Diz-se que o povo é soberano e já é tradição para muitos confiar nos conteúdos mais vistos, na hora de procurar uma série ou um filme para ver. Mas, desta vez, quem abrir a Netflix Portugal e for consultar o primeiro lugar de conteúdos mais vistos, vai encontrar um filme com um registo ligeiramente diferente daqueles a que a plataforma nos habituou.
Com o título original "365 DNI" (a tradução para português será "365 Dias"), é uma produção vinda da Polónia diretamente para o topo do serviço de streaming. Inspirado na saga de livros da escritora polaca Blanka Lipinska, o filme apresenta-se como um drama que mistura romance e erotismo.
A história dá-nos a conhecer Massimo Torricelli (interpretado por Michele Morrone), um poderoso líder da máfia italiana. Massimo desenvolve uma obsessão por uma mulher que conheceu na praia, cinco anos antes da altura em que o trama se desenvolve. Essa mulher é Laura Biel (papel atribuído a Anna-Maria Sieklucka), uma executiva infeliz com o seu casamento e com a sua vida sexual.
Numa viagem a Itália, Massimo sequestra a mulher por quem está “apaixonado” há 5 anos. Depois de acordar na casa do chefe da máfia, Laura percebe que foi raptada e é confrontada com um sequestro cujos termos e condições dão nome ao filme: ao longo de 365 dias, ou seja, o equivalente a um ano, Massimo fará tudo para que Laura se apaixone por ele, mantendo-a presa, mas prometendo à vítima uma vida de luxo, sem que nunca lhe falte nada que o dinheiro possa comprar.
Ainda que Massimo prometa não evoluir para uma relação física sem o consentimento de Laura, o chefe da máfia deixa o cavalheirismo de lado e opta pela sedução forçada e pelo voyerismo sem escolha enquanto estratégias de eleição. Além do desenvolvimento da ligação emocional e sentimental entre vítima e sequestrador, a longa metragem polaca apresenta-nos várias cenas de sexo explícito, quase a roçar um filme pornográfico.
Algures entre "Cinquenta Sombras de Grey" e "A Bela e o Monstro"
Não é de agora que os filmes eróticos fazem sucesso com a audiência. Antes de "365 Dias", foi a saga "Cinquenta Sombras de Grey", inspirada nos livros de E. L. James a conquistar o público. Os filmes, que saíram entre 2015 e 2018, tornaram-se num sucesso de bilheteira e, só o primeiro filme, obteve uma receita que ronda os 570 milhões de dólares, segundo o Box Office. Este número, somado ao sucesso que E. L. James já tinha alcançado com a venda dos livros, fez com que o romance erótico sadomasoquista parecesse a combinação ideal para agradar ao público que queria ver a quantidade certa daquilo que se passava dentro e fora do quarto de Christian Grey e Anastasia Steel.
"365 Dias’" também seguiu algumas linhas parecidas. Ao longo das quase duas horas de filme há direito a puxões de cabelos, algemas e quartos secretos dedicados ao prazer carnal. Mas, ainda que haja algumas semelhanças entre os filmes que deixaram a audiência a suspirar por Christian Grey e Massimo Torricelli, este novo filme consegue destacar-se, e não é pela positiva.
Nas redes sociais, principalmente, o filme tem sido alvo de várias desconstruções temáticas. Ainda que haja quem pareça ter ficado rendido e queira encontrar o seu “Massimo”, há também quem levante a problemática dos relacionamentos tóxicos, como aquele que o filme promove. As críticas apontam para temas como o sequestro, a falta de consentimento, o assédio sexual e a repressão e objetificação feminina. Há mesmo quem faça a comparação com a história de "A Bela e o Monstro", baseada no conto de fadas de Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont, posteriormente adaptado para filme de animação pela Disney.
Ainda que possa parecer estranho colocar lado a lado um soft porn sadomasoquista e um filme de animação que remete muitos para a infância, a verdade é que aquilo que os une é muito mais do que aquilo que os separa. Nos dois casos, trata-se de um ‘monstro’ que rapta uma rapariga e a aprisiona no seu castelo. No final, o rapto torna-se num “amor bonito”, que pare romantizar o Síndrome de Estocolmo, um estado psicológico que leva as vítimas a desenvolver empatia por um agressor, após serem submetidas a vários tipos de intimidação durante um longo período de tempo.
As diferenças? Massimo não é um príncipe encantado castigado por uma feitiçeira, que o transforma em monstro, e o Monstro não é uma chefe da máfia italiana, com corpo de sex symbol, e que acha que a solução para tudo passa por levar a miúda às compras ou matar alguém só porque sim.
Um êxito que quase não tem direito a reviews
Nas plataformas agregadores de críticas de cinema e televisão, os números também não jogam a favor do filme. Na Rotten Tomatoes, por exemplo, a audiência atribui uma percentagem de 31%, numa escala de 0 a 100%. Mas não foram só os especialistas de teclado que não ficaram convencidos com "365 Dias". No que diz respeito aos críticos, nem sequer é apresentada uma pontuação consensual, por falta de reviews do filme.
No IMDb, a produção polaca não ultrapassa as 3,7 estrelas, nas 10 possíveis, e na Letterboxd também não vai além de 1,2 estrelas, numa escala de 0 a 5. Na Metacritic também ainda não há uma pontuação atribuída por falta de consenso e as duas únicas opiniões publicadas são as de Rogers Moores, para a Movie Nation, e a de Jessica Kiang, para a Variety, que atribuíram 25 e 10 pontos (em 100 possíveis) ao filme inspirado nos livros de Blanka Lipinska.
Nos textos publicados, destacam-se, respetivamente, frases como “Este é um ‘romance’ que faz as mulheres recuar 50 anos e faz qualquer pessoa (como eu) retirar todas as coisas más escritas sobre Dakota Johnson [protagonista de 50 Sombras], aquele tipo cujo nome já esqueci [referência a Jamie Dornan, que interpretou o papel de Christian Grey] e aqueles filmes ’50 Sombras’ terríveis” e “A premissa de ‘365 Dias’ é também uma das mais antigas, falsas e revoltantes desculpas para a violação: não pode ser violação se, no final de contas, parecer que ela estivesse a gostar.”.
Já se fala da possibilidade de uma sequela, uma vez que a saga de Blanka Lipinska é uma trilogia. O primeiro livro, ‘365 Dias’ saiu em 2018 e foi um sucesso, com mais de meio milhão de livros vendidos. Seguiram-se duas sequelas, cujos títulos ainda não foram traduzidos para outras línguas, e os três capítulos ganharam o título de best seller.
Antes de chegar à Netflix, a adaptação para filme foi lançada no cinema. Saiu na altura do dia dos namorados, mais uma vez, ao estilo ‘50 Sombras de Grey’, mas acabou por sofrer o impacto da pandemia que se instalou por todo o mundo, o que ajuda a explicar a transição para a Netflix. No total, ‘365 Dias’ arrecadou um Box Office de cerca de 9 milhões de dólares.
O facto de não ser falado totalmente em inglês não impediu o filme de se tornar num sucesso no que diz respeito aos números de visualizações. Depois de chegar à plataforma de streaming em todo o mundo há pouco mais de uma semana, no dia 7 de junho, ‘365 Dias’ entrou numa corrida para o topo. Atualmente está em primeiro lugar em Portugal e já chegou ao top de 10 conteúdos mais vistos em mais de 20 países, incluindo Alemanha, África do Sul, Emirados Árabes Unidos, Iraque, Turquia e Estados Unidos da América.
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