A mãe era doméstica, "uma mulher altamente inteligente e empreendedora", o pai era um "zapatero", tinha uma loja de sapatos, onde consertava e fazia sapatos, em Campo de Ourique. "Eram pessoas da classe média, não sei se alta se baixa, mas tinham uma vida decente, nunca me faltou nada. Nunca me faltou nada, mas quando quis ir estudar para Inglaterra não tinha dinheiro, se não tivesse uma bolsa do British Council não teria estudado lá. Fiz a escola primária nos Salesianos, que era uma belíssima escola e eu era dos melhores alunos, mas quando passei para o liceu os meus pais não tinham dinheiro para me manter lá. Fui para a escola pública, nessa altura. Depois, aos 18 anos - casei muito cedo - e até acabar o curso de Economia, foi a minha mulher que trabalhou para financiar os meus estudos. Não me estou a queixar, mas tive uma vida de luta. E acho que só faz bem às pessoas, sem problema nenhum lhe digo".

O parágrafo é uma breve viagem pelos primeiros anos de vida de João Rendeiro, contada pelo próprio numa entrevista ao SAPO24, publicada a 20 de abril de 2021.

Aquele que viria a ser apelidado de banqueiro dos ricos, algo que sempre achou "estranho", nasceu em Lisboa em 1952 e cresceu na zona da Lapa, bairro onde diz que "era o mais rico da rua, mas o mais pobre do bairro".

"Esta situação colocava-me pouco à vontade, quer em relação a uns, quer em relação a outros. Como sabe, as crianças e os jovens são extremamente cruéis, e eu era alvo de bullying por parte dos tais meninos da Lapa, um bullying muito claro. Esse trauma aconteceu, mas penso que foi superado. Mas achava sempre um bocado estranho, e extraordinário, como é que eu, que era por assim dizer o que estava do lado errado dos ricos, de repente passei a ser o super-representante dos ricos. Isto para mim foi sempre uma coisa um bocado estranha: como é que eu, que era de certa maneira marginalizado pelos banqueiros - o Ricardo Salgado, o Jardim Gonçalves, etc., que me consideravam uma sardinha, eles eram os tubarões -, era de repente transformado pelo Ministério Público num tubarão", contava o ano passado.

Antes de ver o nome sucessivamente replicado nos jornais e nos tribunais, em simultâneo, devido ao caso do Banco Privado Português, a história de João Rendeiro foi de ascensão com a criação de uma fortuna que começou com a venda do Gestifundo, um fundo de investimentos em mercados de capitais que tinha criado em 1986. Onde tinha investido 15 mil euros, retirou 15 milhões com a venda do fundo ao Banco Totta. Diz mesmo que foi o melhor negócio da sua vida: "fiquei milionário aos trinta anos".

Com a Gestifundo e o doutoramento em gestão na Universidade de Sussex, em Inglaterra, e a fama de transformar milhares em milhões, fundou em 1996 o Banco Privado Português (BPP), a partir da compra da In-cofina ao Banco Comercial Português, com um grupo de investidores em que se destacavam o antigo primeiro-ministro e fundador do grupo Impresa Francisco Pinto Balsemão, a família Vaz Guedes, detentora da Somague, um grupo de empresas portuguesas que atuam nos ramos de engenharia e construção ferroviária e portuária, concessões de águas e energia, e imobiliária, Stefano Saviotti ou família Serrenho (dona da CIN) ou FLAD.

O BPP centrava a sua atividade na gestão de fortunas. Tinha cerca de três mil clientes com um património médio de um milhão de euros.

Mas este cenário em que o céu parecia ser o limite para João Rendeiro haveria de terminar em 2008, altura em que o BPP se viu em dificuldades para cumprir as suas obrigações e foi intervencionado pelo Banco de Portugal, que, dois anos depois, viria a liquidar a instituição.

"Os últimos dados oficiais disponíveis do banco são de 2007. Em 31 de dezembro desse ano o banco estava numa situação excecional. Tínhamos acabado de fazer a operação da Jerónimo Martins, com umas mais-valias brutais, quer para o banco, quer para os clientes, e o banco entrou em 2008 numa situação financeira muito boa. Depois, com a crise financeira de 2008, sobretudo a partir de setembro, houve uma desvalorização brutal dos ativos e todos os bancos foram afetados. A falência do Lehman Brothers dá-se nessa altura e é então que se precipitam um conjunto de situações", explicou ao SAPO24 em 2021.

O corte de rating da agência Moody"s no final de 2008, a que se somava o contexto de crise financeira global, acabaria por precipitar um pedido de ajuda ao Banco de Portugal, então liderado por Vítor Constâncio, durante um governo chefiado por José Sócrates e com Teixeira dos Santos como ministro das Finanças, para poder obter um financiamento de 750 milhões de euros junto do Citigroup. No entanto, o Banco de Portugal não autorizou a operação. Entre 2008 e 2010, uma administração nomeada pelo banco central e liderada por Fernando Adão da Fonseca tentou recuperar a instituição. Foi negociado um empréstimo junto de seis bancos nacionais no valor de 450 milhões de euros, com garantia do Estado, mas essa injeção de capital não chegou para salvar o banco que geria fortunas. O BPP acabaria por perder a licença para operar no dia 16 de abril de 2010, altura em que teria início a sua liquidação.

No entanto, não era só no banco central da República Portuguesa que o processo BPP decorreria, com o mesmo saltar para os tribunais. Ainda antes da decisão de liquidar o BPP, em 2009, o banco começaria a ser investigado pelas autoridades, devido a suspeitas de irregularidades.

Inicialmente, o ex-banqueiro foi acusado de seis crimes de falsidade informática e um crime de falsificação de documento pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa (junho de 2014), um esquema para ocultar as condições de venda de produtos bancários, que terão gerado um prejuízo de 40 milhões de euros escondidos através de sociedades com sede em paraísos fiscais.

Em primeira instância João Rendeiro — tal como Paulo Guichard, presidente executivo do banco — foi condenado ao pagamento de uma coima e a pena suspensa pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em outubro de 2018.Já em 2021, o Supremo Tribunal de Justiça manteve a pena de prisão efetiva de cinco anos e oito meses aplicada a João Rendeiro, ex-presidente do BPP, pelo Tribunal da Relação.

O ex-banqueiro acabou condenado em três processos distintos relacionados com o colapso do BPP, tendo o tribunal dado como provado que retirou do banco 13,61 milhões de euros. Das três condenações, apenas uma já transitou em julgado e não admite mais recursos, com João Rendeiro a ter de cumprir uma pena de prisão efetiva de cinco anos e oito meses. Nas restantes duas, tinha sido condenado a 10 anos de prisão num segundo processo e a mais três anos e seis meses num terceiro processo, sendo que estas duas sentenças ainda não transitaram em julgado.

João Rendeiro fugiu à justiça. Primeiro avisou as autoridades que ia viajar até Londres, mas tal acabou por não se verificar. "Estou no estrangeiro e não vou voltar", disse na altura ao SAPO24, a três dias de ter de se apresentar no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

Não era a primeira vez que o ex-banqueiro abandonava o país no decorrer do processo; segundo a SIC, Rendeiro já tinha saído de Portugal rumo à Costa Rica, justificando a sua saída com a possibilidade de ser contactado através da embaixada portuguesa no país.

No entanto, desta vez, nem Rendeiro parecia pretender voltar nem este tipo de justificações colheram recetividade pela juíza do processo.

"É evidente que o arguido, não sendo diplomata nem funcionário adstrito ao serviço diplomático, como se sabe, não pode ser contactado para a Embaixada de Portugal em Londres, tal como esta não constitui o local onde se encontra", lê-se num excerto do processo, emitido pela SIC.

Acabaria por ser detido em 11 de dezembro na cidade de Durban, na África do Sul, após quase três meses fugido à justiça portuguesa. João Rendeiro foi, então, presente ao juiz Rajesh Parshotam, do tribunal de Verulam, que lhe decretou no dia 17 de dezembro a medida de coação mais gravosa, colocando-o em prisão preventiva no estabelecimento prisional de Westville.

Após a detenção, o processo teve diversas sessões, logo em dezembro e janeiro no tribunal de Verulam. O caso ficou marcado por um incidente com os documentos que tinham vindo de Portugal e que, ao serem abertos em tribunal, verificou-se que a fita vermelha e verde que selava o conjunto de documentos em português enviados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) estava quebrada.

Os documentos foram enviados da África do Sul para Portugal em meados de fevereiro, com a PGR a confirmar em 25 de março que as autoridades sul-africanas já tinham recebido a documentação solicitada.

“Concluída a verificação de toda a documentação relativa ao pedido formal de extradição de João Rendeiro, o processo foi transmitido, por via diplomática, tendo sido recebido, hoje, pelas autoridades sul-africanas”, informou a PGR.

No final do mês passado, foi conhecida através do jornal Público a junção ao processo de João Rendeiro de dois documentos médicos que atestavam que o ex-banqueiro padecia de problemas de saúde, mais precisamente, cardiopatia reumática. A situação originou um pedido de esclarecimento das autoridades sul-africanas às congéneres portuguesas, que revelaram que Rendeiro nunca alegou problemas de saúde nos processos em que foi julgado.

“Nunca foi invocada pelo arguido João Rendeiro, em alguma das diversas fases do processo, qualquer patologia médica que o afetasse”, pode ler-se na informação do Juízo Central Criminal de Lisboa enviada ao Departamento de Cooperação Judiciária e Relações Internacionais da PGR.

No entanto, a advogada do ex-banqueiro desvalorizou a polémica em torno desses documentos, sobretudo porque um relatório médico a atestar o problema cardíaco estava assinado por um psiquiatra, e afiançou à Lusa que tal não seria utilizado em tribunal no âmbito do processo de extradição.

Em abril, a mandatária de João Rendeiro revelou que o ex-banqueiro lhe disse que “aguardava o julgamento com expectativa”, assegurando então que ele estava “bem” e que não houve uma deterioração das condições da prisão de Westville, sobre a qual chegaram a apresentar em janeiro uma carta para as Nações Unidas a denunciar as condições “terríveis” e a violação de direitos humanos naquele estabelecimento prisional.

No próximo dia 20, a defesa de João Rendeiro na África do Sul, a cargo da advogada June Marks, e os responsáveis do Ministério Público sul-africano (National Prosecuting Authority) iriam encontrar-se para acertar os últimos aspetos antes do julgamento, como a indicação de testemunhas.

O antigo presidente do BPP morreu hoje na prisão de Westville, onde foi encontrado enforcado, segundo adiantou primeiro a CNN e confirmou à Lusa a advogada do ex-banqueiro. June Marks acrescentou ainda que “as autoridades estão a investigar as circunstâncias” do que aconteceu.

*com agência Lusa