Há 20 anos, e perante uma turba de críticos, César Monteiro pintou um “quadro negro” com o apoio do Estado. Não deixa de ser irónico o fatalismo de, duas décadas volvidas, voltarmos a encontrar um quadro de uma matiz ainda mais enegrecida, pintado agora pelo próprio Estado. Dá vontade de voltar ao infame autor e perguntar: “Queriam telenovela, era?”.

Oitenta por cento dos portugueses encontram-se sem acesso a livros. A decisão do Governo, contra a vontade de Marcelo, de proibir a venda de livros em qualquer tipo de superfície deixou órfãos não apenas os bibliófilos, mas todos aqueles que em contexto de pandemia viram forçada a necessidade de aplacar a sua saúde mental, numa altura em que o streaming, visitas virtuais ou literatura digital cobrem ainda e apenas o Portugal das capitais de distrito.

A regulamentação não só vai em sentido contrário àquilo que era pretendido pelo Presidente da República, como também vai contra a mais elementar lógica, como se evidencia no estudo recente conduzido pela University College of London, que prova que, em contexto pandémico, pelo menos trinta minutos diários despendidos em atividades como a “leitura por prazer, a escuta de música ou o envolvimento num hobby criativo” conduzem a estados depressivos e de ansiedade menos intensos, bem como a uma maior satisfação generalizada entre todos os participantes.

Momentos como aquele em que nos encontramos exigem atividade artística e cultural recorrente, não com o propósito de mascarar sintomas, mas sim pela carga emocional que ajuda a aliviar quando a escrita ou o diálogo já não são opção, como tem vindo a realçar a terapeuta de arte Tammy Shelly. As consequências desta política de terra queimada podem ser irreversíveis, como manifesta “The Psychology of Pandemics: Preparing for the Next Global Outbreak of Infectious Disease”, de Steven Taylor, onde são abordados os efeitos colaterais do surto de SARS em 2003 na saúde mental, caracterizados por um aumento de 30% no número de suicídios entre os adultos acima de 65 anos afetados pela pandemia - e isto com um número de “apenas” 8000 infetados e 800 mortos. É perante a proximidade de um quadro tão negro quanto este que os agentes culturais não se podem demitir do seu papel enquanto garante da estabilidade social e emocional dos portugueses.

No dia em que ficamos a saber que o confinamento poderá durar até abril, torna-se ainda mais urgente retirar as fitas que isolam a literatura nos supermercados e voltar a implementar a venda ao postigo nas livrarias, como vimos acontecer em março do ano passado sem qualquer efeito nocivo digno de relato. Todo o livro é bem essencial a partir do momento em que promove um alívio generalizado face à algia de perder um familiar, ver o posto de trabalho comprometido ou confinar em estado de precariedade.

O autor de “The Psychology of Pandemics” acrescenta que entre 10% a 15% da população mundial não verá a sua vida voltar a um estado de normalidade, independentemente do sucesso da vacinação. Perturbações obsessivo-compulsivas, ansiedade e stress pós-traumático tenderão a afetar sobretudo as gerações de jovens adultos cujo primeiro embate com o desemprego ou a morte de um familiar se deu em contexto pandémico, por vezes em simultâneo e numa questão de meses. Em julho de 2020, num estudo do Instituto de Estatística Inglês, 42% dos jovens entre 16 e os 29 anos reportaram uma deterioração progressiva do seu estado de saúde mental. De acordo com Daisy Fancourt, responsável pelo estudo da University College of London, é precisamente nesta faixa etária (18-29 anos) que se encontram os indivíduos que definem como urgente e prioritária a reabertura de cinemas, teatros, livrarias e museus.

Importa por isto realçar de igual modo a necessidade de contar com os equipamentos culturais na primeira hora do alívio às medidas decretadas em janeiro. Nos setores público e privado cumpriu-se exemplarmente todo e qualquer protocolo sanitário, o que explica a não existência de surtos Covid 19 entre abril de 2020 e janeiro de 2021 em salas de espetáculo, museus ou cinemas.

Dêmos uma vista de olhos no guia Bloomberg Philantropies para a reabertura do setor cultural nos Estados Unidos, elaborado após o primeiro confinamento, com exemplos que vão desde Brandenburgo a Shanghai. O documento que Graça Fonseca deveria trazer debaixo do braço deixa claro o risco praticamente nulo de contágio nos equipamentos culturais, desde que reunidas condições elementares, como o distanciamento social ou o uso de máscara, isto na América ou em qualquer outra parte do mundo. Pergunto: sendo possível em qualquer equipamento enquadrado nesta categoria evitar o contacto desnecessário com superfícies ou pessoal, porque não estimular a sua visita? Conseguirá o Governo encontrar um argumento lógico e não ideológico para debelar esta questão?

A quebra de receitas do setor, que ascende a quase 5,5 mil milhões de euros, e a paralisação de 70% dos seus profissionais não tardarão a revelar os efeitos irreversíveis na saúde mental dos próprios editores, criadores, artistas, técnicos, colaboradores ou produtores a quem o Governo falhou e que relegou indigentemente, numa anedota muito mal contada, para o horário das 10h às 13h aos fins de semana. Mas, como nem primeiro-ministro nem ministra da Cultura parecem ocupados a pensar nestes profissionais, pode ser que relembrando os efeitos dinamitadores de uma sociedade privada do acesso à cultura surta algum efeito. Mas duvido, até porque #aculturaésegura apenas nas conferências de imprensa.