A União Europeia, sempre à procura de “consensos” que evitem confrontos, e os Estados Unidos, onde afinal a democracia não é tão democrática como se suponha, têm assistido a um renascimento dos chamados “valores cristãos”. Esses valores remetem para as virtudes da intolerância perante a diferença e a reafirmação dos princípios tradicionais contra um liberalismo considerado decadente e desagregador da sociedade.

Não vou aqui esticar-me sobre o caso norte-americano, para me concentrar no que se está a passar na Europa. A relação existe, e até pode ser personificada numa pessoa, Steve Bannon, que foi estrategista de Trump e agora anda pela Europa, ligado a Matteo Salvini na criação dum “Movimento” que fala, precisamente, nos valores ocidentais que se perderam e é preciso reanimar.

É interessante que um defensor desses valores seja Vladimir Putin, que deu nova força à Igreja Ortodoxa russa e discursa frequentemente (como aqui, em 2013, e aqui, em 2019) sobre os pecados liberais de aceitação da homossexualidade e dissolução da família. Segundo ele, a maioria dos europeus rejeita essas ideias dissolutas – o que até nem é verdade, como o demonstra um estudo do Pew Research Center que diz que a maioria dos cidadãos do continente nem sequer é muito religioso. Putin é precisamente um dos campeões do tradicionalismo, pelo menos no papel, mas não causa tantos engulhos à União Europeia porque é visto como um inimigo de fora. O mesmo não acontece com Viktor Orbán, como se verá.

As esquerdas gostam muito de agitar a bandeira do fascismo, esse monstro fardado que já teve muita força e acabou derrotado na segunda metade do século XX; mas o fascismo puro e duro, tipo Hitler, Mussolini e Franco, de facto já não existe (ou está reduzido a franjas pouco significativas), tal como aconteceu com o comunismo, tipo Estaline, Ceausescu ou Honecker (da RDA, lembram-se?). Os fascismos, de esquerda ou de direita, eram sistemas de partido único, campos de concentração para os desafectos e um figurino militarista/ufanista. Seguiam líderes providenciais e consideravam os mecanismos democráticos – partidos, eleições, imprensa livre – como fraquezas incapazes de promover o progresso. A derrota de 1945, e outras posteriores, à direita e à esquerda, deram-lhes má fama e uma rejeição mais ou menos universal.

O perigo fascista, no sentido restrito do termo, não existe. O que existe é um reaccionarismo (aos progressos sociais e morais do pós-guerra), manifestado em democracias “musculadas” ou, como Orbán lhes chama, iliberais.

A carreira do húngaro é um guia (textbook) do processo de implantação deste sistema político, que se poderia chamar autocracia envergonhada.

O seu partido, o Fidesz, ganhou as eleições em 2010; dois anos depois, usando a sua maioria parlamentar, promulgou uma nova constituição, que entre outras provisões aumentou de onze para quinze o número de conselheiros do Tribunal Constitucional, passando a ser escolhidos pelo Governo. Em 2013 Orbán já tinha nove conselheiros nomeados por ele. Um sistema de contagem eleitoral, dando um bónus ao partido vencedor, permitiu-lhe converter votações de quarenta e pouco por cento em supermaiorias. O sistema garante que o Fidesz ganhará sempre, e por muito, à meia dúzia de partidos que completam o quadro político húngaro.

Paralelamente, Orbán levou o seu poder político para a cultura e a comunicação social. Expulsou da Hungria a Universidade da Europa Central, fundada em 1991 por George Soros com o objectivo de aprofundar as liberdades de que gozam os cidadãos europeus. Directores dos teatros públicos foram substituídos por membros do Fidesz e o maior jornal nacional, o Népszabadság, foi obrigado a fechar.

Em 2015 fez a famosa declaração de que uma democracia não precisava de ser liberal, ou seja, não devia ser complacente com as minorias comportamentais (leia-se LGBT) nem com os que pensavam diferentemente.

Um dos seus ódios de estimação são os imigrantes muçulmanos. Embora o estudo citado da Pew indique que apenas 17% dos húngaros são “muito religiosos”, o facto é que o país tem uma longa história de conflito com o Império Otomano. Foi a Hungria que suportou sucessivas invasões otomanas nos séculos XIV, XV e XVI, impedindo a expansão do império para o resto da Europa. Só no século XIX, quando os turcos foram derrotados na Grécia, é que a ameaça desapareceu.

A Freedom House, uma organização muito prestigiada que avalia a situação política mundial, no seu relatório de 2020 considerou que a Hungria não encaixa mais na definição de democracia.

Voltando à questão dos “valores cristãos” que Orbán, Salvini e companhia tanto defendem (Putin não vai tão longe, chama-lhes valores europeus), é interessante analisar como esses valores evoluíram durante a História. Na verdade, até ao advento das ideias anti-religiosas, no final do século XVIII (a Constituição americana de 1788, Revolução Francesa de 1789) os tais valores não têm muito que se diga por eles. A intolerância era a norma, a Inquisição torturava e matava impunemente em alguns países, e a Igreja vendia o Paraíso por uma tabela de “bulas” – o que originou a revolta protestante de Lutero, em 1517. Mas o monge também não era nenhum santo e o protestantismo espalhou-se muitas vezes por interesses pessoais, como no caso de Henrique VIII. Ou seja, a tradição cristã europeia é bastante anti-liberal e os valores humanistas que os europeus hoje consideram a sua tradição têm pouco mais de trezentos anos.

Quanto à democracia liberal – isto é, parlamentarista, com voto universal para homens e mulheres, é uma conquista recente, e sempre ameaçada.

O que se pode dizer que é a tradição da Europa é o constante questionamento dos dogmas, que foi levando a progressos políticos sociais, lentamente, aos solavancos.

O Humanismo é de facto uma conquista do século XIX. Desde que se espalhou o conceito (de que o Homem individual é mais importante do que o colectivo) que tem sido constantemente atacado, pelas religiões, pelas políticas e por um emaranhado de interesses diversos.

Resta saber se resistirá ao século XXI.

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