Quem segue mais ou menos o que se passa no Brasil, sabe que se passa sempre qualquer coisa, geralmente má, muito má ou péssima. E quem segue a trama tupiniquim diariamente (por exemplo, através de uma newsletter factual e imparcial), vive num estado de emoção constante que nenhuma novela pode proporcionar – até porque é real, ao vivo e a cores. Garridas.

Vou partir do princípio que o leitor conhece as linhas gerais da peça, até porque para fazer uma retrospectiva inteligível seria preciso uma edição completa do SAPO24. Só para relembrar o essencial e enquadrar a importância do que aconteceu esta semana: o Presidente Bolsonaro, de direita radical tropical (isto é, um bocado abananada, com tons evangélicos), foi eleito em 2019, como reacção aos governos do PT, que governaram entre 2003 e 2016.

Discutir-se-á eternamente se os governos do PT foram bons ou maus, dependendo da ideologia de quem os analisa; mas é um facto que o vocabulário de esquerda e as profundas reformas sociais foram acompanhadas de um índice revelado de corrupção sem precedentes e que, em 2016, quando a presidente Dilma Roussef, sucessora e continuadora do antecessor Lula da Silva, foi deposta numa manobra política parlamentar de valor duvidoso – o “golpe” – a maioria da população estava cansada das promessas não cumpridas e tinha perdido a enorme esperança que representara a eleição de Lula. À queda de Dilma, seguiu-se um presidente sem carisma e de legitimidade duvidosa, Michel Temer, cujo mandato decorreu de 2016 a 2019. Era evidente que se Lula se candidatasse às eleições de 2019 ganharia, pois a sua popularidade é única na história do país e ultrapassa a repercussão negativa da corrupção faraónica do PT. O modo encontrado para impedir a sua recandidatura foi arranjar-lhe um processo judicial que culminou na sua condenação, tornando-o inibido do seu direito cívico de candidatura e consequente elegibilidade.

Nas eleições de 2019, o PT apresentou como candidato o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, um político suave que tinha escapado aos escândalos de corrupção do partido, mas que não tinha carisma suficiente para fazer esquecer os incontáveis escândalos de milhares de milhões de dólares.

Apresentaram-se também os candidatos tradicionais dos partidos históricos, maioritariamente de centro e social-democratas, que até poderiam governar em moldes aceitáveis, mas que representavam a “velha política” gasta de negociatas e compromissos. Esta era a oportunidade há muito esperada pela direita evangélica, que tinha uma estratégia de poder, plasmada por escrito, pelo seu expoente máximo, o “bispo” Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. Macedo nunca escondeu esse plano nos inúmeros livros. A “bancada evangélica” no Congresso, representada por várias igrejas e distribuída por muitos partidos, tinha uma força muito considerável, faltando-lhe todavia, uma figura política que a representasse na corrida à presidência.

Essa figura surgiu com Bolsonaro, um ex-militar de baixa patente, afastado do exército por indisciplina, e que em sete mandatos como deputado federal não apresentou uma única proposta, sendo mais conhecido pelo seu apoio à ditadura militar de 1964-85 e as suas afirmações machistas, intolerantes e estúpidas em geral.

(Pode parecer insólito que uma tal personagem possa ganhar umas eleições, mas existem exemplos recentes, em vários países. Adiante.)

Eleito, Bolsonaro comportou-se exactamente como se esperava que viesse a comportar-se; nomeou ministros esdrúxulos – como a pastora Damares Alves, para a pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos –, mudou o alinhamento internacional do país para um apoio incondicional aos Estados Unidos de Trump, esvaziou os órgãos estatais dedicados aos índios e às mudanças climáticas e anunciou que iria decretar no sentido de todos os brasileiros poderem andar armados. Na área económica, reverteu todas as políticas do PT, especialmente as de auxílio social, mas não conseguiu melhorias notáveis; rodeou-se ainda de generais, inclusive do vice-Presidente, Hamilton Mourão.

Mas onde o mau desempenho de Bolsonaro se tornou mais notável, e mais trágico, foi na reacção à pandemia de Covid-19. Seguindo os passos do político que mais admira, Donald Trump, negou sempre – nega até hoje – que se trata de um problema grave, dizendo coisas indizíveis como “O Brasil tem de deixar de ser um país de ‘maricas’", "Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?", "Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar" e recusando-se a usar máscara. Não tratou de encomendar vacinas, evidentemente, e foi o prefeito de São Paulo, João Dória, que se encarregou de fechar um acordo entre o Instituto Butantã e a empresa chinesa Sinovac, para produção no país.

Ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil tem um sistema nacional de saúde inspirado pelo modelo europeu, que ainda assim não trouxe grande vantagem neste caso, pois é de má qualidade, insuficiente e descapitalizado. Só os pobres a ele recorrem; da classe média para cima, funciona o sistema de seguros particulares. Há excelentes hospitais nas principais cidades, mas não representam nem um por cento das camas disponíveis e têm tabelas proibitivas para 99% da população. Mas, nem mesmo esses, têm capacidade para enfrentar uma pandemia; esta semana, o Brasil ultrapassou, tragicamente, os Estados Unidos em número de mortes diárias, acima das duas mil.

Entretanto Lula, preso, apresentava recursos sucessivos para ser ilibado. Quem conduziu o processo fatal, foi o Procurador estadual de Curitiba, Sérgio Moro, no âmbito de uma investigação lendária, conhecida por “Lava Jato”, que expôs dezenas de petistas. Discutia-se à época, se Moro seria um justiceiro apolítico. Mas, quando aceitou o cargo de Ministro da Justiça de Bolsonaro, surgiu como evidente a parcialidade da investigação ainda que assente em casos verdadeiros.

Como último recurso, um caso como o de Lula, esgotar-se-ia no Supremo Tribunal Federal. Ora, no Brasil, a separação de poderes, na prática, não é muito clara. Os juízes escolhem os processos que querem, não havendo “juiz natural”, atrasam indefinidamente os que não lhes interessam e é evidente que são sensíveis aos diversos interesses políticos. Só as voltas e contravoltas dos acórdãos do STF dariam um romance de dez gordos volumes...

O facto é, que no dia 8, finalmente, o STF pronunciou-se, anulando a sentença de Lula, o que o torna automaticamente elegível para as eleições de 2022.

Dia 10, Lula falou publicamente pela primeira vez. Num discurso de hora e meia, no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo (onde iniciou a sua carreira política, há décadas) não afirmou vir a ser candidato, falando antes na hipótese de uma “frente ampla” – possivelmente para disputar a presidência com a “bancada evangélica”.

E, para se demarcar bem de Bolsonaro, disse que se ia vacinar, aconselhando todos a tomar as medidas preventivas universais – máscaras, gel e distanciamento social.

Bolsonaro reagiu imediatamente, acusando Lula de já estar em campanha, mas lembrou que a decisão de um desembargador do STF, Nelson Fachin, pode ser revista em plenário do tribunal. As linhas telefónicas de Brasília devem estar incandescentes com a movimentação...

É cedo para projectar o que vai acontecer em 2022. No Brasil, não se sabe o que pode ocorrer amanhã, quanto mais daqui a um ano. No entanto, esta decisão tem efeitos telúricos. É quase certo que Lula ganhará, caso concorra. Pode ser pelo desacreditado PT, ou, mais inteligentemente, se arranjar a tal “frente” com outro nome.

Os brasileiros estavam fartos do PT, não dele. E estão fartos de Bolsonaro, até porque lhes está a custar caro – em bens e, sobretudo, em vidas.

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