• Uma estranha carta

Um dia, uma amiga chegou-se ao pé de mim com uma carta da Segurança Social na mão — era dirigida ao pai dela e nenhum deles tinha conseguido perceber o que estava lá escrito.

Peguei na carta. Li o texto. Reli o texto. Sentei-me. Usei régua, esquadro, binóculos, microscópio, martelo e britadeira. Do texto não saiu nada.

Depois de descansar um pouco, lá percebi que o pai dela devia contactar a pessoa que lhe escrevera a carta para resolver o estranho caso dum crédito perdido. Mas de quem seria o crédito? O pai dela ia pagar? Ia receber? Ia ser enviado para a Sibéria? Estive quase a chamar a polícia para deslindar o mistério.

Bem, exagero um pouco. Não demorámos assim tanto tempo a perceber o que dizia o texto: em menos de noventa minutos, lá compreendemos a carta.

O que se passa aqui? O problema será meu e da minha amiga?

Não descarto a hipótese, mas também deixo aqui esta ideia. 

É bem provável que o funcionário que escreveu a carta estivesse com muito boa vontade a tentar explicar algo que é difícil e, no fim, tivesse ficado convencido de que tudo aquilo estava claríssimo — afinal, está habituado àquele vocabulário, àquelas expressões, àquele estilo a que podemos chamar administrês (as linguagens de todas as profissões parecem sempre um pouco estranhas para quem está de fora). Só que acabou por não conseguir o que queria. Os seus leitores de ocasião — o cidadão a quem se dirigia a carta, a sua filha e o amigo da filha — não perceberam nada. E não perceberam nada porque não estavam por dentro daqueles procedimentos e não conheciam toda a legislação nem os passos habituais para resolver aquele problema.

  • Tudo o que sabemos — e os outros não

Esta dificuldade em perceber que os outros podem não saber o mesmo que nós chama-se «maldição do conhecimento». Todos sofremos disto. Basta pensar na forma confusa (que a nós nos parece clara) como damos indicações na rua a quem nos pede: esquecemo-nos sempre de alguma rotunda, porque para nós é claro que devemos seguir em frente — mas não é para a pessoa que ali passa pela primeira vez.

Na prática, aquele funcionário da Segurança Social supôs que todos os portugueses conhecem bem o intrincado funcionamento do sistema. Não é bem assim — pelo menos no que toca a todas as complexidades desse sistema. Quem vive lá trabalha vai assumir que certas expressões são claras e que certas regras e procedimentos são óbvios — quando não o são. 

Não quero generalizar. Também já li bons textos escritos por funcionários da Segurança Social e tenho a sensação de que há um esforço cada vez maior para tornar os textos mais claros. Como em todas as áreas, há quem escreva mal e há muitos que se preocupam em escrever de forma clara e directa. Depois, há outro aspecto a considerar: por mais cuidado que tenhamos, haverá sempre alguém que não percebe — ou não quer perceber — o que escrevemos. E há ainda isto: mesmo quem escreve de forma clara habitualmente acaba sempre por escrever mal esta ou aquela carta. 

Dito isto, vale a pena perder tempo a melhorar o uso do português na relação entre o Estado e os cidadãos. Estão em causa as vidas de todos nós e um texto claro e funcional pode fazer a diferença entre alguém que resolve o seu problema em duas horas — ou passa meses a tentar perceber como foi possível não ter enviado as informações solicitadas em relação ao processo em epígrafe de acordo com o modelo estabelecido na portaria relevante.

  • Uma questão de estilo

Não estou a falar de gralhas ou de expressões que enervam esta ou aquela pessoa. Estou a falar de estilo: neste caso, dum estilo que se quer claro e útil — ora, conseguir afinar o português para comunicar bem é das tarefas mais difíceis neste mundo da língua. Mas é isto que significa escrever bem: fazer o que queremos com a língua. Neste caso, o que queremos é que o cidadão resolva o seu problema.

Não me vou pôr aqui a debitar conselhos, que não é para isso que serve esta crónica. Mas deixo apenas um: podemos testar os textos tendo em conta a quem se dirigem. Às vezes, basta mostrar o documento a alguém que não trabalhe no nosso departamento. Até pode ser a um avô ou a um amigo — ou seja, alguém que não tenha obrigação profissional de perceber o que ali está escrito. Haverá questões de confidencialidade a ter em conta, sei-o bem — mas esta sugestão aplica-se a modelos de textos e não a uma carta em particular.

(Já agora, aqui fica outra ideia: abusar do espaço em branco, dividir o texto em parágrafos, criar listas com pontos ou números… Tudo isto para explicar o que se passa e o que deve o cidadão fazer com aquela informação.)

  • Língua de tribunal

Haverá quem diga: o ideal é educar todos para compreender tudo. Ora, claro! Aliás, diria mais: devemos educar todos para compreender tudo e educar todos para explicar tudo. 

Enfim, enquanto não damos a todos os cidadãos a capacidade de interpretar todos os textos, independentemente da forma como estão escritos, podemos sempre tentar melhorar a vida de todos criando textos mais claros. O que não podemos exigir é que seja necessário tirar um curso de Direito para compreender uma comunicação que nos é dirigida pelos serviços do Estado. 

Muitos dos textos do Estado parecem escritos para proteger o próprio Estado de eventuais reclamações e processos, o que se compreende. Mas, ao lado das referências às leis e portarias e tudo o mais, os cidadãos precisam de informação clara e instruções para resolver seja que problema for. Não há nada mais intimidante do que levar com língua de tribunal quando se abre uma carta do Estado.

  • Perder tempo para ganhar tempo

Imagino que um funcionário da Segurança Social me diga: mas onde é que vou arranjar tempo para pensar nestas coisas? Infelizmente, não tenho solução para a falta de tempo. Mas a verdade é esta: um cidadão que abre uma carta das Finanças ou da Segurança Social fica sempre intimidado — e encontrar um texto que não percebe é remédio santo para uma noite muito mal dormida. Depois, o que o cidadão quer é resolver o problema de forma rápida e prática — o que é bom para todos, a começar pelo funcionário que o vai atender no dia seguinte. É daqueles exemplos que mostram como escrever melhor ajuda a ganhar tempo e a viver melhor.

O estilo do português da administração pública é um assunto pouco agradávelMas arrisco dizer que pensar em formas de afinar esse mesmo estilo é uma oportunidade de melhorar a vida de todos nós — a começar pelo funcionário que tem de escrever cartas aos cidadãos e não quer passar duas horas ao telefone a explicar o que já explicou.


Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas PalavrasO seu livro mais recente é Português de A a Z.

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