Há três anos vinha sendo noticiado, com diferentes graus de intensidade, que a região de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, estava envolta em conflitos armados de grande violência, motivados pelas ações de grupos insurgentes.

Se as notícias que a muito custo vinham sendo reportadas pelos jornalistas no terreno desde 2017 não pareciam motivar grandes alterações à situação vivida nesta região, os ataques a que a vila de Palma foi sujeita no dia 24 podem ter, como referiu ontem o Público, constituído um ponto de viragem na forma como Portugal e o mundo encaram esta tragédia que se vem a arrastar.

O que explica a situação nesta região de Moçambique? Conforme tentou explicar o SAPO24 no início do ano, há uma conjuntura particularmente delicada que desembocou na violência que se vive em Cabo Delgado. Desde os conflitos étnicos que há muito borbulhavam na região — agudizados pela entrada do jihadismo em cena — à sua pobreza endémica, passando pelo seu cariz remoto e de fracos acessos ao centro do país pelas suas riquezas naturais que tardam em trazer frutos para a população local mas que abrem o apetite a atores menos idóneos, nenhuma destas causas explica o problema por si só, mas sim todas elas.

Não obstante os alertas das ONGs no local e das tentativas da comunidade internacional de mover influência para prestar auxílio humanitário e militar, os apelos têm esbarrado num Governo moçambicano acusado de tentar minimizar o caso e até de recorrer a empresas de segurança também elas sob suspeita de violar sistematicamente direitos humanos. Como consequência, a situação só tem piorado: se no início de 2020 havia cerca de 90 mil deslocados, hoje o número chega perto dos 700 mil e há, pelo menos, mais de duas mil mortes contabilizadas.

No entanto, os ataques iniciados no dia 24 em Palma por autoproclamados militantes do Estado Islâmico ultrapassaram o novo limiar por vários favores:

  • A escala do ataque armado envolveu centenas de terroristas e obrigou às forças de segurança no local a bater em fuga. Ontem, o Estado Islâmico reivindicou o controlo de Palma, e os deslocados da vila fugiram em todas as direções: alguns encontram-se nas praias à espera de apoios, outros fugiram a pé até à Tanzânia (que fica a 50 quilómetros a norte) e outros fugiram para sul para a cidade de Pemba;
  • O ataque afetou o projeto de extração de gás natural liderado pela francesa Total, sendo este o maior investimento privado em África, estando na ordem dos 20 mil milhões de euros. Uma empresa portuguesa a trabalhar num dos projetos de gás em Afungi, nas imediações de Palma, foi obrigada a retirar os seus trabalhadores.

Desde que começaram a chegar os relatos da violência grotesca que os atores internacionais têm, por fim, endurecido o seu tom para com a situação em Cabo Delgado: a ONU mostrou-se disponível para "proteger os civis, restaurar a estabilidade e levar os autores" dos "atos hediondos à justiça", os EUA disseram-se “determinados” em combater o Estado Islâmico.

Em Portugal, tanto CDS-PP e PSD impeliram o Governo português a agir militarmente e, estando o país na Presidência da União Europeia, pediram para que Augusto Santos Silva faça pressão aos estados-membros para que mobilizem apoios a Moçambique. Ao mesmo tempo criticaram a inação portuguesa e europeia até então — nesse aspeto, o eurodeputado social-democrata Paulo Rangel tem sido particularmente veemente em acusar Portugal e a UE de mostrarem falta de vontade e lavarem as suas mãos do conflito.

A resposta chegou hoje por meio do ministério da Defesa Nacional, mas não terá sido a que os partidos queriam. Portugal vai enviar, sim, forças, mas apenas para ajudar na formação das forças militares moçambicanas: 60 militares portugueses têm viagem marcada para Moçambique na primeira quinzena de abril com esse propósito.

A postura portuguesa, assim, vai-se mantendo semelhante à que tem sido tomada: não ingerir militarmente num país cujo passado da Guerra Colonial não está assim tão longe, optando acima de tudo pela cooperação institucional. É por isso que tanto António Costa disse ontem que falou pessoalmente com o Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, para resolver "a questão de fundo", como Santos Silva defendeu hoje que Portugal não tem como missão "pressionar o Governo de Moçambique" a aceitar ajuda internacional para solucionar a crise humanitária em Cabo Delgado, devendo, sim, apoiá-lo.