A palavra «café» é muitas vezes repetida pelos portugueses. A mesma palavra serve para o produto, para a bebida preparada, para o local onde se vende a bebida... Até serve, no fundo, para designar uma conversa com ou sem café, como quando dizemos a um amigo «queres ir tomar um café?». Donde vem a palavra — e, já agora, o próprio café?

As origens desta bebida perdem-se no tempo, como tanto do que é importante. Sabemos que, no Iémen, durante o século XV, místicos sufis começaram a usar esta bebida como forma de se manterem acordados durante as longas cerimónias. A bebida parecia apurar a mente, deixando-a mais lúcida.

Como os muçulmanos não podiam — ou não deviam — beber vinho ou outras bebidas alcoólicas, esta bebida própria de místicos começou a espalhar-se pela Península Arábica. Este uso como substituto de uma bebida proibida está impresso na própria palavra: o nome em árabe — «qahwa» — significava, originalmente, «vinho». Os clérigos muçulmanos ainda discutiram se o café também deveria ser proibido, mas a força do hábito não lhes deixou grande margem para recusar uma bebida que, na verdade, não inebriava.

A partir da Arábia, o café invadiu todo o Império Otomano. A palavra árabe passou a ser usada em turco otomano com a forma «kahve». É provável que, na Europa, o primeiro café (enquanto espaço) tenha surgido em Istambul. A ideia rapidamente se espalhou pelo resto do continente. Muitos deixaram as bebidas alcoólicas para ocasiões especiais e passaram a beber café no dia-a-dia — foi como se acordássemos dum torpor de séculos...

O café invadiu a Europa pelo sul e pelo norte. De Istambul a Veneza foi um saltinho. Alguns cristãos mais ciosos começaram a perguntar-se se seria conveniente andar a beber uma bebida muçulmana... O papa Clemente VIII ficou intrigado e pediu para provar o tal café. Imagino-o a abrir muito os olhos, surpreendido com o sabor. Estava aprovadíssimo! A partir daí, nenhum cristão recusou café por questões religiosas. Do turco, a palavra passou para o italiano — «caffè» — e para o francês — «café» — e acabou por chegar ao nosso recanto, numa forma igual à francesa, mas com a vogal final aberta, à portuguesa.

No Norte da Europa, foram os holandeses que trouxeram as primeiras amostras de café, que tinham ido comprar a Moca, no Iémen. A bebida deu um salto até Inglaterra, onde a primeira coffee shop surgiu em Oxford, em 1652, ainda antes de chegar a Londres. A ligação do café à academia nunca desapareceu: ainda hoje não há simpósio ou conferência onde não se sirva café (é costume, aliás, usar uma palavra inglesa para o intervalo do café). O percurso nota-se nas palavras: o árabe «qahwa» transformou-se no holandês «koffie» e, depois, no inglês «coffee».

Os cafés tornaram-se um dos locais típicos de Londres. Se lermos o famoso Diário de Samuel Pepys, encontramos inúmeras referências aos cafés. Eram o contraponto sóbrio das populares tabernas. Os cafés eram a verdadeira rede social da época: cientistas, políticos, comerciantes, aristocratas — todos trocavam ideias e mexericos nos cafés da Londres do século XVII, que eram salas de discussão especializadas. Havia cafés para astrónomos, cafés para artistas, cafés para homens do mar. Os cafés de Londres eram centros de inovação científica, tecnológica, académica e financeira. Uma discussão de café esteve na origem de algumas das maiores descobertas de Newton. Também foi em cafés de Londres que nasceu a Bolsa e a seguradora Lloyd’s.

Do outro lado da Mancha, em Paris, os cafés também floresceram. Cada café tinha a sua clientela e alguns nomes ainda hoje são bem famosos, como o Café Procope e o Café Parnasse, onde se encontravam poetas e filósofos, ou o Café Anglais, onde se encontravam os actores. Foi num café que o primeiro grito da revolução francesa se ouviu, quando Camille Desmoulins grita, na esplanada do Café de Foy, «Às armas, cidadãos!».

Ao contrário de Londres, que desistiu do café para se entregar ao chá, Paris manteve o hábito da discussão em cafés. Muito da cultura do café de várias cidades da Europa e do mundo parece emular a imagem do café parisiense. Já nos novíssimos EUA, o café nunca foi suplantado pelo chá e, no final do século XX, as cadeias de café norte-americanas reimplantaram a mania do café na Inglaterra — e invadiram o resto do mundo, com ou sem tradição local de café. Depois de Moca, Istambul, Veneza, Londres e Paris, Seattle é a mais recente cidade do café.

Por cá, o café de eleição é o expresso (do italiano espresso), a que ninguém chama expresso. Podemos chamá-lo «bica» ou «cimbalino», mas basta dizer «queria um café» para receber uma pequena chávena de café a escaldar ao balcão. Não é que os portugueses não tenham uma grande variedade de formas de preparar o café. Quem tenta aprender português fica atrapalhado com as diferenças entre o galão, a meia de leite, o abatanado, o pingado, a italiana ou construções artísticas como o café sem princípio em chávena fria (ou outras combinações do género) — ah, mas um café, assim, sem mais nada, é essa pequena chávena de café que bebemos várias vezes ao dia.

Um trabalhador português, de manhã, antes de entrar para o trabalho, saboreia uma bebida de místicos sufis de há muitos séculos. Outros povos inventaram a bebida ou trouxeram-na para a Europa, mas nós assumimos com entusiasmo a cultura do café, que une todas as regiões e classes sociais do país. Se largarmos um português num qualquer recanto do país, é provável que procure um café. Não é só na rua: em casa, todos gostamos da nossa máquina de café. E, claro, um dos maiores prazeres de viajar é chegar a Portugal e contar o desastre que é o café do país aonde fomos. Lá fora, sentimos saudades da família, dos amigos — e do café! E a falta que faz, por estes dias, conversar num café com os amigos. É bem mais agradável que os zooms desta vida.

Sugestão de leitura: Alguns dos pormenores que contei acima estão no livro A History of the World in 6 Glasses, de Tom Standage. É um livro surpreendente, onde acompanhamos a história da humanidade através de seis bebidas. Vale muito a pena ler o livro, com uma bela chávena de café ao lado. Se algum editor passar por aqui, fica também a ideia de trazer o livro até à nossa língua.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. É autor da Gramática para Todos.