No dia em que se celebraram 112 anos da implantação da República, Marcelo Rebelo de Sousa voltou atrás um século no tempo — até ao terrível período pós-guerra e pós-Gripe Espanhola — para deixar avisos ao presente.

Porque se os tempos são melhores que em 1922, nem por isso são fáceis, e a combinação da pandemia com as dificuldades económicas atuais produz um cocktail perigoso.

Num salto para o mundo e o Portugal de 2022, Marcelo traça o contexto: "Acabámos de viver uma pandemia, ainda vivemos uma guerra e assistimos a novos apelos, já não a ditaduras, mas a autoritarismos iliberais, ou seja, não democráticos".

Se Portugal vive hoje numa "República democrática" e com “mais liberdades políticas económicas e sociais, mais pluralismo, mais meios de informação e de controlo dos poderes públicos e privados", nem por isso livra-se dos perigos.

“Não é suficiente termos democracia na Constituição e nas leis, importa ter democracia nos factos, com cada vez mais qualidade, melhores e mais atempadas leis, justiça, administração pública, controlo de abusos e omissões dos poderes, prevenção e combate à corrupção das pessoas e instituições", avisou. Sublinhou de seguida que “a democracia não é só política, é económica, social e cultural, e que sofre com a pobreza, a desigualdade, a injustiça, a intolerância, com a xenofobia, o racismo e a exclusão do diferente. Sabemos como erros, omissões, incompetências e ineficácias na democracia a fragilizam e a matam”.

O discurso de Marcelo quase serviu de preâmbulo para a notícia que marcaria o dia, proporcionada por uma empresa que a cada dia que passa mais parece uma pedra no sapato do Governo, a TAP.

O que aconteceu?

A companhia aérea vai renovar a sua frota de automóveis, aponta a TVI/CNN Portugal.

Qual é o problema?

É que os Peugeot dos seus administradores e gestores vão ser substituídos por BMW, que terão um valor de mercado a partir dos 52 e dos 65 mil euros. Ao todo são perto de 50 viaturas.

Qual é a justificação para esta escolha?

A companhia fez saber que a maioria da sua frota é detida em regime de ‘renting’ operacional desde 2017 e atinge o máximo de prorrogações possíveis em contrato no próximo ano. Ou seja, era necessário renovar a frota, independentemente da escolha dos novos veículos.

“Com a opção que fizemos, estamos a poupar anualmente até 630 mil euros, se tivéssemos mantido os carros que temos hoje”, disse a TAP num comunicado interno, ao qual a agência Lusa teve acesso.

Mas porquê BMWs?

“Não havendo outra opção senão celebrar novos contratos, optou-se por viaturas híbridas plug-in, em vez do atual diesel, por motivos ambientais, mas, também pelos benefícios fiscais associados a estas viaturas, menos poluentes”, justificou a comissão executiva da TAP.

Ao todo, a empresa defende que a escolha dos BMW permite “uma poupança superior a 20% do valor mensal da renda e tributação, relativamente a novos contratos de renting para viaturas com características semelhantes às atuais (gasóleo), estando em linha com o plano de reestruturação uma vez que representa o menor custo possível em sede de concurso no mercado”.

“A proposta escolhida foi a que apresentou o preço mais baixo, com uma renda mensal de 500 euros. Como referência, as outras propostas apresentadas à TAP com valor mais competitivo contemplavam rendas mensais de 750 euros”, pode ler-se.

A justificação parece fazer sentido. Qual é então o problema?

É uma questão de perceção: a notícia da compra de carros de luxo, não obstante as suas virtudes, caiu mal, tendo em conta os problemas financeiros que flagelam há muito a TAP.

Foi o próprio Presidente da República que fez essa observação, já depois do seu discurso. “Quando se está num período de dificuldade deve fazer-se um esforço para dar o exemplo de contenção”, afirmou, considerando que é preciso “ter algum bom senso” quando o país e o mundo atravessam um “período difícil”.

A reação de Marcelo foi a única?

Não, houve manifestações de repúdio de extremos políticos opostos, ambas exigindo ao Governo que atue.

Da parte do Bloco de Esquerda, o seu líder parlamentar, Pedro Filipe Soares, considerou “um insulto o que a administração da TAP fez ao país”, acreditando que “da parte do Governo, que é quem representa o Estado junto da TAP, porque é o representante do acionista, deveria merecer um enorme reparo”.

“Quando tivemos milhares de milhões de euros de dinheiros públicos que foram usados para salvar a TAP por ser estratégica para o país, e nós consideramos que é estratégica para o país, não faz sentido que o dinheiro público seja usado com decisões que são incompreensíveis como essa”, defendeu o deputado.

Já o Chega foi mais longe, prometendo o seu presidente, André Ventura, que vai questionar o Ministério das Infraestruturas sobre a compra dos carros de luxo. “Num momento de crise como o que estamos a viver, vamos questionar qual é a justificação para haver despesas deste tipo numa companhia aérea que os portugueses têm vindo a salvar com os seus impostos”, afirmou.

“Através do parlamento, da figura da questão parlamentar, preparámos uma questão para o Ministério das Infraestruturas para perceber como tamanha imoralidade é possível num tempo como estamos a viver”, frisou.

E da parte dos trabalhadores da TAP, houve alguma reação?

Sim, a mais contundente, por sinal. O Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil sugeriu hoje à TAP a mesma lógica de “gastar mais, para poupar”, com que a companhia se defendeu sobre a renovação da frota automóvel corporativa, para a reposição das condições laborais dos trabalhadores.

“Enquanto uns têm cortes brutais nos seus vencimentos, quando ainda há processos de despedimento em curso e quando se condiciona a qualidade de vida a outros, em simultâneo, renova-se o parque automóvel dos cargos de direção”, defendendo que “para a existência de paz social, é imperativa a presença de justiça social”, atirou o sindicato em comunicado.

Neste contexto, o SPAC considera que a “nova atitude” perante “os gastos” terá de abranger os pilotos na reposição das condições laborais. “Se tal não acontecer ficaremos realmente surpreendidos e seremos obrigados a acreditar na hipótese de que a administração da TAP ou não quer aplicar o excedente financeiro na justa reposição das condições laborais dos trabalhadores, ou não existe excedente financeiro e esta renovação da frota foi paga com os cortes nos salários dos trabalhadores”, é acrescentado.