O Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) aponta a falta de orientação estratégica na saúde e diz que é preciso responder com inteligência para sair da crise agudizada pela pandemia com maior capacidade de resiliência.

No Relatório de Primavera 2022, que hoje é apresentado na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e que analisa a governação do sistema de saúde português, o OPSS enuncia os maiores desafios do Serviço Nacional de Saúde (SNS), aponta as tentativas de resposta “recentes e ambiciosas” que constam do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), mas insiste na necessidade de definir uma orientação estratégica estrutural para o setor.

“Qual é a orientação estratégica estrutural que se pretende seguir na saúde?”, questionam os autores do Relatório da Primavera 2022 – “E agora?”, um documento em forma de pergunta que também faz algumas propostas de resposta.

O documento,  aponta logo de início os três grandes desafios do SNS - o acesso aos cuidados de saúde, os recursos humanos e a saúde pública -, enunciando igualmente as “tentativas de resposta”, como a reforma da saúde mental, a digitalização da saúde, a Lei de Bases da Saúde e o Estatuto do SNS, a dedicação plena “apenas para alguns profissionais” e a criação dos Sistemas Locais de Saúde.

Dando como exemplo a digitalização na saúde, os especialistas perguntam com que base de modelo de cuidados será desenvolvida, de que modo será motor da transformação e como contribuirá para os três princípios fundamentais: a centralização dos cuidados na pessoa/família, a integração e a continuidade de cuidados.

Lembram que o trabalho de refundar o SNS e o sistema de saúde não foi ainda realizado, assumindo igualmente alguma culpa pela falta de propostas durante a altura da pandemia, mas admitem: “Talvez a altura fosse de demasiado barulho, de excessiva solicitação, de necessidade de respostas ao mais premente e imediato, sem tempo para pensar”.

“Talvez os alicerces para esta resposta já devessem ter sido criados antes, em altura mais bem tranquilas”, afirmam os autores.

Quanto à Lei de bases da Saúde, o observatório diz que falta saber qual a arquitetura que se pretende no futuro para o sistema de saúde português. “Se, de facto, se pretende que os setores privado e social sejam complementares, faltam indicações claras sobre como o SNS responderá às maiores necessidades, evitando que o recurso aos privados, com graves implicações financeiras para as famílias, continue a ser indispensável”, sublinha.

Os autores do Relatório da Primavera 2022 insistem ainda: “E faltam indicações sobre a adequada gestão desta complementaridade, assegurando a qualidade e o valor dos cuidados dos setores sociais e privados, geralmente pouco transparentes e cujo controlo parece escapar completamente ao Estado”.

Num documento carregado de interrogações, lembram igualmente que falta saber qual será a estratégia a adotar “para uma população mais saudável e com maior bem-estar, independentemente do estatuto económico e social”.

Outra das perguntas que dizem estar sem resposta é como atrair, motivar e reter os profissionais da saúde: “De que forma será implementada a dedicação plena, ponto central no novo Estatuto do SNS, e o modelo será para aplicar a todos os profissionais?”.

Para os autores, persistem igualmente muitas dúvidas sobre as inovações que a pandemia promoveu, lembrando: “Falta saber de que forma a digitalização da saúde, ponto central e promissor do PRR, será desenvolvida”.

“Como poderá a saúde digital ser efetivamente um contributo central para a integração e continuidade de cuidados centrados na pessoa/família? Será a saúde digital o instrumento que nos permita aumentar a capacidade de resposta, no presente e nas futuras pandemias?”, questionam ainda.

Sobre os cuidados de saúde em casa, dizem que também está por saber se será “uma forma de aumentar e melhorar as respostas” e se serão dadas melhores condições aos cuidadores informais/familiares, que consideram “essenciais para a estratégia de cuidados domiciliários”.

Finalmente, defendem, falta saber “que destino será dado a outras inovações dos tempos mais duros da pandemia”, como o acesso de proximidade aos medicamentos, os mecanismos de apoio ao desenvolvimento e à avaliação rápida de testes e vacinas e a adaptação dos processos para que esta inovação seja acessível a todos.

Covid-19: Ambulâncias junto ao Hospital de Santa Maria
créditos: MÁRIO CRUZ/LUSA

Pandemia mostrou uma planificação insuficiente e organização antiquada

A pandemia mostrou que a planificação da força de trabalho em saúde é insuficiente, a organização profissional antiquada e que falta uma carreira que estimule os talentos, considera o Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS).

No Relatório de Primavera 2022 – “E agora?”, o OPSS sublinha ainda a importância da existência de uma licenciatura em Saúde Pública.

“Ficou por demais óbvio como foi ignorante não ter há muito (e continuar assim...) uma licenciatura em saúde pública como base de um ‘exército’ essencial na resposta às rotinas e quando necessário às crises sanitárias”, refere Henrique Barros, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e autor do primeiro capítulo do documento, intitulado “O que a pandemia nos fez”.

No Relatório de Primavera 2022, o especialista defende igualmente que os anos da pandemia mostraram a centralidade da força de trabalho em saúde, a necessidade de uma formação adequada e de uma distribuição equitativa e inteligente dos recursos humanos pelo espaço geográfico.

O documento sublinha a quebra assistencial nos cuidados de saúde, referindo que se perderam “momentos essenciais de intervenção”, e refere que se protelaram “desnecessariamente atitudes preventivas e curativas que poderão ter reflexo na morbilidade futura”.

“Importa perceber em que medida os cuidados não se acomodaram a esse medo [de recorrer aos cuidados de saúde em casos não covid], que resultou em falta de procura, no limite disrupção dos cuidados”, considera o especialista, alertando: “Terão naturalmente os profissionais que avaliar as atitudes para com elas aprender e rever protocolos de atuação futura perante as epidemias que virão ou simplesmente os agravamentos no número de casos que com a covid-19 possam ocorrer”.

Apontando a redução, e até paragem, dos rastreios e os atrasos no diagnóstico, admite que se atrasaram as deteções de casos de infeção (…) ou doenças não transmissíveis como o cancro, para as quais – sublinha – “se observa uma inequívoca recuperação”, defendendo que a pandemia estará, direta e indiretamente, “ligada a queixas e quadros clínicos que vão requerer cuidados”.

Para além da chamada “covid longa” – insiste – “são evidentes as perturbações de gravidade muito variada que vão das alterações do sono aos quadros complexos de saúde mental”.

“Não quantificar e planear a resposta a esta situação, quanto como fazer finalmente funcionar os centros de epidemiologia hospitalar ou as unidades clínicas dedicadas a doenças emergentes, só pode ser visto como inaceitável falta de visão quanto ao modo como organizar a saúde”, sublinha.

Considera igualmente que a organização “é a chave do sucesso” e que não vale a pena insistir ”na inaceitável ideia das falsas urgências”: "se o recado pode ser aceitável para quem desenha os serviços e o acesso a eles (…) o que se exige é não culpar a vítima”.

“Espera-se antes (...) um caminho que progressivamente racionalize o acesso aos cuidados e no qual as telecomunicações podem ter um papel essencial”, refere o documento, sublinhando que ficou evidente com a pandemia que "não terá sido muita a vontade de fazer funcionar toda a potencialidade das tecnologias de informação”.

O relatório do OPSS diz também que a pandemia deixou a descoberto “a real ausência de uma estratégia de saúde escolar e planos não avulsos de intervenção nas escolas”.

Defende que só assim se conseguirá ajudar a ultrapassar “mais uma iniquidade social”, sublinhando: “estabelecimentos públicos e privados tendem a oferecer, a este nível, condições muito distintas embora, deve dizer-se, muito limitados e essencialmente curativos na oferta privada”.

Ainda no primeiro capítulo, Henrique Barros faz referência à resposta aos mais vulneráveis, como os idosos que vivem nos lares, sublinhando que muito do que mudou no prognóstico destas pessoas se deveu à política de vacinação.

“É essencial estarmos preparados tanto para assegurar em tempo útil o reforço vacinal, como sobretudo dispor de ações alternativas perante qualquer eventual diminuição da proteção vacinal”, alerta.

Nova ala pediátrica do Hospital São João
créditos: PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA

Despesas em saúde são um investimento

O Relatório de Primavera 2022 defende que a pandemia mostrou que as despesas em saúde “são um investimento e não um custo” e sublinha que sistemas de saúde mais fortes e resilientes protegem melhor as populações e as economias.

O documento aponta diversos estudos que concluem que os governos deverão investir em áreas críticas como a capacidade de adaptação e de aprendizagem, de alinhamento dos serviços públicos com as necessidades dos cidadãos, de governação de sistemas de produção resilientes e na capacidade de gerir dados e plataformas digitais.

O relatório lembra a redução na atividade assistencial, mas sublinha o esforço dos Cuidados de Saúde Primários (CSP).

“Os CSP, apesar de algumas quebras, evidenciaram um esforço notável na procura de formas alternativas de resposta aos seus utilizadores, a par com o seguimento de doentes com covid-19 e de todo o trabalho que foi necessário desenvolver no processo de vacinação”, sublinha.

O OPSS recorda a redução nas consultas presenciais nos CSP no período 2019/2020 e o aumento de 14,3% em 2020/2021, mas sublinha que este não foi suficiente para recuperar a atividade pré-pandemia, “uma vez que se regista uma redução de 29,7% entre 2019/2021”.

Os cuidados ao domicílio seguem a mesma tendência, que é alterada nas consultas não presenciais, que mais do que duplicaram no período 2019/2020, continuando a aumentar em 2020/2021, refere o documento, que destaca o facto de o serviços terem procurado formas alternativas de dar resposta aos utentes.

Nas consultas médicas hospitalares, sublinha que a atividade anterior à pandemia ainda não foi completamente recuperada, tendência que se repete para as primeiras consultas.

A mesma tendência de queda – refere o relatório – é encontrada nos Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica (MCDT) entre 2019/2020.

No período 2020/2021, o documento aponta para um aumento total de 39% dos atos aceites de MCDT, referindo que o aumento é generalizado em praticamente todas as áreas, com exceção da neurofisiologia (redução de 29,7%).

Em relação aos níveis de atividade, o relatório defende que em Portugal se deve ponderar se no pós-pandemia se pretende repor em todas as linhas os níveis verificados na pré-pandemia.

“Por exemplo, tendo em conta as queixas dos hospitais relativamente ao excesso de procura nas urgências antes da pandemia, sugerindo que os problemas poderiam e deveriam ser resolvidos noutras áreas de cuidados, nomeadamente nos CSP, esta reposição poderá ser equacionada e estendida a outras áreas de cuidados”, sugere.

Diz ainda que a análise da redução global na utilização de serviços de saúde e os níveis que se pretendem repor, bem como o aumento das necessidades não satisfeitas em saúde, devem ser analisadas em conjunto para ajudar na definição de estratégias coerentes que respondam às necessidades identificadas e que permitam melhorar a saúde de forma eficiente.

Sobre o recurso à telemedicina e outras variantes da telessaúde - alternativas encontradas para responder à necessidade de respostas alternativas aos utentes -, o Relatório de Primavera defende que deve ser garantida “a sustentabilidade dos respetivos investimentos necessários nesta área (infraestruturas, tecnológicos, humanos, formação, etc.) e o sistema de incentivos para a manutenção e até extensão das boas práticas comprovadas”

No entanto, alerta, a adoção da telessaúde “deverá ser equacionada para perceber se responde integralmente às necessidades da procura que se verificaram nos diversos níveis de cuidados, não podendo ser adotada como uma panaceia para todas as atividades de saúde”.

O Observatório Português dos Sistemas de Saúde é constituído por uma rede de investigadores e instituições académicas dedicadas ao estudo dos sistemas de saúde.

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