Excerto do capítulo 4 — «2 000 000 a. C. | A origem das línguas» — do livro História do Português desde o Big Bang Marco Neves é Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente esta História do Português desde o Big Bang.


Não é só nas regras e nos sons que vemos a mudança linguística. O próprio sentido das palavras está sempre a caminho de ser outra coisa. Para compreendermos porquê, convém perceber que uma palavra é quase sempre mais do que uma palavra. Em certos casos, são duas (ou mais) palavras completamente diferentes, que por acaso têm o mesmo aspecto. «Banco» (de sentar) e «banco» (de guardar dinheiro) são um exemplo famoso. Mas não é da homonímia que falo. Falo das subtis diferenças de significado de uma só palavra. Reparemos nestas frases com a palavra «livro»:

  • Tenho muitos livros nas estantes.
  • Acabei de escrever o livro!
  • A Bíblia é composta por dezenas de livros.

Se eu digo «tenho muitos livros nas estantes», estou a falar dos objectos − até podem ser muitos exemplares do mesmo livro, como acontece numa certa loja de móveis sueca (ou holandesa, já não sei), onde, em certas estantes, o mesmo romance se repete até ao infinito. Já se eu disser «acabei de escrever o livro», provavelmente, esse tal livro ainda só existe num ficheiro escondido no computador − não é um objecto físico. Em certos contextos, «livro» até pode querer dizer «subdivisão de livro»! E podia continuar − a mesma palavra pode ter em si várias palavras relacionadas, que usamos de forma subtil, quase sem reparar nas diferenças. Cada falante usa a palavra de forma subtilmente diferente e, por vezes, dá um salto semântico que quase não se nota. A palavra pula e avança e, se compararmos a mesma palavra à distância de séculos, encontramos uma grande diferença de sentido.

Deveríamos tentar que as palavras estivessem quietas? A verdade é que esta liberdade semântica não nos atrapalha e dá-nos flexibilidade. As línguas foram sendo criadas, gradualmente, pelos mesmos objectos que as usam: os nossos cérebros. Estão adaptadas à humanidade − e nós a elas. Se dermos um passo maior do que a perna, o olhar de incompreensão de quem nos ouve ajuda-nos a voltar um pouco atrás. Mas lá vamos dando mais uma demão nas palavras que usamos…

Livro: História do Português desde o Big Bang

Editora: Guerra & Paz

Preço: 12,60 €

Um dos grandes motores da deriva semântica é a metáfora (e a sua prima metonímia). Nós usamos metáforas e metonímias sem nos apercebermos:

  • «guerra contra a doença»;
  • «a direcção da empresa está à deriva»;
  • «um mar de pessoas»;
  • «ele tem um pé pesado»…

Esta tendência linguística é de todas as línguas e está muito mais generalizada do que pensamos. Muitas das palavras que usamos são antigas metáforas ou metonímias cristalizadas. O nome de um dos órgãos que usamos para falar passou a designar a maneira de falar («língua»), a subida do mercúrio nos termómetros levou-nos a dizer que a temperatura sobe, entre muitos outros exemplos. Há, aliás, tendências que são muito humanas: as línguas tendem a usar termos relacionados com o espaço para se referirem ao tempo. Dizemos «de Lisboa ao Porto», mas também «de segunda a sexta» − e este é apenas um exemplo da maneira como o tempo e o espaço parecem estar intimamente ligados na gramática e na semântica das línguas (sonhamos em «andar para trás no tempo», por exemplo; falamos até de «espaço de tempo»).

A conotação que damos a cada palavra, as nossas atitudes perante cada palavra (ou conjunto de palavras): tudo isso muda ao longo do tempo – porque é ligeiramente diferente em cada falante. Na contínua negociação do significado das palavras, vamos sublinhando este significado e vamos apagando o outro; vamos começando a achar que esta palavra é menos aceitável – ou que afinal já podemos dizer esta outra palavra em qualquer situação. É um jogo subtil, complexo, difícil de descrever. Em menor ou maior grau, todas as palavras sofrem destas transformações, mais tarde ou mais cedo. Aliás, quanto mais abstracta, mais fácil é haver uma mudança de sentido rápida… Basta pensar na palavra «cultura», que já ninguém controla.

Porque tão poucos reparam nesta mudança contínua? Primeiro, porque a escrita e a existência de uma norma levam-nos a crer que a boa língua é a língua que existe, parada, nos dicionários e gramáticas na estante. Ora, nem nos dicionários nem nas gramáticas ela está parada, mas muitos estão convencidos de que sim. Mais do que isso: estas mudanças, que arrepiam tanta gente, fazem-se de forma lenta, ao longo de décadas ou séculos. Depois, quando de facto notamos algumas das mudanças, um mecanismo mental que me parece existir em todas as sociedades leva-nos a crer que a mudança é sempre negativa. A língua move-se tão lentamente que nos dá a sensação de não se mover − logo, quando notamos alguma mudança, consideramo-la algo pouco natural. E, no entanto, a língua muda! Olhando para os sons, podemos ver como o «r» português está a mudar neste preciso momento − e também podemos ver como a qualidade das vogais nas sílabas átonas é muito diferente da pintura que nos dá a escrita – não só o «o» se lê «u» em muitas sílabas átonas, como, em muitos casos, esse «u» tem já uma leitura muito mais sumida do que pensamos. Numa conversa normal, o último «o» de «todo» já é uma vogal quase desaparecida. São apenas exemplos. Basta ouvir o discurso de um falante de 70 anos e outro de 17 anos numa qualquer terra portuguesa para vermos diferenças entre falantes vivos. Aliás, voltando atrás, basta ouvir dois falantes quaisquer para vermos como a língua não é igual em duas bocas…

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Há palavras que ficam iguais durante muito tempo, outras que mudam rapidamente. Há sons que sofrem alterações que levam a mudanças noutros sons. As vogais, por exemplo, estão sempre a dançar um pouco, nunca estão fixas, pois o seu timbre depende da exacta forma que damos à boca e, por isso, ninguém produz uma vogal exactamente igual a outra pessoa. Quando a nuvem de sons em redor de uma letra vogal começa a aproximar-se de outra vogal, esta desloca-se para manter o mesmo grau de diferença – um mecanismo inconsciente que encontramos em várias línguas.

Quando uma língua tem uma norma escrita, a mudança irá desacelerar – a norma é uma força que tende a uniformizar a língua entre os falantes de cada época e, assim, pela lógica exposta acima, acaba por actuar como travão da mudança ao longo do tempo. No entanto, a norma não é um travão a fundo. A língua continua a mudar – e, com ela, a norma. O processo de mudança da norma costuma ser ligeiramente mais consciente e, por vezes, tem cariz político (e muito arbitrário). Já o processo praticamente invisível de constante desbaste e reconstrução das palavras – esse é suave, imperceptível, visível apenas quando olhamos para trás, para os séculos, e percebemos as diferenças nas fotografias tiradas no momento do registo escrito das palavras.

A nossa língua é descendente em linha directa da língua de algum caçador antigo. Muitas das características do português decorrerão ainda das características dessa língua − por exemplo, termos a tendência para pôr o verbo a seguir ao sujeito (uma tendência muitas vezes contrariada, mas ainda assim uma tendência) pode muito bem ser resultado da maneira como uma tribo particular, há muitos milhares de anos, construía as suas frases, ao contrário do que acontecia na tribo mais próxima, que punha os verbos sempre no início das frases. Esse traço gramatical aguentou-se. Outros mudaram. A nossa gramática, a nossa língua, chega-nos da mistura daquilo que se mantém ao longo dos séculos e da acumulação de pequenas mudanças, graduais, ao longo da História − um processo ininterrupto de transmissão e mudança, que chegou até nós desde esses tempos em que os seres humanos andavam pelo mundo em tribos, a caçar, sem poiso fixo.

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