Ao terceiro dia de debate em torno das eleições de dia 30, o confronto entre o secretário-geral do Partido Socialista, António Costa, e o secretário-geral do Partido Comunista Português, Jerónimo de Sousa, era aquele que potencialmente reunia mais expectativa.

Afinal de contas, tratava-se do reencontro entre os dois líderes partidários à mesa depois do chumbo do Orçamento do Estado para 2022, pondo fim à relação de cooperação que os partidos de esquerda tiveram desde que o PS é Governo: primeiro abalada nas eleições de 2019, das quais não saíram acordos, e agora definitivamente rompida.

Além do previsível ajuste de contas quanto à responsabilidade do bloqueio do OE2022, importava acima de tudo que ambos demarcassem linhas quanto ao futuro que PS e PCP querem para o país, já que ambos convergem em alguns temas, mas divergem em absoluto em tantos outros. No entanto, o debate não passou dos preliminares.

O moderador da TVI, o jornalista Pedro Mourinho, colocou a tónica da discussão na crise política que desencadeou estas eleições e daí não se saiu ao longo de 22 minutos, resultando num confronto quase monotemático e tépido. Se noutras discussões tem sido comum a balbúrdia nas trocas de palavras, nesta noite o debate foi excessivamente polido, não havendo quase troca de palavras entre os dois candidatos.

Fazendo o papel de uma espécie de terapeuta, o moderador foi perguntando à vez a Jerónimo de Sousa e a António Costa quais as suas previsões se não houver uma maioria absoluta do PS e quem teve a culpa do Orçamento do Estado ter caído.

Como tem sido comum ao longo dos últimos dois meses, Jerónimo de Sousa e António Costa acusaram-se mutuamente de uma atitude de intransigência quanto às negociações: o PCP terá sido demasiado ambicioso nas suas propostas, o PS demasiado contido.

Da parte do secretário-geral do PCP, a principal crítica dirigida a António Costa foi de que “o Governo do PS chegou a um momento em que claramente desistiu e, em vez das soluções, começou a pensar em eleições”. De seguida, explicou que o executivo apresentou “resistências inesperadas e incompreensíveis” que “não avançou um elemento que fosse” em prol de uma negociação bem sucedida.

Em resposta, Costa lamentou que os partidos tenham chumbado o  Orçamento, não o deixando sequer chegar à especialidade. “O país percebe bem que esta crise política foi criada com o chumbo do Orçamento em plena pandemia, num momento em que o país devia estar focado na recuperação económica e social. Foi um acto de enorme irresponsabilidade política”, atirou.

Jerónimo, todavia, não se embeveceu com o argumentário do seu oponente, sugerindo mais do que uma vez que o PS deixou-se caminhar para esta situação, tendo em vista a possibilidade de garantir uma maioria absoluta. “Primeiro começou a falar de uma maioria, depois foi anunciando uma maioria estável, depois foi anunciando que era uma maioria mais um, e finalmente, o PS avança que quer a maioria absoluta e por isso avança para eleições”, atirou.

Mas, perante esta ideia, o candidato do PS disse que simplesmente queria "uma maioria que não chumbe tudo" e serviu-se de um trunfo importante, recordando os esforços que fez para nortear o país desde que a covid-19 chegou a Portugal. “Algum primeiro-ministro de algum país do mundo quer provocar eleições antecipadas no meio de uma crise destas?”, indagou, lembrando ter liderado “no meio da mais grave crise sanitária que tivemos de viver, no meio da maior incerteza em que tivemos de governar nestes últimos dois anos, onde tivemos a maior crise económica que o país teve, em que fizemos das tripas coração para proteger empresas, empregos e rendimentos”.

No apuramento de responsabilidades, enfim, nada mudou e ambas as partes continuam irredutíveis quanto à sua posição. Mas e quanto ao futuro? Aí, sim, houve novidades.

É que se Jerónimo de Sousa, apesar de pouco confiante na exequibilidade de um novo acordo, não o rejeitou — “não faço futurologia, seria arrogância da minha parte dizer não ou sim sem fundamento”, disse —, António Costa disse já não ter confiança nos seus partidos à esquerda para uma potencial Geringonça 2.0, mesmo que a correlação de forças resulte num aumento de deputados à direita.

Mesmo dizendo que “não há mortes definitivas a não ser a própria morte”, ou seja, não rejeitando em absoluto um novo acordo, o candidato do PS considerou que se em 2019 não antevia outra solução “que não o quadro da Geringonça”, agora, “nas atuais circunstâncias”, não sente “confiança para dizer que é uma solução estável”.

Apesar do fantasma da possibilidade do PS voltar a formar um bloco central para governar com PSD, o tema, apesar de várias vezes aludido pelo moderador, foi cuidadosamente evitado por ambos os candidatos. De soluções políticas, pouco se falou, mas ao menos já sabemos que a possibilidade de uma Geringonça está mais longe.

As causas da rutura

  • Jerónimo de Sousa sintetizou as razões do chumbo do Orçamento em “três questões fundamentais”, sendo estas a inflexibilidade do Governo em revogar a legislação laboral que impede a contratação coletiva e permite a caducidade dos contratos, o aumento do salário mínimo nacional e o reforço do Serviço Nacional de Saúde.
  • Costa respondeu a estas questões, dizendo que o Governo implementou, entre outras medidas, o aumento da dotação do SNS e a contratação de profissionais de saúde. Além disso, lembrou Jerónimo de que o PS já apresentou uma proposta da revisão do código de trabalho.
  • Foi, contudo, na questão do salário mínimo nacional que o primeiro-ministro dramatizou o discurso. Defendendo que o Governo fez “o maior aumento do SMN de sempre” com o reforço de 40 euros, Costa lembrou que a proposta do PCP era que “em janeiro aumentássemos mais do dobro, 750 euros, e mais do triplo em junho, chegando aos 800 euros”. “É neste momento exigível às empresas que lhes sejam impostas um aumento desta natureza? Quando há uma enorme incerteza quanto ao preço das matérias primas, ao preço da energia?” perguntou.
  • Jerónimo manteve-se inflexível quanto a este aspeto, servindo-se de uma das melhores frases que proferiu no debate: “Um pobre tem uma reivindicação de fundo não é este ou aquele subsídio, é deixar de ser pobre”. Com isto, acusou o Governo de manter muitos portugueses em situação de carestia, ao terem “um contrato a prazo, um trabalho temporário, sem dinheiro para renda”.
  • No momento em que Costa passou ao ataque, recordou Jerónimo de que, caso o Orçamento tivesse passado, “todos os pensionistas que recebem pensões até 1097 euros já estariam este mês a receber um aumento extraordinário” e que “120 mil crianças que vivem em situação de extrema pobreza já estariam a receber a garantia infantil”, entre outras medidas bloqueadas.
  • Num dos únicos momentos de interpelação entre os candidatos, Jerónimo perguntou a Costa porque é que não avançou com o aumento extraordinário das pensões à mesma. O primeiro-ministro respondeu: “O senhor deputado sabe bem [a razão]. Nós fizemos o aumento normal porque o regime de duodécimos o permite, não podemos fazer o orçamento extraordinário porque o regime de duodécimos não o permite. Estaríamos a fazê-lo se o orçamento tivesse passado”.
  • Já o secretário-geral do PCP, apesar de não chegar a dizer frontalmente que o PS teria interesse em regressar a um bloco central, lembrou das várias iniciativas da CDU que foram bloqueadas na Assembleia da República por “maiorias do PS e do PSD e do CDS-PP”.

De costas voltadas, mas sem amargura

  • Uma das marcas deste debate foi a contínua tentativa de, apesar de fazerem críticas um ao outro, tanto Jerónimo como Costa terem tentado apaziguar o estado de coisas, e sem beliscar a relação entre ambos.
  • O candidato do PS disse que “estas eleições não são sobre recriminações do passado, são sobre o futuro”. “Não quero estar aqui a fazer acusações, mas não aceito acusações” defendeu, acrescentando não estar interessado em “reerguer os muros que eu próprio derrubei há seis anos”.
  • Já o candidato do PCP disse rejeitar um “discurso belicista”, sendo que “não há aqui inimigos”, mas sim “adversários políticos”. Além disso, sublinhou que “este não é o momento nem o espaço de acusações mútuas”, apontando as suas críticas como sendo parte de uma análise rigorosa à atuação do Governo.
  • Por isso mesmo é que, perante o teor relativamente amigável da conversa, as declarações de Catarina Martins proferidas esta tarde no seu debate com Rui Tavares — de que António Costa é “um obstáculo” — foram rejeitadas por Jerónimo de Sousa. “Acho essa expressão no mínimo infeliz. Quem tem de decidir da vida do PS são os socialistas”, respondeu o secretário-geral do PCP. Jerónimo de Sousa considerou que, “por uma questão de respeito, independência e autonomia de cada força política, incluindo o PS, não há jeito nem maneira de colocar isso em cima da mesa nesses termos”. “Tenho um interesse muito particular num ditado popular: Quem sabe do convento é quem lá vive dentro. Naturalmente, é uma responsabilidade do PS escolher os seus órgãos e escolher os seus dirigentes. Não deve haver qualquer ingerência nessa matéria”, atirou.

O sapo: Jerónimo de Sousa

Como tem acontecido nos últimos meses, Jerónimo de Sousa manteve as mesmas ideias de que a crise política que levou às eleições de 30 de janeiro foi provocada pela intransigência do PS e o seu interesse em obter uma maioria absoluta.

No entanto, o secretário-geral do PCP viu as suas críticas serem sistematicamente rebatidas por António Costa, que vestiu a pele do governante responsável perante os devaneios da esquerda. Jerónimo podia ter-se servido dos vários casos e escândalos que assolaram o Governo nos últimos dois anos, mas, fiel à sua postura, manteve o diálogo com civismo e inteiramente baseado nas divergências políticas.

Além disso, note-se uma postura pouco combativa, em que as visíveis expressões de desagrado perante as declarações de Costa raramente foram acompanhadas de contra-argumentos capazes de desmontar o discurso do adversário. Não alertou, por exemplo, os portugueses da possibilidade do PS se virar para a direita caso não atinja a tão desejada maioria absoluta, nem puxou temas fortes como o contínuo financiamento do Novo Banco, os perdões fiscais à EDP ou a situação laboral dos professores.

A forma como Jerónimo debateu foi salutar, mas não terá conseguido marcar pontos. O seu eleitorado de base sairá da discussão certo de que Jerónimo venceu ao apontar as insuficiências da atuação política de António Costa, mas duvida-se que terá convencido mais eleitores à esquerda, que precisa de recuperar nestas eleições. 

O escorpião: António Costa

Costa apresentou-se como costume junto do PCP: não é segredo que o líder do PS tem boas relações com os comunistas, pelo que também manteve o discurso suave e sem modulações de maior grau.

No entanto, o primeiro-ministro conseguiu empurrar Jerónimo à parede ao argumentar sem contestação de que as medidas que o PCP queria para o OE2022 eram demasiado ambiciosas e lembrando de uma série de propostas que já estariam em vigência caso o Orçamento tivesse passado.

Além disso, a ideia de que nenhum primeiro-ministro levaria de bom grado o seu país a uma crise política, especialmente durante uma pandemia, certamente terá agradado o seu eleitorado ao centro. Passa uma ideia de responsabilidade e evita as acusações de que terá provocado eleições para obter maioria absoluta.

A juntar-se a esta estratégia, as juras de amor à defunta Geringonça e a revelação assertiva de que, perante o chumbo, já não tem confiança nos parceiros à esquerda para um novo acordo — apesar de não o rejeitar frontalmente — coloca o ónus no PCP e no BE. É verdade que podia ter sido mais desafiado, mas sai deste debate claramente vencedor.