Na quarta-feira, 24 de Novembro, um barco de borracha carregado de imigrantes naufragou no Canal da Mancha e morreram 27 pessoas, incluindo sete mulheres e três crianças. Eram maioritariamente curdos do Iraque e da Síria.

Este terrível incidente trouxe novamente para as manchetes a questão dos imigrantes, do mesmo modo que a fotografia de uma criança curda síria afogada numa praia da Turquia, em Setembro de 2015, chocou o mundo inteiro.

Estes dois desastres, e outros menos reportados, não dão uma ideia da escala descomunal dos movimentos migratórios nas franjas da Europa. Só este ano, e apenas no Canal da Mancha, houve quarenta e sete mil (47.000!) tentativas de atravessamento ilegal e as autoridades francesas salvaram sete mil e oitocentas pessoas. O acordo entre o Reino Unido e a França, semelhante a acordos de que falarei a seguir, estipula que os ingleses pagam aos franceses para impedir que os barcos – geralmente salva-vidas de borracha – sejam impedidos de se fazer à água.

Por muito impressionantes que sejam estes números, não se comparam com os da imigração das costas do Sul do Mediterrâneo para as do Norte – ou seja, de África para a Europa, somados aos que tentam por terra, através da Turquia. Só em 2019 foram dois milhões e setecentos mil (2.700.000!) . Em 2020, 5,1 dos habitantes da União Europeia eram não-europeus.

As migrações em massa sempre existiram, em contextos históricos diferentes. Na Antiguidade eram invasões bélicas; nos tempos modernos são o reflexo da sobrevivência das populações de estados falhados, que tem de escolher entre emigrar ou morrer de fome. Os países com melhor nível de vida são sempre um magneto para os que tiveram o azar de nascer em países pobres e/ou dominados por autênticos genocidas do seu próprio povo, ou gananciosos que enriquecem explorando as riquezas nacionais em proveito próprio. Neste momento da História há vários magnetos, sendo os maiores os Estados Unidos e a Europa; e há dezenas de estados que repelem os seus cidadãos. 

Não vou aqui falar dos Estados Unidos, que são o "El Dorado" (quiçá ilusório) das Américas Central e do Sul. Fico-me pela Europa, que é onde estamos. Sobre o enorme movimento migratório para o nosso continente, não restam dúvidas, os números falam por si. E quanto à persistência desse movimento por muitos anos mais, também não há que duvidar. Estão constantemente a acontecer novos focos de miséria, como agora o Afeganistão, que se juntam aos já existentes, como a Síria, o Curdistão, a Líbia e, em geral, toda a região subsaariana e vários países do Oriente. Encontramos entre os que fogem, rohingyas, afegãos, etíopes, guineenses, minorias daqui e dali – a lista é interminável.

Na Europa, unida geograficamente, mas desunida politicamente (não só entre países mas dentro de cada um deles) as opiniões são muitas e conflitantes. Há quem ache que os imigrantes vêm tirar trabalho aos locais, sobrecarregar o Estado Social, aumentar a criminalidade e diluir os tão cantados “valores ocidentais” (que vão do consumismo à religião). E há quem veja os imigrantes como o necessário sangue novo, disposto a fazer o trabalho que nós já não queremos fazer, pagante de impostos uma vez empregados e portadores de uma diversidade cultural que nos enriquece. Os primeiros falam de uma “invasão” de incómodos; os segundos lembram que 5% é uma percentagem negligenciável da população.

No caso português, em que os nativos estão a diminuir, é o milhão de estrangeiros que mantém a população nos mesmos dez milhões que temos há décadas, ao mesmo tempo que a rejuvenescem e nos tornam mais cosmopolitas.

Enquanto se discute, não há uma política coordenada. Os alemães abriram as portas à imigração; os franceses fazem de conta que os imigrantes se integram automaticamente, dando força aos partidos racistas; os polacos e húngaros rejeitam-nos; os italianos e gregos não conseguem absorver tanta gente e queixam da sobrecarga em que a posição geográfica os coloca.

A única solução tem sido, até agora, fazer o que os ingleses fazem com os franceses – pagar aos países de partida para que sejam eles a estancar o fluxo. 

Os casos mais evidentes são a Turquia e a Líbia. No caso da Turquia, Erdogan recebe um subsídio por reter cada imigrante que tenta passar para a Europa e ainda os usa como moeda de chantagem. No caso da Líbia, à falta de um único senhor da guerra com que se possa fazer negócio, a Europa financia e equipa uma chamada “Guarda Costeira”, que não passa de um gangue que explora e escraviza quem apanha. E escravizar não é uma figura de estilo; há mercados de escravos na Líbia à vista de quem quiser ver.

Uma investigação recente, publicada na revista “New Yorker” (contém paywall) relata em pormenor o esquema montado no país e o sofrimento por que passam estes imigrantes, alguns vindos de muito longe no continente africano, ou que percorreram caminhos impensáveis a partir do Oriente.

Não são só os gangues de contrabandistas humanos que enriquecem à custa desta miséria. Agora mesmo, o genocida Al-Assad exporta sírios para o ditador Lukachenko os largar às portas da Polónia, que os expele brutalmente.

Pode argumentar-se que a Europa não tem nada a ver com a desgraças de outros países – e contrapor que essas desgraças são o resultado do colonialismo que a Europa praticava até há poucas décadas. E pode dizer-se que os valores europeus estão ameaçados, como também é possível responder que esses valores incluem o humanitarismo - ajudar quem precisa. 

Seja quais forem as origens, e os argumentos, o facto concreto, actual, é que milhares, dezenas, centenas de milhares de pessoas querem entrar. Será possível absorvê-las, incutindo-lhes os nossos valores ao mesmo tempo que respeitamos os deles? Não se sabe; mas podia-se pelo menos tentar. 

Cada caso é um caso. Se houvesse uma política europeia única de ajudar os que querem aproveitar as vantagens de viver aqui e expelir os que só querem aproveitar-se dessas vantagens, talvez se chegasse a uma solução. Custam caro, os programas de integração e o acompanhamento dos resultados individuais, mas talvez seja mais barato e mais produtivo do que pagar a bandidos para fazer o trabalho sujo.

O que não é produtivo é ver dois países europeus – no caso, o Reino Unido e a França – a atirar culpas um ao outro, sem conseguirem consertar uma solução prática.

Talvez seja mais um sinal da decadência da Europa, não saber transformar um desafio numa vantagem.

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