Já aqui falámos, por diversas vezes, destes protagonistas sinistros que estão estar a puxar os cordelinhos de uma nova ordem autocrática, ou “iliberal”. Applebaum, jornalista e politóloga com um currículo notável – formada em Yale e na London School of Economics, conselheira editorial do “Washington Post”, vencedora do Pulitzer em 2004 e autora de sete livros – publicou na semana passada, na revista de referência “Atlantic”, um ensaio que explica porque é que estes novos donos disto tudo não cabem na etiqueta simplista de “fascistas”. O fascismo é uma ideologia e, se há alguma coisa que une estes patifes, filosófica e praticamente, é que não têm ideologia. Podem apropriar-se de alguns conceitos de fascismo e comunismo, até mesmo de princípios democráticos, mas é apenas para fins cosméticos. O que os move e une é exclusivamente o dinheiro e o poder.

Os seus nomes são conhecidos universalmente. Na fotografia que acompanha o artigo de Applebaum aparecem Nicolás Maduro, Alexander Lukashenko, Vladimir Putin, Xi Jinping e Recep Erdogan, mas podemos acrescentar muitos outros: Bashar al-Assad, Miguel Díaz-Canel (Cuba), Andrzej Duda (Polónia), Viktor Orbán, Myint Swe (Mianmar), Kim Jong-un, Donald Trump, Ebrahim Raisi (Irão)... a lista não pára de aumentar.

Como se vê por esta amostra, não há uma ideologia comum, nem sequer os países que comandam estão alinhados numa associação. É mais uma espécie de fraternidade, a que a jornalista chama de “Autocracia, Sociedade Anónima”. Ajudam-se uns aos outros, na convicção partilhada de que a democracia é uma doença contagiosa e tem de ser combatida, não só em casa, mas também na vizinhança, não vá espalhar-se e acabar-lhes com o tacho. (Podíamos ainda acrescentar os candidatos a autocratas em certas democracias, que se juntariam ao clube se conseguissem ser eleitos. Mas esses, não estando no poder, não têm acesso aos níveis mais altos do jogo.) Esta característica é nova em termos históricos, talvez só comparável com as alianças e contra-alianças forjadas e desfeitas nos tempos pré-Revolução Francesa, quando reis e imperadores jogavam um xadrez de interesses.

Os membros da “Autocracia, Inc.” não se associam por ideais, mas por negócios – trocas destinadas a contornar os boicotes das democracias, ou a enriquecê-los pessoalmente, sem constrangimentos políticos ou geográficos. Podem auto-intitular-se qualquer coisa: comunistas, nacionalista, teocratas. Não há um chefe, mas vários “padrinhos” ao sabor das conveniências do momento.

Contra estas figuras não adianta jogar a cartada da culpa, porque não se sentem culpados por ser como são. Um exemplo: a Junta Militar de Mianmar, acusada de todo o tipo de violações legais, constitucionais e éticas. Para os militares que dominam o país, o que lhes interessa é estar no poder e fazer os negócios que o poder lhes permite. O mesmo se pode dizer, outro exemplo, de Bashar al-Assad, que há anos tortura e mata (inclusive com gás) os seus próprios cidadãos, indiferente à destruição da Síria, desde que seja ele a mandar e a ganhar com a situação.

E al-Assad é precisamente um modelo de como funciona a solidariedade autocrática; pode ser repudiado pelas democracias e organizações não governamentais, mas tem o apoio da Rússia e a simpatia da China, que lhe fornecem os meios para continuar o genocídio dos seus.

Outro caso paradigmático é a Venezuela, que tem o apoio logístico de Cuba e financeiro da Rússia, China e Turquia. Os cubanos fornecem-lhe especialistas em repressão, os outros compram-lhe petróleo.

Lukashenko é um caso polivalente. Putin, que não gosta dele, fornece-lhe armamento e forças policiais, porque ambos partilham a crença de que a sobrevivência pessoal é mais importante do que o bem-estar dos seus povos. “Ambos acreditam que uma mudança de regime teria como resultado a sua morte, prisão ou exílio”. Por outro lado, al-Assad fornece a Lukashenko um fluxo de refugiados que o bielorrusso exporta para a Polónia, vingando-se assim das sanções impostas pela UE e contribuindo para a desorientação de Bruxelas, que quer castigar as medidas anti-democráticas polacas, mas se vê obrigada a ajudar os polacos a conter o fluxo migratório.

Aliás, o que Putin faz agora com Lukashenko é o que fez há seis anos com al-Assad, dando-lhe ajuda militar e económica. Putin é particularmente sensível à queda de autocratas, como demonstrou quando o presidente da Ucrânia Viktor Yanukovych teve de deixar o poder, anexando a Crimeia para desestabilizar a nascente democracia ucraniana.

Lukashenko será talvez o mais desavergonhado desta sociedade, mostrando um desprezo completo pelas leis e normas internacionais. Em 2021 forçou um avião irlandês (da Ryanair) a aterrar em Minsk, para prender o dissidente Roman Protasevich. Pouco lhe importou que a Europa proibisse as suas companhias de aviação de sobrevoar e aterrar na Bielorrússia; a China continua a desenvolver projectos no país, o Irão tem aumentado as suas trocas comerciais e os cubanos mostraram a sua solidariedade nas Nações Unidas, pedindo o fim da “interferência estrangeira”.

Como realça Applebaum, os líderes de Mianmar não têm qualquer ideologia para lá do nacionalismo, enriquecimento e vontade de se manter no poder. Os líderes do Irão acham que toda a crítica vem do ódio dos “infiéis ocidentais”. Os de Cuba e da Venezuela consideram as críticas como “imperialismo capitalista”. Os da China contestam os direitos humanos exigidos pelas instituições internacionais como conceitos ocidentais que não se aplicam ao seu modelo. Esse modelo inclui a repressão das minorias dentro da China (mongóis e uigures). Muito a propósito, os turcos, que são “primos” dos uigur, já mudaram a sua posição quanto a este genocídio. Erdogan chamou-lhe assim em 2012, quando ainda era primeiro-ministro, mas a partir de 2014, já presidente, passou a devolver à China os uigur que viviam na Turquia, ao mesmo tempo que as trocas comerciais entre os dois países se intensificaram.

Outro aspecto digno de lástima é a complacência das grandes empresas ocidentais em relação à China, um mercado de tais proporções que nenhuma entidade pode ignorar. Tanto a Google como a Apple retiraram das suas plataformas apps que desagradavam aos chineses. A MGM mudou a história dum filme para se conformar com a História oficial chinesa. A NBA (National Basketball Association) pediu desculpas por um jogador dos Houston Rockets ter tweetado o seu apoio às revoltas de Hong Kong. E a McKinsey, em 2018, organizou uma conferência sobre direitos humanos em Kashgar, a poucos quilómetros de distância de um campo de concentração uigur.

Noutra frente, mais próxima de nós, a cantora Nicki Minaj deu um concerto em Angola, em 2015, organizado pela empresa de Isabel dos Santos, e publicou uma foto no Instagram a elogiar a patrocinadora por ser “a oitava mulher mais rica do mundo”.

Nem Applebaum, nem nós, esgotamos todos os exemplos que nos entram pelos olhos dentro todos os dias. É só estar mais ou menos atento aos noticiários e às redes sociais para perceber que há algo de podre nos reinos do planeta. Mas, para ter consciência da realidade, vale a pena citar o resumo que ela faz da situação:

“Actualmente, as autocracias não são dirigidas por um único mauzão, mas antes por redes sofisticadas compostas por estruturas cleptocráticas financeiras, serviços de segurança (forças armadas, polícia, grupos paramilitares, espionagem) e por propagandistas profissionais. Os membros dessas redes não estão em contacto dentro dum país, mas entre vários países. As empresas corruptas, controladas por um Estado, fazem negócios com as empresas corruptas de outros estados. A polícia de um país pode armar, equipar e treinar a polícia de outros. Os propagandistas partilham recursos, como “centros de provocação” (“troll farms”) que promovem a propaganda de um ditador e também podem ser usados para promover a propaganda de outros.”

A globalização está a favorecer os maus. E os bons, vão fazer alguma coisa?