A entrevista dos duques de Sussex fez as manchetes de todo o mundo na semana passada, mas só este domingo foi transmitida em Portugal, pela SIC, madrugada dentro, depois do frenesim na "cozinha do inferno" de Ljubomir Stanisic.

Caracterizadas por muitos como "explosiva", os destaques desta entrevista são já amplamente conhecidos, mas vamos ao essencial:

1) Meghan Markle, alvo de uma agressiva cobertura pelos media britânicos, pensou em suicidar-se. Quando se dirigiu aos membros da instituição real para pedir ajuda e discutir a possibilidade de tratamento médico disseram-lhe "que não seria bom para a instituição”;

2) A família real estava preocupada com o quão escuro poderia ser o tom de pele de Archie, o filho do casal;

3) Os membros da instituição real consideraram que Archie não devia receber o título de príncipe, embora seja essa a tradição, o que teve implicações na garantia da sua segurança pessoal;

4) A decisão de se afastarem da família real teve por base a sua "falta de apoio e de compreensão", com Harry a garantir que não fez nada às escondidas da avó, a rainha Isabel II;

5) A relação de Harry com o pai e o irmão já viu melhores dias — "O tempo cura tudo, espero";

6) Foi Kate quem fez Meghan chorar nas vésperas do seu casamento e não o contrário;

7) O casal casou-se três dias antes da cerimónia oficial;

8) A família real é refém dos tablóides e preferiu manter as boas relações do que defender Meghan;

9) Os duques vão ter uma segunda criança, uma menina — e "dois está bom".

Entre todas estas revelações a que efetivamente teve eco na opinião pública foi a do racismo implícito nas preocupações, decisões e atitudes da casa real — cuja gravidade é aliás indiretamente assumida no comunicado do Palácio de Buckingham, dois dias depois da entrevista: "a família inteira fica triste ao saber de como os últimos anos foram difíceis para Harry e Meghan. As questões levantadas, principalmente as de racismo, são preocupantes. Embora as memórias [do que aconteceu] possam variar, são levadas muito a sério e serão tratadas pela família em privado. Harry, Meghan e Archie serão sempre membros muito queridos​​​​​​​ da família”.

O tom contido da nota faz pouco por aquilo que se pode considerar um lavar de roupa suja em público — dias antes desta entrevista, o Palácio de Buckingham disse que os recursos humanos estavam a investigar acusações de bullying feitas por duas ex-assistentes da casa real contra Meghan Markle, o que foi visto como uma tentativa de minar a percepção pública antes de ser transmitida a conversa com Oprah.

Já quando Oprah perguntou a Meghan Markle porque é que decidiram falar agora, a duquesa respondeu que "eles não podiam esperar que continuássemos em silêncio quando a firma continua a perpetuar mentiras sobre nós". E esta foi uma distinção importante que procuraram fazer, a diferença entre a família — que até recebeu Meghan melhor do que Harry imaginou — e a instituição, a Coroa, "a firma".

Isabel II nunca foi diretamente visada nesta entrevista — pelo contrário, Meghan diz que a rainha sempre foi "maravilhosa, calorosa, afável" e Harry diz que que tem uma ótima relação com a avó —, mas é impossível que a comandante suprema da casa real saia sem mossa disto.

Esta é talvez a grande questão: alguém sai bem desta entrevista? As opiniões divergem.

A Casa Branca saudou a "coragem" do casal, já Boris recusou comentar a entrevista e limitou-se a expressar "a maior admiração pela Rainha". Para Serena Williams — amiga de Meghan — a duquesa é "altruísta" e lidera com "empatia e compaixão". Para Piers Morgan, um famoso apresentador britânico, a duquesa é "autocomplacente" e "repulsiva", disse, num ataque que ditou o seu afastamento do programa Good Morning Britain. Charles Moore, biografo de Margaret Thatcher e ex-editor do Daily Telegraph disse que o casal é "egocêntrico e irrelevante" e Jenny Bond, ex-correspondente da BBC na casa real, disse que "temos mais com que nos preocupar do que com dois indivíduos ricos e privilegiados que reclamam da sua sorte na vida". No sentido contrário, muitos jovens saíram em defesa do casal nas redes sociais, elogiando o facto de agora poderem ditar os termos da conversa.

Fora de qualquer uma das trincheiras — porque nem sempre é preciso estar com alguém ou contra alguém — olhamos para algumas das declarações desta entrevista, questionamos o timing e o impacto efetivo que terá na família real britânica.

Uma duquesa excessivamente ingénua

A conversa começou com Meghan a dizer a Oprah que nunca pesquisou sobre o marido e a família na internet, que na sua casa a vida da família real nunca foi um tema, que foi apanhada desprevenida pelo desalinhamento entre o conto de fadas e a realidade, que não entendeu bem o trabalho que tinha pela frente ao casar com Harry, que pensou que lidar com a família real não fosse assim tão diferente de lidar com celebridades. Por contraste, conta, a primeira vez que conheceu a rainha teve de aprender a fazer uma vénia à pressa para não quebrar o protocolo.

É justo questionar se Meghan, na altura com 36 anos, ex-atriz, que começou a trabalhar aos 13 e ficou conhecida em Hollywood por causa da série Suits não terá sido excessivamente ingénua — afinal ia integrar uma família cuja existência está assente numa ideia de privilégio determinado pelo divino e transmitido por sangue de geração em geração. Mais, seria uma afro-americana, a primeira, a fazê-lo.

Mesmo que não estivesse particularmente interessada em descobrir detalhes sobre a juventude rebelde do marido, é facto que não falta informação online e offline sobre a família real britânica e as suas polémicas. Em última instância, a história de Diana, que várias vezes foi referida nesta conversa e com quem tantas vezes Meghan é comparada, podia ter servido de alerta.

Há um momento em que Meghan lamenta o facto de não lhe terem sido dadas directrizes e que nem o hino a tenham ajudado a aprender. O apoio é sempre bem-vindo, claro, mas não seria óbvio que ter esta competência vem com o cargo?

O casamento de Meghan e Harry criou uma grande expectativa de abertura e de mudança dentro de uma organização que respira tradição — é isso que a alimenta e que a mantém — e preencher esse papel seria difícil mesmo que a duquesa estivesse muito bem preparada para o cargo. Mas não estava, como a própria assumiu.

Claro que nada disto justifica ou tira gravidade as acusações de Meghan, desde a incapacidade da casa real em condenar os tablóides e a sua cobertura racista e persecutória, à recusa em aceder ao seu pedido de ajuda para cuidar da sua saúde mental ou as preocupações sobre o tom de pele de Archie, com impacto no título e na proteção que iria receber.

Um timing tramado

A dada altura na entrevista, os duques contaram que se sentiam "encurralados", justificando-o com alguns exemplos: Meghan Markle contou que "não podia simplesmente chamar um Uber ao palácio" e ir procurar ajuda médica; que só voltou a ver os seus documentos — como o passaporte — e chaves quando se 'separaram' da família real; que foi aconselhada a não sair de casa porque "estava em todo o lado" nos jornais, apesar de em meses ter saído apenas duas vezes da sua residência. Neste último exemplo até se sugeriu que as pessoas se podiam identificar com as tribulações da duquesa, já que a pandemia obrigou ao confinamento de muitos.

O problema — e a crítica que se seguiu — surge exactamente aí: em plena pandemia, quando milhões lamentam a morte de ente queridos ou enfrentam grandes incertezas quando ao seu futuro profissional e a sua sustentabilidade financeira, os lamentos de um casal rico e privilegiado caíram mal.

Se é verdade que ficaram sem apoio financeiro no primeiro trimestre de 2020, também é um facto que deixaram de representar oficialmente a Coroa. Se é verdade que vão deixar de ter a sua segurança garantida pelos títulos reais que detém, é válido questionar se não estando em funções oficiais não devem ser os próprios, pelos seus meios, a contratar e a pagar a sua equipa de segurança.

Por outro lado, não é comparável estar encurralado num palácio ou em casas de 50m2; não é comparável deixar de receber apoio financeiro da família real e continuar rico face à necessidade de fazer contas para pagar a água, a luz e colocar comida na mesa no próximo mês; não é comparável firmar negócios de milhões com a Netflix ou o Spotify ou tentar colmatar perdas com vendas ao postigo ou com take-away.

Se esta conversa com Oprah Winfrey tivesse sido transmitida numa outra altura talvez fosse possível existir maior identificação entre os problemas dos royals e das pessoas comuns. Em 2021, porém, não será o caso.

Num acesso de lucidez, os próprios o assumem: "seguramente não nos queixamos, temos uma vida maravilhosa".

Uma oportunidade perdida (mas não uma ameaça de fundo à realeza)

"Se consegues vê-lo, consegues sê-lo".

Durante a entrevista, Harry e Meghan falaram sobre a forma como este desfecho — o afastamento dos duques de Sussex da família real — representa uma oportunidade perdida para a Coroa se modernizar e ser mais representativa da sociedade britânica.

Harry chega mesmo a dizer que Meghan era um melhores ativos para a Commonwealth que a família podia ter desejado. "Quão inclusivo pode ser conseguires ver alguém que se parece contigo nesta família?", questionaram.

Natasha Mulenga, escritora, concorda e diz que a família real desperdiçou a oportunidade de ser vista como instituição renovada. "Podiam ter usado esta chance para mostrar um novo lado", lamenta.

Kimberly McIntosh, também escritora, viu na forma como os media trataram Meghan o preconceito enraizado na sociedade britânica — algo que a família real podia endereçar como nunca antes. Afinal, diz a sabedoria popular, não há nada tão eficaz como liderar pelo exemplo e o exemplo deve vir de cima.

Mas, como nota Rachel C Boyle, num artigo publicado no The Guardian, é preciso reconhecer a existência de racismo para o combater. "O papel desta família tem ser maior do que serem patronos reais ou marcarem presença em eventos públicos".

Dentro de casa era o lugar certo para começar.

Já quando nos questionamos sobre o real impacto desta entrevista na família real, vale a pena ler o que diz Jonathan Freedland.

Antes de mais, o enredo não é novo, todas as gerações têm um casal cuja história de amor é vítima de uma instituição avessa à mudança: o príncipe Edward e Wallis Simpson; a princesa Margaret e o capitão Peter Townsend; o trio Carlos, Diana, Camila e agora Harry e Meghan.

A diferença, nota o colunista, está precisamente em duas coisas que as gerações mais jovens terão dificuldade em perdoar: o racismo e o minimizar das questões relativas à saúde mental.

No entanto, a monarquia já enfrentou outros desafios bem maiores do que uma entrevista a Oprah, recorda: Afinal, Edward abdicou para casar com uma americana divorciada; Diana, a princesa do povo, teve uma morte trágica que comoveu o mundo.

Depois, acrescenta, as disfunções da monarquia são exactamente aquilo que a torna interessante, tornando-a uma "novela em andamento, uma fonte perpétua de boatos, dramas humanos e distração". Um reality show que começou em 1969, quando as câmaras de televisão tiveram autorização para entrar no palácio, e que se prolonga até hoje.

E se alguns argumentam que o estado de graça da família real pode acabar quando Isabel II, que faz 95 anos no próximo mês, falecer, Freedland lembra que o sistema montado não permite intermitências: "A rainha morreu, longa vida ao Rei".

E agora? Rhiannon Mills, correspondente da Sky News na casa real, cita uma fonte no Palácio: "A guerra acabou, por isso se calhar é melhor parar de bombardear". A entrevista amolgou a Coroa, mas as ordens da rainha são para tratar do tema dentro de casa.

Voltando à questão de partida: quem ficou bem nesta entrevista? A resposta vem pela voz de Tina Brown, jornalista britânica a viver em nova Iorque: "façamos todos uma vénia à verdadeira rainha aqui: Oprah. Acho que vamos falar desta entrevista nos próximos 20 anos".