A imagem de um jovem de 16 anos com uma suástica no braço, a atirar dentro de uma escola, no Estado do Espírito Santo, simboliza um radicalismo muito pior do que se esperava. Quer dizer, pouca gente esperaria que o bolsonarismo fosse buscar, mesmo que de maneira confusa, uma ideologia (ou um pastiche de ideologia) que a História há muito repudiou e que nem sequer tem tradição no Brasil. Mas, entre 2015 e 2022, o número de células ditas nazis saltou de 72 para 1.117 células, isto de acordo com a avaliação da antropóloga Adriana Dias. Este fenómeno exótico e aterrador é uma mistura bolsonarismo, “olavismo” (ideologia propagada pelo “filósofo” ultra-conservador Olavo de Carvalho), racismo, negacionismo histórico e ressentimento.

Segundo a análise feita pela publicação digital “Meio”, “a adesão ao neonazismo brasileiro não poupa sequer negros e judeus, as vítimas preferenciais do nazismo original. Isso porque Bolsonaro coloniza esses grupos, substituindo as suas identidades pela ideologia bolsonarista. Ela pode ser qualquer uma: catolicismo, protestantismo, até islamismo e judaísmo. Porque ele vincula a ideia de que a religião constitui-se a partir de um culto ao passado, ao mundo que já existiu e precisa de ser refundado, baseado em sacerdócio, família e guerreiros.”

E, sendo portanto um “nazismo” falso — talvez fosse mais indicado chamar-lhe fascismo —,  arrisca-se a prolongar-se para lá das circunstâncias temporais das eleições e tornar-se endémico, sem um chefe reconhecido, uma vez que Bolsonaro não tem características pessoais para o protagonizar, e espalhado por células espontâneas um pouco por todo o país.

Ao nível da rua, o que tem acontecido desde as eleições são distúrbios populares, ou de grupos fisiológicos (como os camionistas, a Polícia Militar ou os evangélicos), que, por conta própria, fazem manifestações, fecham estradas e provocam zaragatas expontâneas. Até hoje mantêm-se mobilizações de civis à porta dos quartéis a pedir uma intervenção militar. As discussões violentas em espaços públicos, como cafés ou praças, são tantas que é impossível avaliar o número.

Para esta situação se transformar numa revolta seria preciso um chefe (que não surge), ou uma acção militar concertada (que não se vislumbra); contudo, por outro lado, também não se vê que a agitação abrande, e poderá prolongar-se, ou até exacerbar-se, depois da posse de Lula, em Janeiro. O novo Governo terá de lidar com esta “guerra civil de baixa intensidade” (expressão minha) com luvas de pelica — ou seja, não pode usar uma violência equivalente, recorrendo, por exemplo, ao antigo movimento dos “Sem Terra” e às forças militares ou policiais, correndo o risco de fazer crescer o problema.

Enquanto a rua está neste estado, no mundo político e militar a situação não apresenta violência, mas há uma agressividade latente que se manifesta de várias maneiras.

A vertente mais importante é, obviamente, a militar. E o que parece é que, se as Forças Armadas não estão predisposta a agir como um todo, são evidentes as disputas interiores, com os generais divididos quanto à vitória de Lula, sem se poder por ora estabelecer qual o lado que prevalecerá.

Começando por cima, o General Hamilton Mourão, vice-presidente de Bolsonaro — e portanto ainda em exercício — disse ao site “Gazeta do Sul” que as manifestações em frente aos quartéis são “legítimas, mas tardias” e que “Lula foi eleito, tem que governar”. Disse isto, mas não só; afirmou que um golpe militar seria inconveniente porque o Brasil perderia todos os apoios internacionais e ficaria isolado economicamente. Quer dizer, para o General, o problema do golpe não seria ir contra a Constituição e ser ilegal e anti-ético, mas apenas uma situação prática insustentável internacionalmente...

E o mais recente Ministro da Defesa, Walter Braga Netto, tem visitado os acampamentos de manifestantes em frente aos quartéis...

Abaixo de Mourão, os três comandantes das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) declararam que vão demitir-se antes da tomada de posse de Lula, "para não ter que bater continência a um ladrão". É este o ambiente dentro das forças militares, que se sentem em posição de ameaçar o Judiciário (seria longo narrar aqui os casos), de validar por conta própria a contagem eleitoral, hostilizar a comunicação social e fazer exigências ao novo Governo.

A Polícia Militar, uma corporação que corresponde mais ou menos à nossa Guarda Republicana, tem 386 mil elementos altamente experimentados nas ruas do país e maioritariamente bolsonaristas, em comparação com os 335 mil militares milicianos, sem qualquer experiência de combate real. Estes dados não são desprezíveis, na hipótese de se chegar a vias de facto (que consideramos improvável, mas é a nossa opinião).

A terceira área de aflição, ou, pelo menos, de atritos e confusão, é a transição entre o executivo cessante e o novo. Logo após sabidos os resultados eleitorais formaram-se equipas de ambas as partes, para a tarefa gigantesca que consiste em transmitir informações, revogar de decretos, atos normativos e medidas provisórias (promulgados por Bolsonaro e inaceitáveis por Lula), depurar os dados dos computadores oficiais e escolher entre milhares de funcionários os que ficam e aqueles que vão.

Tradicionalmente, em qualque país (talvez com excepção dos muito civilizados), estas transições não são fáceis. (A título de exemplo, nos Estados Unidos, quando Bush ocupou o lugar a seguir a Clinton, tinha sido arrancada a tecla B a todos os teclados dos computadores da Casa Branca.)

Isso porque, como explica o já citado jornal “Meio”, “há regras que não podem ser simplesmente extintas sem que se coloque outra em vigor, sob pena de prejudicar o fornecimento de serviços essenciais por parte do Estado. Com isso, alguns grupos já trabalham com duas listas de normas a serem revogadas: uma para as primeiras 24 horas de Lula e outra para os primeiros 100 dias.”

Segundo um parlamentar que integra a equipa de Lula, “o governo está reticente em entregar o que chama de informações sigilosas. Mas quase tudo que a gente precisa, para eles, está nessa categoria”.

Outra situação que suscita dúvidas é a posição das igrejas evangélicas, que apoiaram abertamente Bolsonaro. Durante a campanha, não faltaram grandes rezas públicas para pedir a Deus que afastasse o país do “perigo comunista”.

Aliás, o próprio Presidente, ajoelhado diante de uma imagem de Nossa Senhora, rezou “afastai para longe de nós a peste do comunismo e toda ideologia nefasta que atenta contra Deus e seus santíssimos mandamentos”.

Mas os evangélicos, entre outras qualidades, têm a de ser pragmáticos e saber adaptar os seus interesses ao Poder. Do lado oposto, Lula não está interessado em hostilizar Edir Macedo e Silas Malafaia, os mais importantes. Quanto a eles, o que interessa sobretudo é que as suas igrejas continuem isentas de impostos. (E de notar que Lula tem maioria entre os católicos e Bolsonaro entre os evangélicos. Todavia, hoje os católicos são menos poderosos que as outras religiões.)

Concluindo, a situação está complicada e assim deve continuar por mais uns tempos. O que já mudou são os brasileiros que vêm para Portugal; dantes vinham os lulistas, agora vêm os bolsonaristas — isto segundo uma observação não confirmada nos meios brasileiros em Lisboa. Isto não tem propriamente a ver com a classe social; os capitalistas deram-se muito bem durante os governos Lula, que nunca foi comunista. E deram-se bem com o de Bolsonaro, também.

Quanto ao Brasil, continua uma esperança. Vamos ver como corre a situação no próximo ano.