Nem todas as eleições são igualitárias. Para estas presidenciais da República Islâmica, começou por haver quase seiscentos pré-candidatos, quarenta dos quais mulheres. Passaram pelo crivo do chamado Conselho dos Guardiões, o grupo de 12 supremos decisores da pureza ideológica, e só sete foram aprovados – cinco deles profundamente hostis aos valores ocidentais. Entre os considerados inadequados para concorrer figurava um ex-Presidente, o actual vice-Presidente, o veterano Presidente do Parlamento e o edil de Teerão. Depois desta primeira escolha ficaram poucas dúvidas do tipo de executivo que vinha pela frente, dúvidas que se desvaneceram durante os debates televisionados. Para se ter uma ideia do tom, Mohsen Rezaee, ex-comandante dos Guardas Revolucionários, disse na cara de Abdolnaser Hemmati, um dos dois centristas: “Se eu for eleito, a primeira coisa que farei é mandar que o senhor e outros membros do Governo Rouhani fiquem impedidos de sair do país e tenham de responder em tribunal pelas traições que cometeram!”. As ameaças eram tais que Hemmati perguntou ao chefe do Judiciário, Ebrahim Raisi: “O senhor pode garantir que não haverá procedimentos legais contra mim depois da eleição?”.

Se haverá ou não, vamos saber em breve: Raisi, considerado um carniceiro até por muitos afectos ao regime, ganhou as eleições. (Pelos vistos, Rezaee não foi considerado suficientemente radical pelos eleitores). Raisi é uma das pessoas colocadas na lista negra das autoridades norte-americanas, “por ser um pilar do sistema que detém, tortura e mata as pessoas que se atrevem a criticar a política oficial”. É preciso notar que entre as vítimas houve menores de idade e mulheres, embora as mulheres, na visão oficial, estejam abaixo da existência política. Rezaee, por sua vez, também está na lista negra por ser o responsável pelo ataque a um centro comunitário judaico em Buenos Aires, em 1994, que fez 85 vítimas.

Hemmati, o candidato que agora se arrisca a ser liquidado por traição, tinha prometido que, se eleito, manteria o actual ministro dos Negócios Estrangeiros, responsável pelas negociações do Acordo Nuclear de 2015. Mas a verdade é que quem esteve ligado às presidências de Rouhani, ganhas por grande maioria em 2013 e 2017, agora passa a ter a cabeça a prémio. Rouhani não pode concorrer desta vez por causa da limitação constitucional de mandatos, e os radicais não podiam deixar passar esta oportunidade de flectir a política iraniana para uma linha mais de acordo com as suas ideias. O outro centrista que conseguiu concorrer, Mohsen Mehralizadeh, desistiu na quarta-feira.

Esta eleição marca também uma mudança geracional. A revolução foi em 1979 e a maioria dos seus protagonistas já morreram ou estão retirados. Estranhamente, os jovens são ainda mais extremistas do que os velhos. Não sofreram os oito anos de guerra com o Iraque, nem conheceram os momentos cruciais da reviravolta que depôs o Xá.

Até hoje não se percebe, nem no mundo nem dentro do país, qual é o real regime que vigora; oficialmente, o Irão é uma república com um Presidente eleito, contudo quem realmente tem o poder é o Supremo Líder, um cargo eclesiástico paralelo ao sistema civil. Raisi foi eleito por cerca de 30% dos eleitores – uma vez que a presença nas urnas foi de apenas 48,8%, dos quais 62% para ele. Os observadores acham que a baixa afluência é um voto contra o sistema, outros que se trata de um protesto pela limpeza que o Conselho dos Guardiões fez nos pré-candidatos.

Observações à parte, o facto é que Raisi é agora o Presidente – e foi imediatamente felicitado pelos presidentes da Rússia, do Paquistão e da Turquia, assim como pelos líderes do Hezbollah e da Autoridade Palestiniana.

A grande questão é, evidentemente, o Acordo Nuclear, que Rouhani tinha conseguido a duras penas em 2015 – contra a vontade da linha-dura – e que Donald Trump em 2018 se encarregou de enterrar, enterrando simultaneamente o poder de manobra dos moderados dentro do regime.

Estão a decorrer negociações em Viena para reanimar o acordo – talvez seja melhor dizer “estavam”, porque não se concluíram antes da eleição, apesar dos esforços dos negociadores de ambas as partes, e agora não se sabe o que irá acontecer. Pode ser que Raisi queira a renovação, tanto para ficar com o crédito de ter sobrevivido às pressões ocidentais como para beneficiar das melhorias que o fim das sanções certamente trarão à estrangulada economia do país. O Supremo Líder não mudou, continua a ser Ali Khamenei e é provável que continue interessado num acordo, deixando para Raisi as outras questões internacionais, como a interferência contínua do Irão no Líbano, Afeganistão, Gaza e Iémen. Mas Khamenei tem 82 anos e parece que sofre de cancro da próstata. Raisi fica em boa posição de o substituir.

No domingo a seguir à vitória, Raisi fez o tão esperado discurso programático. Rejeitou qualquer possibilidade de se encontrar com Biden ou de discutir o programa nuclear iraniano ou travar as milícias “revolucionárias” que semeiam a confusão na área de influência do país – todo o Oriente Médio. Ainda disse que é um defensor dos “direitos humanos”, seja lá o que isso queira dizer na sua boca. Finalmente, considerou a possibilidade de reatar relações diplomáticas com a Arábia Saudita. Resumindo, não disse nada que não se esperasse, mas não revelou realmente se vai mudar alguma coisa, para lá da repressão interna, que se mantém na mão dos Guardas Revolucionários.

Para já, a grande vítima desta mudança é a classe média persa, que não é fundamentalista e continua a ser a grande vítima dos mulá, tanto do ponto de vista da moralidade absoluta que lhe é imposta (nada de cabeças descobertas, modas ocidentais, etc), como da situação económica estranguladora, impedida que está de fazer negócios com o estrangeiro e condicionada pela enorme corrupção do aparelho de Estado.

Também será interessante ver qual será a posição de Israel, o único país que ousa fazer frente aos persas e que agora também mudou de guarda.

Tempos sombrios, certamente.

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