1. Lisboa há 40.000 anos

A nossa capacidade de reconstruir as línguas do passado não consegue recuar mais de uns 6.000 ou 7.000 anos — e mesmo essas reconstruções são arriscadas. No entanto, todos os linguistas concordam que há largas dezenas de milhares de anos já haveria línguas humanas. Alguns afirmam mesmo que há milhões de anos que se ouvem no mundo línguas humanas — mas não precisamos de ir tão longe.

Assim, se caíssemos na Lisboa de há 40.000 anos, que seria uma agradável zona de rios, florestas e colinas, um pouco mais longe do mar do que hoje, encontraríamos bandos de humanos, talvez a caçar, talvez a conversar, e se tempo tivéssemos para estudar os seus hábitos, encontraríamos línguas com gramáticas complexas e palavras tão expressivas como as palavras de qualquer língua actual. Ninguém escrevia, mas todos conversavam com a mesma intensidade das conversas de agora.

O vocabulário seria o necessário para o tempo, bastante mais rico do que o de hoje na referência a plantas ou perigos naturais, talvez um pouco menos expressivo na descrição de ferramentas informáticas (entre outras).

Tais antigas línguas foram mudando, misturando-se, desaparecendo, dividindo-se. Algumas delas deram origem às línguas que falamos hoje. Outras terão desaparecido sem deixar rasto — ou deixando apenas uma ou outra palavra ou construção que agora usamos sem suspeitar que teve origem no falar de uma velha tribo que por aqui cirandou há muitos milhares de anos, com os seus mitos, as suas histórias, as suas ilusões e certezas. Um tempo tão colorido como o nosso para quem nele viveu.

2. Línguas no fim do mundo

Avancemos até aos tempos em que já sabemos alguma coisa sobre as línguas desta zona. Muito antes do latim, haveria línguas pré-indo-europeias, que deixaram poucos vestígios que consigamos identificar.

Dizer poucos vestígios talvez seja injusto, se alargarmos o nosso olhar para toda a Península onde está Lisboa. Afinal, um dos vestígios é uma língua inteira, ainda hoje falada na Península: o basco, uma língua pré-indo-europeia. Sabe-se que houve na Península uma outra língua a que chamamos ibérico, de que restam algumas inscrições, e outras, de que sobraram uns poucos intrigantes vestígios.

Há 7.000 anos, quem vivesse à volta do estuário do Tejo ouviria palavras de viajantes de outras zonas da Ibéria, que falariam nessas línguas antigas. Não seria impossível encontrar falantes do basco da época, do tal ibérico, de línguas mais próximas que hoje não têm nome — e ainda palavras das línguas do Norte de África. Não se ouviria, certamente, uma só língua. É difícil reconstruir a paisagem linguística desses tempos. Temos apenas vislumbres.

Para contar a história das línguas de Lisboa, temos agora de dar um salto até ao outro lado da Europa. Na zona da actual Ucrânia, pensa-se (a localização exacta é objecto de velha controvérsia), falava-se há uns 6.000 anos uma língua que tem hoje o desconfortável nome de proto-indo-europeu. Que nome teria na época, ninguém sabe.

Esta língua veio a ter uma importância tremenda, sem que os seus falantes tivessem alguma ideia disso — línguas actuais tão díspares como o ucraniano, o português, o persa, o inglês, o russo, o hindi ou o sueco descendem todas, com mais ou menos sobressaltos, desse falar antigo.

O proto-indo-europeu não apareceu do nada — veio de línguas ainda mais antigas e todas elas terão vindo, se andarmos suficientemente para trás no tempo, de África. O certo é que esta língua viajou, a bordo do cérebro dos falantes, em direcção ao ocidente — acabando por chegar a este fim do mundo onde está Lisboa em duas levas.

3. Celtas, fenícios e outros viajantes

Todos já ouvimos falar dos celtiberos e de outros povos das redondezas. Foi essa a primeira onda de línguas indo-europeias que chegou a Lisboa: as chamadas línguas celtas. Por Lisboa e arredores falar-se-iam estas línguas e nelas haveria um nome para este lugar.

Que nome? Não sabemos.

Podemos, no entanto, imaginar estas colinas de há milhares de anos, por onde corriam éguas que emprenhavam só com o vento, como vários autores romanos descreveram e recordou Damião de Góis, em latim, na sua Urbis Olisiponis descriptio, de 1554, no auge da cidade.

Latim… É hoje língua antiga, alguns crêem-na morta — mas, nesta época em que aterrámos, é uma língua do futuro. Este é ainda o tempo das línguas sem nome.

As línguas indo-europeias não apagaram todas as outras. Nestas colinas continuaram a ouvir-se línguas de muitas origens — até línguas do levante por aqui se falaram.

Sabe-se que chegaram a Lisboa os fenícios, que trouxeram a sua língua semítica (da mesma família que o árabe e o hebraico), também ouvida em redor desta baía, e o seu sistema de escrita (uma velha tradição afirma mesmo que o nome actual da cidade terá origem fenícia, mas não há fundamentos sólidos que a sustentem).

Os caracteres fenícios vieram a dar origem ao nosso alfabeto, passando pelo alfabeto grego, que lhes acrescentou as vogais, dando por fim origem ao alfabeto latino, que acabou por também aqui vir parar, a cavalo da língua latina — mas ainda não chegámos lá…

Os caracteres fenícios foram usados pelo Mediterrâneo fora e chegaram mesmo a este porto atlântico, muito antes de se terem transformado em letras latinas. Estão presentes, por exemplo, num túmulo do século VII a. C., encontrado em Lisboa há poucos anos. A pedra tinha sido reutilizada numa construção romana mais recente, como descrito no artigo em que os arqueólogos revelam a descoberta (Neto et al. 2016).

créditos: Neto et al. 2016

O que está ali escrito? Tanto quanto é possível reconstruir, a inscrição refere-se a Wadbar, filho de Ibadar. É o mais antigo nome de lisboeta que se conhece.

Na Lisboa de Wadbar, ouviam-se línguas de toda a Ibéria e do Norte de África. Ouviam-se palavras fenícias, cartaginesas e gregas — a lenda diz, aliás, que foi Ulisses que fundou a cidade. Será um mito, mas a verdade é que as várias línguas do Mediterrâneo vieram parar a esta cidade atlântica, para lá do fim do mundo.

4. Línguas vindas de Itália

A primeira onda de línguas indo-europeias foram as tais línguas celtas, que se vieram somar às línguas pré-indo-europeias e às outras línguas que aqui aportavam. A segunda onda de idiomas indo-europeus, já bastante diferentes das línguas celtas, foi a onda das línguas itálicas.

O chamado lusitano, que terá sido falado numa região a norte de Lisboa, poderá ter sido uma língua itálica. A verdade é que temos tão poucas inscrições que não é possível saber exactamente a que família das línguas indo-europeias esta língua pertence — mas era claramente indo-europeia (e foi escrita com o alfabeto latino).

A nossa propensão para ligar o termo «Lusitânia» a Portugal talvez nos incline para considerar o lusitano como uma língua muito nossa; é possível que tenha deixado vestígios no latim e que ainda hoje usemos uma ou outra palavra que tenha passado pelo lusitano; no entanto, podemos dizer o mesmo das outras línguas por aqui faladas. Mais: à época, ninguém chamaria «lusitano» à língua. Esse é nome muito posterior.

5. Latim à lisboeta

Chega então a Lisboa, no século II a. C., uma língua vinda da Península Itálica: o latim. Durante muito tempo, em Lisboa, ouvir-se-iam muitas das línguas da zona, à mistura com latim dos soldados e dos romanos — o latim vulgar mais que o latim clássico, que apareceria na escrita e num ou noutro discurso.

Os romanos não substituíram a população. Vieram aos poucos, misturaram-se, a população local ganhou hábitos romanos — e entre esses hábitos, o grande hábito da língua. Os habitantes desta cidade começaram a falar latim com cada vez maior frequência, as novas gerações ouviam muito latim, que tinha mais prestígio que as anteriores, o próprio discurso na língua anterior misturava-se facilmente com a nova língua…

Quando deram conta, os falantes já nem se lembravam da língua dos avós — mas é provável que falassem latim com certas inflexões das antigas línguas — falavam latim com sotaque. O latim falado em Lisboa tinha o sabor de línguas antigas.

6. Bem-vindos a Hispânia

Algumas centenas de anos depois da chegada do latim a estas paragens, ouviríamos latim em toda a Península, com a excepção conhecida do basco, ali a um canto, e outras excepções que hoje não conhecemos (a língua amazighe e relacionadas, por exemplo, já por cá se ouviriam).

O latim hispânico tinha características próprias — um habitante de Itália reconheceria um hispânico pelo seu sotaque, talvez pela sua sintaxe peculiar e, certamente, por uma ou outra palavra típica.

O latim nunca foi (como nenhuma língua alguma vez o foi) uma língua uniforme. Mesmo dentro da Península, o latim falado em Lisboa teria características próprias, fruto da particular mistura de línguas que por aqui havia antes e ainda das várias influências que chegavam à cidade.

Lisboa era habitada por hispanos, o nome que os habitantes dariam a si próprios, cidadãos romanos de uma zona particular do Império. Parte da população teria vindo do Norte de África, outra de outras zonas. As misturas entrevêem-se no estudo da História e da genética, mas são demasiado complexas para se conhecerem em detalhe.

Um lisboeta do século III d. C. falaria latim hispânico à lisboeta. Andando para leste, em direcção, por exemplo, a Barcelona, iria encontrando variações, sem cortes, sem deixar de compreender o que ouvia. Essas variações, subtis, acabaram amplificadas pelo tempo. São sementes das línguas que virão.

7. Uma língua que fica

A Queda do Império Romano, enquanto acontecimento cataclísmico, é uma forma peculiar de contar a história. À época, é provável que ninguém tivesse dito: «Olha, o Império acabou!». Antes de mais, porque o Império, na verdade, não acabou. Continuou a haver um imperador em Constantinopla, a cidade que mais tempo foi capital do Império, durante séculos e séculos. A grande mudança foi, mais que uma queda, a cristianização do Império.

Quando vários senhores germânicos começaram a governar grandes parcelas do Império, assumiram o cristianismo e as tradições romanas e a população não terá sentido um corte radical com o passado. Lisboa continuou a ser uma cidade hispana (ou seja, romana) e cristã.

Poucas palavras germânicas por aqui ficaram, o que mostra como os reinos visigodo e suevo, tradicionais simplificações de uma história convulsa, se assumiram como continuação das sociedades romanizadas. Os lisboetas continuaram a falar latim, com algumas palavras de outras paragens.

Da mesma forma, quando grande parte da Península passou a ser governada pelos muçulmanos, no século VIII, a população de Lisboa continuou a falar a língua que já falava, mas agora com o árabe como língua da administração e de prestígio.

Ouvir-se-iam também, pelas ruas de Lisboa, línguas da família do amazighe, de que poucos falam — e que não chegaram com o domínio muçulmano: já cá estavam. Essas línguas ainda hoje são faladas no Norte de África. As letras à esquerda nesta rocha, em Marrocos, representam uma língua que descende de línguas bem lisboetas (não é um código, é o sistema de escrita chamado tifinagh):

O nome de localidade marroquina em tifinagh e em alfabeto latino. créditos: Alicroche

Um cristão lisboeta do século X falaria aquilo a que chamaria latino, mas utilizaria palavras árabes para certos conceitos. Diria, talvez, que precisaria de um alvará para uma certa actividade, por exemplo, uma palavra que ainda hoje usamos.

A esse latim que por aqui continuou a ser falado, com influências árabes e amazighes, chamamos hoje moçárabe, uma designação que não era usada na altura. O próprio cristianismo continuou a ser praticado, com um rito próprio que denominamos também moçárabe.

8. Lisboa do ano 1000

Se aterrássemos na Lisboa do ano 1000, ouviríamos línguas da família do amazighe, ouviríamos árabe (pelo menos, nas orações), ouviríamos o tal moçárabe, que também variaria de região para região — um visitante de Badajoz falaria de maneira diferente — e ainda o latim variado dos vários reinos cristãos do Norte entre visitantes ou gentes que viessem visitar ou viver para Lisboa vindos de lá.

Se um lisboeta do século X reparasse na maneira de falar de algum viajante vindo da Galécia, lá do Norte, talvez notasse a maneira peculiar como diria as palavras, deixando cair os sons /n/ e /l/ no meio das palavras. Diria, por exemplo, «lua» — e não «luna», como se dizia em Lisboa. Por esta época já aquelas pequenas diferenças entre o latim das várias zonas da Hispânia estariam amplificadas e a caminho de se tornarem nas línguas que hoje conhecemos. Mas ainda não chegámos lá.

Em 1108, a Lisboa muçulmana, onde a população falava latino e era ainda, em grande parte, cristã, foi invadida pelos noruegueses, a caminho da Palestina. Ouviu-se então, por estas ruas, o antigo nórdico que associamos aos viquingues. Não durou muito: depressa a cidade voltou ao domínio muçulmano. As lutas entre senhores continuaram, para aborrecimento geral da população.

Nesta Lisboa antes de Portugal, ouvimos pelos séculos fora línguas de que não sabemos o nome, línguas celtas, línguas itálicas, línguas do Norte de África, o árabe em vários sabores, o hebraico das orações judaicas, uma ou outra conversa em línguas germânicas — e até um pouco de antigo nórdico… Muitas destas línguas misturavam-se nas ruas e nas casas.

Uma cidade digna de se chamar cidade raramente tem uma só língua.

9. Uma língua vinda do Norte

Em 1147, um rei vindo de norte, com ajuda de cruzados, cercou a cidade.

Os soldados de Afonso Henriques falariam várias formas de linguagem — a língua das ruas do noroeste da Península, a que poucos chamariam latino, por estar a palavra reservada para o latim da escrita. A sul, note-se, com o árabe como língua de prestígio e da escrita, a palavra latino podia designar perfeitamente a língua da rua — assim, podemos dizer que o cerco de Lisboa foi um cerco de falantes de linguagem a uma cidade habitada por falantes de latino (entre outras línguas), embora esta dicotomia seja uma simplificação.

Hoje, anacronicamente, chamamos galego-português à língua de Afonso Henriques e moçárabe à língua de grande parte da população da Lisboa cercada. Ninguém, à época, chamaria tais coisas aos falares que lhes saíam da boca para fora.

Os cruzados, claro, falavam também várias línguas. Os nobres ingleses, por exemplo, conversariam em francês normando, com mistura do inglês do povo do seu país. Os flamengos falariam um dos vários falares frâncicos (germânicos) ou latinos (do Norte de França). As divisões entre povos eram porosas. Ninguém tinha um país, uma palavra que surgiria muito depois. Teriam terras e teriam senhores, numa rede de relações complexas muito diferente da nossa Europa de agora, dividida em estados soberanos.

Também poucos desses cruzados teriam uma só língua: saberiam comunicar em vários falares latinos, germânicos ou celtas, com misturas e aproximações. O nosso tempo de países que preferem ter (mesmo quando não têm) uma só língua oficial não nos ajuda a compreender a situação.

A população chamaria francos aos cruzados, uma designação geral para os habitantes de largas zonas do Ocidente do Império. Estes cruzados francos comunicariam bem entre si numa língua franca, língua dos francos, feita dessas misturas e aproximações.

Lingua franca era também a designação da língua do Mediterrâneo que servia para que estes francos do Ocidente comunicassem com os romanos do Oriente — os romanos eram agora os habitantes do Império a Oriente, com a capital em Constantinopla (ou Bizâncio). Naquela época, gregos que aportassem à Lisboa conquistada pelos cruzados diriam de si próprios, em grego, que eram «rhōmaîoi» — romanos — em terra de francos. Por esses tempos, a língua dos romanos era o grego; a língua dos francos era ainda o latim, mas só na escrita — da boca para fora, a conversa era outra.

10. Línguas cercadas

Voltemos à Lisboa cercada por Afonso Henriques. Quando a cidade cai, por fim, os novos senhores pouca diferença visível encontravam entre os muçulmanos e os moçárabes cristãos. O próprio bispo cristão foi executado. Lisboa ganhou um novo bispo — inglês — e novos senhores.

A população não terá deixado de falar de repente o seu latino à lisboeta, o tal moçárabe com muitas palavras árabes. A língua de prestígio voltou a ser o latim da escrita. Os novos senhores da cidade, vindos de norte, falavam no dia-a-dia um latim diferente, a linguagem do Noroeste. Como eram variantes latinas, terá havido uma natural e progressiva aproximação entre as formas de falar. A sintaxe e muito vocabulário do Norte foi-se imiscuindo na língua dos lisboetas, que mantiveram certamente um sotaque e vocabulário próprios.

Nessa época, se gente de outras partes da Península por aqui aparecesse, dir-se-ia que falavam de outras maneiras, mas não havia ainda ideia de que esses falares eram línguas distintas (línguas a sério, na mente da época, eram o latim, o grego, o árabe…). Mas, ainda sem nome fixo e em cinco faixas imprecisas, as línguas latinas da Península espalhavam-se de norte para sul, substituindo lentamente o moçárabe do Sul.

Foi o que aconteceu nesta faixa ocidental. Por enquanto, ainda ninguém chamava português à língua de Lisboa — mas um passo importante estava dado: a cidade fazia agora parte do Reino de Portugal.

A história continua…

Referências

Este artigo foi escrito com base na bibliografia nesta página, em especial: a história da linguagem (Everett 2017; Janson 2018), o proto-indo-europeu (Anthony 2007; Pereltsvaig 2015), a inscrição fenícia em Lisboa (Neto et al. 2016), o latim no Império e na Idade Média (Alkire & Rosen 2010; Gabriele & Perry 2021; Ostler 2007), as línguas dos cruzados (Pereltsvaig 2021), as línguas ibéricas (Janson 2018) e a história do português (Cardeira 2006; Faraco 2019; Teyssier 1982; Venâncio 2019, entre outros). Obrigado a Hugo Maia, tradutor de árabe, que me sugeriu o uso da palavra «amazighe» para designar essa língua.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang