Desde 1996, há 25 anos, que o partido Likud domina o parlamento de Tel-Aviv, mesmo sem maiorias absolutas; e desde 2009 que o Governo é dirigido por Benjamin Netanyahu, um hábil político que tem conseguido sempre o que quer. Mas o reinado do “King Bibi”, como lhe chamam os desafectos, parece finalmente ter acabado. Parece, porque até quarta-feira, ainda pode acontecer o inconcebível.

Israel é, como toda a gente sabe e os israelitas fazem questão de salientar, uma democracia, com eleições directas de grande adesão popular. Num país em estado de guerra permanente, cercado por inimigos próximos e distantes, é um caso de sucesso democrático difícil de superar. Mas isso não significa que o ambiente político seja pacífico e transparente, bem pelo contrário. No Knesset, o parlamento de 120 lugares, encontram-se representados partidos de todas as cores do espectro político, alguns com propostas antagónicas, obrigando a coligações variáveis e um jogo de cintura em desequilíbrio constante.

O pano de fundo de todo o país, dirigentes e dirigidos, é a guerra. Quando não está activa, o que já aconteceu muitas vezes desde a fundação do Estado, em 1948, é latente e exerce uma pressão iniludível sobre todas as decisões, colectivas e individuais.

As propostas para sair deste estado de conflito têm sido muitas e variadas ao longo dos anos, mas é hoje uma evidência que não terá fim à vista. Israel é um espinho cravado na carne viva dos árabes, que nunca aceitarão a sua existência; por sua vez, os israelitas jamais desistirão do seu projecto de nação bíblica, sediada na “Cidade do Templo”, Jerusalém. Os primeiros colonos judeus instalaram-se na Palestina, a terra de onde começaram a partir quando Roma era Império, ainda antes da II Guerra Mundial, mas foi no fim do conflito que voltaram aos milhares, com o objectivo declarado de reconstituir o seu país. Os árabes, a quem tinha sido prometido pelas potências europeias que tal nunca aconteceria, sentiram-se traídos, e com o tempo esse sentimento converteu-se numa vontade inabalável de fazer desaparecer Israel.

Várias guerras e conflitos localizados terminaram sempre com a vitória dos israelitas, cada vez mais musculados e organizados. Depois de um longo historial de violência e acordos não cumpridos, chegou-se finalmente, em 1974, a uma proposta iniciada em 1947, que ficou conhecida como a “Solução de dois Estados”. Este conceito, alterado territorialmente meia dúzia de vezes, foi sempre rejeitado, ora por um lado, ora pelo outro, e assim chegou à situação presente, que é a mesma de sempre: Israel consolida-se e expande-se, à custa da população árabe da região, que entretanto cresceu muito desde 1948.

Todos os governos de Tel-Aviv têm de lidar com este estado de coisas, e são as diferenças de opinião entre os israelitas que levaram à existência de tantos partidos – inclusive um deles, que representa os árabes residentes em Israel, cerca de 20% da população. Considerados cidadãos de segunda, também votam.

Em termos gerais, isto é, simplificando incontáveis minudências, os israelitas dividem-se entre os que não querem fazer qualquer concessão aos árabes – a “direita” nacionalista – e os que crêem ser possível fazer um acordo com o inimigo – a “esquerda” liberal.

O Likud, partido de Benjamin Netanyahu e, antes dele, de Menachem Begin, Yitzhak Rabin e Ariel Sharon, é contra as concessões. Não sendo a agremiação mais à direita, note-se; existem partidos que querem simplesmente retribuir aos árabes o que os árabes querem fazer com os judeus, matá-los todos e atirar os corpos ao mar.

O problema de Netanyahu não tem sido a política internacional do país; embora existam outras opiniões, as suas decisões são suficientemente aceites pelo eleitorado, que tem sustentado maiorias do Likud – maiorias simples, que obrigam a coligações com outros agrupamentos de direita, mas que Netanyahu tem conseguido manobrar no Knesset. O apoio de Trump, que finalmente reconheceu a velha ambição israelita de tornar Jerusalém a capital do Estado, foi o ponto alto da sua política diplomática. Mas, precisamente no meio do que parecia o seu sucesso retumbante, Netanyahu viu-se a braços com graves acusações de corrupção e com um certo cansaço dos eleitores perante a sua agressividade. A corrupção deu origem a três processos graves, por fraude, violação de segredo (“breach of trust”) e corrupção. O resultado foi uma instabilidade parlamentar que obrigou a quatro eleições nestes últimos dois anos. Em todas elas o Likud foi o mais votado, mas sem um peso significativo: nas eleições de Março obteve 30 lugares, quando precisaria de 61 para a maioria absoluta.

Como mandam as regras, o Presidente encarregou-o de formar Governo a 5 de Maio. Mas, desta vez, o Rei Bibi não conseguiu pôr ordem nas hostes e não convenceu nenhum outro partido a apoiá-lo. Estão todos fartos dele e viram aqui uma oportunidade – não se sabendo exactamente como, mas ainda assim uma oportunidade.

E foi o que aconteceu. Ainda no cumprimento das regras, o Presidente convidou Yair Lapid, o dirigente do segundo partido mais votado, “Yesh Atid”, centrista, que obteve 17 parlamentares, a formar governo. E também lhe deu um prazo, 28 dias.

Seguiram-se negociações intensas, que ninguém acreditava virem a dar em alguma coisa.

Só que deram.

No último dia, meia hora antes de o prazo acabar, Lapid anunciou ter conseguido uma coligação surreal de oito partidos, completamente diferentes, mesmo opostos, cujo único ponto comum é o de não quererem que Bibi continue.

Esta coligação será liderada nos primeiros dois anos por Naftali Benet, do partido ultranacionalista religioso, Yamina, e nos dois anos seguintes por Lapid, cujo partido é considerado centrista no espectro político nacional.

Para se ter uma ideia do saco de gatos que se formou, veja-se quais são os oito felinos:

Yesh Atid (centro), Blue and White (centro), Yisrael Beytenu (direita nacionalista), New Hope (centro-direita), Trabalhistas (social-democrata) e Ra’am (árabe, liderado pelo islâmico Mansour Abbas).

Como é que o nacionalista religioso, milionário tecnológico e ex-ministro das Finanças, Naftali Bennett, a favor dos colonatos e contra a solução dos Dois Estados, se vai entender com Mansour Abbas, do partido árabe, é a primeira pergunta a fazer.

As outras perguntas são como se vai lidar com o conflito com os palestinos, qual o programa para o relançamento da economia, e que lugar terá a religião nas decisões do Estado. Respostas, ninguém as tem. Talvez nem os próprios.

A tomada de posse terá lugar na próxima quarta-feira, dia 9 de Junho. Até lá, Bibi ainda tem algumas possibilidades de sabotar a coligação, uma vez que o Governo precisa de ser votado no Knesset e, nestas circunstâncias, basta que um deputado dos partidos “vencedores” mude de ideias para que caia tudo por terra, convocando-se novas eleições. Netanyahu já disse que "este Governo será um perigo para a segurança do Estado de Israel. Este é o golpe do século!"

Golpe do século, realmente. Mas pode ser um golpe vencedor.

Agora, governar, será outra história...