Maria Manuel Viana morreu hoje. Tinha 67 anos de idade. Éramos amigas. E ela era mãe, avó, madrasta. Escritora e tradutora. Era fascinada por livros policiais, preferencialmente nórdicos. Devoradora de literatura espanhola - ela que traduziu alguns livros dessa língua que amava. Francófona.

Atenta ao mundo, seguia todas as notícias com a disponibilidade de quem quer entender. Dizia que sofria de amusia, que é como quem diz, não percebia a música ou o fascínio pela mesma. Apesar disso, gostava da banda sonora de Tom Waits para o filme de Coppola One From the Heart. Odiava a areia da praia. Amava os encontros anuais com antigos alunos. Era amorosíssima nas piores alturas dos outros, solidária. Gostava do superlativo absoluto.

Votava partido socialista, foi vereadora da câmara de Castelo Branco, deixou uma obra ímpar, mas o partido não a tratou bem. Foi a grande promotora da abertura de uma das primeiras casas de acolhimento para mulheres vítimas de violência doméstica. Foi coordenadora do Centro de Área Educativa, presidente da Comissão Distrital de Protecção de Menores e coordenadora do Gabinete para a Igualdade, Contra a Violência sobre Mulheres e Crianças Ativista pelos direitos das mulheres, lutou muito pela interrupção voluntária da gravidez. Pelo casamento gay.

Gostava de cortar o cabelo mantendo uma ligeira assimetria. Odiava almoços ou jantares extensos. E sentia a mesma aversão face a conflitos, não queria desordem ou discussão. Gostava de tentar compreender os outros, deixava-se compreender só até certo ponto. Era reservada.

Amava o cinema. Gostava de gatos, embora a relação com a última gata não tenha sido particularmente feliz, o mau feitio da bicha não ajudava. O teatro comovia-a. Via os jogos de futebol a roer as unhas. Acompanhava os actos eleitorais do nosso e de outros países com atenção a todos os pormenores. Era contra todas as formas de fascismo. Estudou o Holocausto com a certeza de que não podemos esquecer, que não o podemos repetir.

Perdeu na vida vários amores, entre eles o pai com quem tinha boa relação, um marido que não chegou a ser, o filho mais novo. Esta última morte roubou-lhe o chão que tinha como certo. Foi há meses.

Adorava os netos e orgulhava-se disso: de serem seus netos. O mais novo levava-a ao riso. Com a mais velha tinha outros encantos, trocavam sms.

A aventura de escrever um romance a quatro mãos foi um período feliz que vivi com a mm, era assim que a tratava, e sempre em letras minúsculas como quem não faz barulho. Às tantas, já não sabíamos quem tinha escrito o quê, entrámos num mundo nosso. Não o repetiríamos, mas falaríamos sobre essa possibilidade. O seu último texto está na revista Egoísta deste mês. Disse-me que não chegaria a ver a revista, que não fazia mal. Leu todos os livros que escrevi, fez notas com a gentileza do lápis, opinava preferencialmente por escrito. Dispensava falar ao telefone.

Foi de uma ternura imensa para com os meus filhos. Ouviu, ajudou, tentou compreender. Foi sempre solidária. Desculpava as auto-ficções de quem gostava. Tinha um fascínio por bonecos a representar ovelhas e, por isso, existia todo um rebanho na sala da sua casa. Fumava muito, talvez demais.

Era portuguesa, profundamente europeia. Foi aceitando as coisas da vida com a tristeza de que são dotados apenas alguns, os que são especiais e não o sabem. Era uma mulher inteligente, misteriosa e com um sentido de humor particular.

MM teria defeitos. Agora não me ocorrem.