Que se acuse quem, depois de usar a palavra «queria», nunca enfrentou a pergunta: «Queria? Já não quer?». Uma inocente piada de café, dirão. Talvez. Mas não deixa de ser um bom exemplo de um erro linguístico muito comum: o literalismo.

Admito: quando estou a pedir um café com «queria» estou a usar uma forma verbal do passado para fazer um pedido no presente. Um horror! Mas a verdade é que a língua é assim, mais complexa do que parece à primeira vista. Usamos o pretérito imperfeito para fazer pedidos com mais delicadeza («era a conta, por favor»); usamos o futuro para falar de algo incerto do passado («ela terá lá ido ontem»); usamos o pretérito perfeito composto para falar do que fazemos várias vezes («tenho falado com ele todos os dias»)... Podia continuar!

A língua é assim: cheia de subtilezas que usamos sem reparar. Uma vez por outra, há quem interprete literalmente uma palavra ou expressão e declare que tal palavra ou expressão é um erro.

Se alguém pede um copo de água, só pode estar a errar, pois o copo não é feito de água — como se a preposição «de» não servisse para muitas coisas...

Se alguém faz a barba, está a errar também, pois a barba não se faz — o que dirão da cama, do tempo e do amor, tudo coisas que fazemos sem pudor?

E, claro, se alguém queria um copo de água, está a errar a dobrar. Na mente virada para as interpretações literais, a pessoa está a declarar que houve um tempo em que queria um copo feito de água…

Um disparate? Sim, claro. Mas é assim que o literalismo funciona.

Estas correcções tontas são modas que pegam. Ninguém se chateia com o balde de tinta — só com o copo de água (e, no entanto, o balde não é feito de tinta). Ninguém se aborrece com o fazer a cama — só com o fazer a barba (e, no entanto, também não construímos uma cama). O «queria ou quer?» é apenas mais um desses tiros ao lado que se tornam modas.

Estes pequenos e inócuos disparates permitem-nos olhar, pelo contraste, para a maneira como a língua funciona. Se olharmos para estes erros que não são erros, encontramos subtilezas do português. O «de» em «copo de água» torna o copo numa medida da quantidade de água que queremos. Podia querer um litro, uma garrafa, um balde de água… Mas não: quero um copo de água. Já o «queria» dos pedidos mostra-nos uma das muitas maneiras como a língua permite amaciar uma ordem ou um pedido: «já agora, se não fosse incómodo, queria um copo de água».

Tenho mais más notícias para as mentes literais: a língua também se faz de usos figurados que se cristalizam. O sol nasce porque aparece de novo todos os dias; a temperatura sobe porque o mercúrio subia nos termómetros; o tempo anda para a frente; o sangue ferve; o amor evapora-se; a língua pula e avança… As figuras de estilo como a metáfora e a metonímia não se restringem à literatura. Fazem parte da linguagem do dia-a-dia. De tão repetidas, algumas das expressões soam-nos a cliché e, por isso, devem ser evitadas em textos que se queiram originais — mas apenas por isso. Não sejamos literalistas ao interpretar o que os outros dizem: é um grave erro de português.

Não é só do português nem é só de agora: a expansão dos significados das palavras faz parte dos mecanismos linguísticos essenciais da linguagem humana. Sem esta constante expansão semântica, as línguas seriam ferramentas bem menos úteis e, na verdade, menos rigorosas, pois não nos permitiriam falar tão claramente de realidades novas ou complexas. Seriam também ferramentas bem menos interessantes, arrisco dizer.

Para terminar, reparo numa expressão que fazia sentido literal e já não faz. «Puxar o autoclismo»… Já não puxamos nada! Mas a expressão tornou-se parte da língua. Os espíritos literais bem podiam começar a olhar para o equipamento sanitário, a ver se nos deixavam beber o café em paz.


Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu último livro é o Almanaque da Língua Portuguesa.

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