Com o mundo concentrado na covid-19, a “velha inimiga” gripe – aquela outra doença aguda viral provocada pelo vírus influenza e que afeta principalmente as vias respiratórias – parece ter praticamente desaparecido.

Segundo refere o livro “Gripe e Covid-19, a tempestade perfeita?”, de Francisco José Nunes Antunes, “estima-se que a gripe tenha uma incidência de 1.000 milhões de casos por ano, de 3-5 milhões de casos graves e de mais de 650 mil mortes” no mundo.

Por contraste, até ao momento, a pandemia de covid-19 provocou, pelo menos, mais de 2,4 milhões de mortos no mundo, resultantes de mais de 112 milhões de casos de infeção, segundo um balanço feito pela agência francesa AFP.

Todos os anos, a nível mundial, o vírus influenza atinge em média 5 a 10% dos adultos e 20 a 30% das crianças. Na Europa, é responsável por 4 – 50 milhões de casos sintomáticos de gripe sazonal e por 15.000 a 70.000 mortes.

Mas o que está a acontecer?

No início da pandemia, a comunidade científica verificou que, pela primeira vez, a estação da gripe sazonal ia coincidir com uma pandemia global e chegou a temer-se que se verificassem duas epidemias em simultâneo, mas no painel de avaliação virológica, o único agente patogénico que teve um "ano forte" foi o novo coronavírus, SARS-CoV-2.

Em 2019, a gripe tinha sido responsável por mais de 3.300 mortes em Portugal. Agora, segundo o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA) – cujos boletins de vigilância epidemiológica são publicados todas as quintas-feiras –, a atividade gripal está a ser “esporádica”.

Na época de 2019/2020, até 16 de fevereiro, no âmbito do Programa Nacional de Vigilância da Gripe, foram analisados pelo Laboratório Nacional de Referência para o Vírus da Gripe e Outros Vírus Respiratórios, 718 casos de síndroma gripal (número de pessoas atendidas em consulta por terem sintomas associados a gripe), dos quais 313 (43 %) positivos para o vírus da gripe. Desde o início da respetiva época, foram reportados 92 casos de gripe pelas UCI que colaboram na vigilância.

Ainda nessa temporada, até à semana indicada, os laboratórios da Rede Portuguesa de Laboratórios para o Diagnóstico da Gripe (Hospitais) notificaram 15.242 casos de síndrome gripal, dos quais 3.678 positivos para o vírus da gripe.

Por contraste, no âmbito da vigilância laboratorial do Programa Nacional de Vigilância da Gripe em 2020/2021, até 14 fevereiro, foram analisados 209 casos de infeção respiratória aguda/síndrome gripal, não tendo sido detetados casos positivos para o vírus da gripe. Desde o início da  época, foram apenas reportados 3 casos de gripe pelas UCI que colaboram na vigilância.

Na mesma época, os laboratórios da Rede Portuguesa de Laboratórios para o Diagnóstico da Gripe (Hospitais) notificaram 16.721 casos de infeção respiratória, dos quais 11 positivos para o vírus da gripe.

O INSA adverte, no entanto, que a pandemia de covid-19 afetou “o modo de funcionamento dos serviços de saúde” e a capacidade de testagem, o que poderá impactar a “notificação clínica e laboratorial de casos de gripe”, pelo que recomenda que os dados acima descritos sejam interpretados tendo em conta essa limitação.

Esta baixa incidência repetiu-se um pouco por todo o mundo. Nos Estados Unidos, segundo informou o CDC, cerca de 136 pessoas foram hospitalizadas devido à gripe entre 1 de outubro de 2020 e 16 de janeiro de 2021, registaram-se 292 mortes relacionadas com a gripe durante o mesmo período e uma criança morreu.

Mas, em comparação, 400 mil pessoas foram hospitalizadas devido à gripe e 22 mil morreram, incluindo 434 crianças, durante toda a época gripal referente a 2019-2020, o que CDC descreveu como "grave" para crianças com 4 anos ou menos, e para adultos entre os 18 e 49 anos.

Como as medidas de contenção à propagação do novo coronavírus tiveram impacto na redução de outros vírus e bactérias respiratórios

Entre 2 de novembro a 27 de dezembro não foram notificados casos de síndrome gripal (SG) pela rede Médicos-Sentinela - Sistema de Observação em Saúde, constituído por médicos de Medicina Geral e Familiar. Já entre 28 de dezembro e 3 de janeiro a taxa de incidência de SG foi de 5,39 por 100 mil habitantes. No entanto, em nenhum dos períodos foram registados casos de gripe — ou seja, confirmados laboratorialmente.

Esta ausência de casos coincide com o uso obrigatório de máscara em espaços públicos, medida que vigora em Portugal desde 28 de outubro, bem como com o recolher obrigatório durante os fins de semana. Posteriormente, na semana seguinte ao Natal, começou a verificar-se uma maior incidência de síndrome gripal, registando-se, ainda assim, zero casos identificados de gripe.

O vírus da gripe é transmitido através de partículas de saliva de uma pessoa infetada e também por contacto direto com partes do corpo ou superfícies contaminadas com o vírus, por exemplo através das mãos, explica o SNS24. Assim, podemos concluir que a covid-19 e a gripe apresentam vias de transmissão semelhantes e que são as medidas que fazem a diferença.

Francisco José Nunes Antunes, professor catedrático jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e especialista em doenças infeciosas, explicou ao SAPO24 que “o confinamento, o distanciamento, máscaras, que são as medidas não farmacológicas de prevenção das doenças respiratórias e o facto, de provavelmente, este ano ter havido um reforço de vacinação e o fecho das fronteiras” justificam a baixa incidência de gripe que se tem verificado.

“O vírus não circula sozinho, circula com as pessoas. Quando as pessoas se movimentam, os vírus respiratórios aumentam. Quando as pessoas param, os vírus respiratórios param”, explica.

Mas podem as medidas de prevenção do coronavírus – máscaras, distanciamento social, teletrabalho, higienização e desinfeção regular das mãos – ser a única razão pela qual o gripe tem registado uma incidência inferior?

“Pelo segundo ano consecutivo temos uma vacina tetravalente, que garante maior abrangência dos serotipos [dos vírus da gripe] em circulação. Já na época gripal 2019/20, comparativamente com a época anterior, tivemos uma intensidade mais baixa”, afirmou Cátia Caneiras, da Comissão de Trabalho de Infecciologia Respiratória da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, em declarações ao Público.

De acordo com os Dados da terceira vaga do Vacinómetro - o barómetro da Sociedade Portuguesa de Pneumologia e da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar -, até dezembro, 70,4% das pessoas com idade igual ou superior a 65 anos já tinham sido vacinadas, o equivalente a mais de 1,4 milhões de portugueses. A vacinação da gripe chegou ainda a 61% dos profissionais de saúde, 37% das pessoas entre os 60 e 64 anos e 59% dos doentes crónicos.

Mas a imunidade da vacina não é vitalícia, porque o vírus da gripe muda constantemente, e é por isso que a vacina é diferente em cada ano.

“As vacinas para o ano seguinte são preparadas através da identificação dos vírus em circulação no ano anterior, mas estes continuam a circular”, explica Francisco Antunes. Ou seja, o vírus não desaparece completamente e “há casos esporádicos de infeções gripais”. “Esses vírus têm as suas caraterísticas genéticas”.

Sobre o impacto da menor incidência de casos no desenvolvimento da vacina para contra a gripe, o infeciologista explicou que os casos de gripe são situações residuais "mas são situações que são identificadas e consegue-se isolar o vírus. Pelo que se consegue identificar as variantes circulantes permitindo preparar as vacinas para o próximo ano. O próximo inverno vai começar em junho/julho no hemisfério sul”, relembra.

Questionado sobre eventuais riscos em relação à administração simultânea da vacina da gripe e da covid-19, considerando que se encontra a decorrer uma campanha massiva de vacinação contra a covid-19, o infeciologista afirmou que “não se tratam de características de vacinas que comportem risco para a sua administração simultânea”.

“Há vacinas que são preparadas com vários agentes infeciosos, como a vacina do sarampo ou da poliomielite. Mas não há qualquer tipo de inconveniente de se administrarem as duas vacinas em simultâneo, tendo em consideração as suas características", explica Francisco Antunes.

A época gripal 2020/2021 não está, contudo, terminada. Ainda corremos riscos de enfrentar um pico?

No que diz respeito ao eventual desconfinamento, seja em março ou em abril, e sobre a possibilidade de vir a surgir um aumento de casos de gripe, explica que tal é possível "porque a gripe é uma doença infeciosa sazonal”. Porém, “desaparecendo as condições climatéricas, como as temperaturas muito baixas e ambiente seco, que facilitam a transmissão do vírus da gripe, este não consegue sobreviver”.

No entanto, como referido anteriormente, são as medidas de prevenção que estão na génese de tudo isto e essas, reitera Francisco Antunes, “não vão desaparecer em abril, espero que não desapareçam em maio, espero que não desapareçam até dezembro”. E “enquanto as pessoas utilizarem máscara, tiverem distanciamento e lavarem as mãos o vírus não consegue sobreviver”.

A implementação generalizada de medidas de controlo de infeção pode assim tornar-se um poderoso aliado na luta contra a gripe, ajudando a proteger idosos ou pessoas com um sistema imunitário mais suscetível.

“Creio que é um facto que está comprovado, que não é só em relação à gripe, mas para todas as outras infeções respiratórias. Há também as pneumonias que ocorrem com maior frequência no inverno, as outras doenças e vírus respiratórios. Logo que haja liberdade de circulação e as pessoas deixem de adotar essas medidas não farmacológicas de prevenção, evidentemente, que o vírus continuará a circular, porque ele não desapareceu. Está, neste momento, com uma circulação muito discreta, mas voltará a surgir porque há vários reservatórios da gripe. As aves são reservatórios da gripe, há muitos animais que são reservatórios da gripe e, portanto, isto continuará”, conjectura o infeciologista.

Sobre a possibilidade de não estarmos expostos ao vírus da gripe no último inverno e a possibilidade de tal ter impacto na nossa resposta imunitária quando novamente expostos ao vírus, explicou que “a diversidade nas variantes de vírus circulantes varia muito de ano para ano, regra geral o sistema imunitário não consegue reconhecer os vírus circulantes do ano anterior e é por isso que as vacinas variam. Se assim não fosse, não seria necessário fabricar vacinas diferentes de ano para ano (...) é necessário estimulá-lo com as prováveis variantes que vão circular na altura e que são utilizadas na preparação da vacina”.

Assim, este inverno tem sido a estação mais calma de que há memória de gripe, mas não quer dizer que esse “velho inimigo”, se tenha extinguido. Mas com a covid-19, uma coisa se aprendeu: podemos proteger as pessoas de maior risco e as medidas de prevenção não farmacológicas podem salvar vidas, do SARS-CoV-2 e do influenza.