Se o título desta peça lhe causa alguma confusão, é favor ler o que foi aqui publicado a 2 de março de 2021: De Alcochete "jamais" a Alcochete "talvez".

Revisitar esse texto sugere a estranha sensação de premonição. Nesse dia, a Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) anunciou que não iria fazer a apreciação prévia de viabilidade para efeitos de construção do Aeroporto Complementar no Montijo.

Este concelho, recorde-se, foi aquele que desde que António Costa constituiu Governo, em 2015, estava praticamente selado como o destino do novo Aeroporto de Lisboa, face a todos os constrangimentos que diariamente flagelam o da Portela (ainda para mais agora, em 2022). Aliás — e roçando o autoplágio —, lembremo-nos do que foi referido nesse texto-resumo de 2021: que o Governo de Costa ”em 2019 fez o PSD saber que não havia “Plano B” ao Montijo”.

No entanto, num anúncio absolutamente surpreendente, e sem que ninguém desse a cara por isso, um comunicado do Ministério das Infraestruturas fez saber que o Montijo vai manter-se, sim, mas apenas como solução temporária — o Aeroporto que deverá servir Lisboa, afinal, será construído em Alcochete.

É isto o que precisa de saber desta novela que se arrasta há décadas:

O que aconteceu hoje?

O Governo fez saber que afinal quer avançar já para a construção do aeroporto do Montijo, mas apenas como solução temporária. O Campo de Tiro de Alcochete passa a ser a aposta definitiva para a substituição do aeroporto Humberto Delgado.

Por outras palavras, o executivo quer despachar o quanto antes a construção no Montijo para começar já a suavizar a pressão sobre o Aeroporto Humberto Delgado. Quando o primeiro estiver finalizado, deverão os dois trabalhar em simultâneo, enquanto o de Alcochete segue para edificação, apontada para 2035.

O Humberto Delgado, nessa altura, deverá por fim ser desativado.

Não havia já uma solução assim na calha?

Não, mas era parecido. Depois do veto da ANAC, o Governo avançou com uma Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) — um instrumento da Agência Portuguesa do Ambiente de apoio a tomadas de decisão que interfiram com a sustentabilidade ambiental —, adiantando três possíveis soluções:

  • Uma solução dual, em que o Aeroporto Humberto Delgado teria o estatuto de aeroporto principal e o Aeroporto do Montijo o de complementar;
  • Uma solução dual alternativa, em que o Aeroporto do Montijo adquiriria, progressivamente, o estatuto de aeroporto principal e o Aeroporto Humberto Delgado o de complementar;
  • A construção de um novo aeroporto internacional de Lisboa no Campo de Tiro de Alcochete.

Ou seja, o que o Governo optou agora foi por uma síntese destas três soluções. A estimativa é que, terminada a Avaliação Ambiental Estratégica, as obras possam começar no Montijo, com uma duração prevista de três anos, estando operacional no final de 2026, com uma capacidade inicial de cinco milhões de passageiros.

Mas não havia já um acordo para o Montijo?

Sim, a 8 de janeiro de 2019, a ANA - Aeroportos e o Estado assinaram um acordo para a expansão da capacidade aeroportuária de Lisboa, com um investimento de 1,15 mil milhões de euros até 2028 para aumentar o atual aeroporto de Lisboa e transformar a base aérea do Montijo num novo aeroporto. A ANA estava preparada para iniciar a obra em abril, mas o parecer da ANAC travou-a.

Agora, porém, apesar do Montijo já não ser o projeto final, a empresa, detida pelo grupo Vinci, disse que “saúda a decisão do Governo português que permitirá dar, a curto prazo, uma resposta viável e otimizada às necessidades de desenvolvimento aeroportuário da região de Lisboa” e que “esta solução permitirá obter a capacidade aeroportuária que o país necessita, da forma mais rápida e economicamente viável, com benefícios para a economia, o turismo e a continuidade territorial portuguesa”.

O veto da ANAC não tinha a ver com uma lei que ia contra as pretensões do Governo?

Sim, é o Decreto-Lei n.º 186/2007 — que obriga a que as autarquias visadas pela construção de obras públicas deem um parecer positivo para que avancem. À época, Alcochete não se pronunciou e tanto Seixal como a Moita posicionaram-se contra. Porém, com as eleições autárquicas do final do ano passado, a Moita passou do PCP para o PS e mostrou-se mais favorável à construção no Montijo, deixando o Seixal (ainda comunista) mais isolado.

Tal como aconteceu em 2021, o Ministério das Infraestruturas voltou uma vez mais a fazer saber que pretende mudar essa lei — a diferença é que, de um ano para o outro, o Governo passou a contar com o apoio de uma maioria absoluta.

“O Governo avançará em breve com a alteração na Assembleia da República do Decreto-Lei n.º 186/2007, de 10 de maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 55/2010, de 31 de maio, para corrigir o seu reconhecido desajustamento e, inter alia, permitir que a construção do aeroporto complementar do Montijo possa avançar com a brevidade possível", lê-se no despacho publicado em suplemento de Diário da República, assinado pelo secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Santos Mendes.

O que se segue?

A mudança de rumo do Governo implicou também uma mudança do pedido de adjudicação da Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) do novo aeroporto de Lisboa. O acordo com o consórcio COBA/Ineco caiu e a avaliação vai ficar a cargo do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC).

Em abril, o IMT tinha adjudicado ao consórcio constituído pela portuguesa COBA — Consultores de Engenharia e Ambiente e pela Ineco, detida em 51% pelo Estado espanhol, a AAE do novo aeroporto de Lisboa. Resta saber que tipo de implicações legais esta alteração terá.

E implicações políticas?

A mudança do pedido da AAE vai diretamente contra o acordo que o Governo tinha feito com o PSD de Rui Rio em 2019 para alterar a lei que travava o projeto e deixa de fora Luís Montenegro, que será empossado o novo presidente dos sociais-democratas este fim de semana.

O próprio ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, admitiu esta noite em entrevista à RTP não esperar pelo novo líder devido às “as declarações desagradáveis” que fez no início do mês, ao registar a “confissão de incompetência” do primeiro-ministro por Costa ter pedido ao PSD para, entre outras coisas, “dar uma solução” à localização do novo aeroporto.

“Foram declarações de alguém que se quis pôr de fora”, atirou, justificando ainda que “o país anda há anos a discutir aeroportos. Já é tempo de mais. Há uma decisão tomada e vamos avançar”.

Houve mais reações?

Sim, para todos os gostos:

  • Rui Rio, no PSD, disse que o Governo “anda nuns ziguezagues de todo o tamanho” relativamente ao projeto e ao apoio social democrata para a mudança de lei, mas passou as responsabilidades para Montenegro. “Isso deve ser assumido pelo meu sucessor a partir de domingo”, atirou. Já fonte próxima de Montenegro admitiu que este “não foi informado de nada”.
  • Tanto PCP como BE declararam-se surpreendidos e desapontados. Os comunistas disseram que a nova solução “não é credível” nem “é a resposta necessária para o país”. Já bloquistas consideraram que o Governo “está a brincar com o país, a brincar com o parlamento com os compromissos que assumiu e a brincar com o clima”. O PCP fez ainda saber que pretende chamar Pedro Nuno Santos com urgência à Assembleia da República.
  • À direita, a IL considerou o timing estranho e criticou o que avaliou ser despesismo. “Se fizemos o esforço político que fizemos relativamente à intervenção na TAP – que foram cerca de 3.500 milhões de euros – estes dois aeroportos juntos são mais do dobro desse montante. É uma utilização de dinheiros públicos que tem que ser muitíssimo escrutinada”. Já o Chega fez saber que  “havia um consenso com o parlamento” porque estava “um processo de avaliação ambiental em curso” que “foi acordado com o parlamento”, pelo que “é um desrespeito muito grande ao parlamento que o Governo unilateralmente decida quebrar uma avaliação ambiental e decida simplesmente pelas suas próprias palavras e pelas suas próprias ações fazer o que acaba de acontecer”.
  • Dos partidos mais pequenos, o PAN classificou como “manifestamente inusitada e precipitada esta decisão do Governo”, que disse também ser “um claro exemplo daquele que era o receio em relação ao chamado rolo compressor da maioria absoluta” e que vai contra as organizações não-governamentais do ambiente e os próprios órgãos reguladores. No Livre, a posição é de que este é “um voltar atrás em algumas garantias que tinham sido dadas da fidedignidade do processo” e que demonstra “uma certa desorientação” no Governo. Para o Livre, deve ser feita “uma avaliação ambiental estratégica, sem localizações definidas, para fazer o que deveria ter sido feito em meio século de debate” e “que pode ser feito até 2023” de forma a manter “o prazo que tinha sido fixado”.

E Marcelo?

O Presidente da República também não foi nem tido nem achado nesta decisão, como o próprio admitiu.

Marcelo afirmou hoje desconhecer os "contornos concretos" da nova solução aeroportuária do Governo para a região de Lisboa, observando que "foi ajustada agora", e recusou comentá-la sem ter mais informação.

"Preciso de saber os pormenores jurídicos, políticos, técnicos da solução, toda ela. Vou esperar para me pronunciar", acrescentou, considerando que neste momento não está "à vontade para comentar" esta matéria.