo que nem com Ferro Rodrigues eu assisti”, criticou, referindo que Santos Silva “em vez de passar a palavra ao partido seguinte, decidiu fazer um comentário sobre o projeto de lei apresentado”.

Questionado pelos jornalistas sobre se sair enquanto o presidente da Assembleia da República estava a usar da palavra era pisar um risco na democracia, André Ventura respondeu que o “Chega tem o seu estilo próprio de fazer política”, como os restantes partidos têm o seu.

“Este é o nosso estilo de fazer política, já o sabemos desde a campanha. A democracia tem de ter espaço para todos os estilos de fazer política”, defendeu, considerando que esse estilo é o que “as pessoas conhecem e é isso que querem aqui”.

Confrontado pelos jornalistas sobre a ausência nas votações do último plenário antes de férias, o presidente do Chega defendeu que “em todas as votações é importante estar”, mas considerou que “há momentos na vida e na história que acima de tudo é importante marcar posição e honrar” quem elegeu o partido.

“E aqueles que nos elegem hoje, ao verem o comportamento de Santos Silva, queriam um ato de censura forte. Não o fizemos de forma leve nem o decidimos, em conjunto com a liderança da bancada e em total solidariedade com o grupo parlamentar, de forma leviana. Decidimos de forma pensada e com custo e sabendo que isto tem custo”, enfatizou.

No mesmo dia, à noite, em entrevista à RTP2, o líder do parlamento sublinhou dirigir os trabalhos “no cumprimento das obrigações constitucionais e regimentais”, assinalando a “colaboração de todos os grupos parlamentares” e recusando “problemas” em relação ao partido presidido por André Ventura, que naquele dia tinha abandonado o hemiciclo em protesto contra Santos Silva durante o debate sobre a revisão da lei dos estrangeiros.

“Entendo que defender o prestígio da AR passa também por evitar que o discurso de ódio repercuta na AR. Portanto, tenho feito observações de acordo com as minhas obrigações regimentais sempre que os deputados se excedem, recorrem a injúrias ou caem na tentação de afirmações xenófobas. Nessas circunstâncias, limito-me a assinalar que o entendimento do parlamento português é completamente diverso”, afirmou.

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