I — A TERRA E OS SENHORES SUPREMOS

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«O vulcão que erguera Taratua das profundezas do Pacífico já dormia há meio milhão de anos. Ainda assim, muito em breve», pensou Reinhold, «a ilha será banhada por um fogo muito mais intenso do que as chamas que testemunharam o seu nascimento.» Olhou em direção à plataforma de lançamento, e o seu olhar escalou a pirâmide de andaimes que ainda cercava a Colombo. Sessenta metros acima do solo, a proa da nave apanhava os últimos raios do Sol poente. Esta seria uma das últimas noites que ela veria: brevemente estaria a flutuar no eterno dia do espaço.

Aqui, por baixo das palmeiras, no cume da crista rochosa da ilha, o silêncio imperava. O único som do Projeto era o queixume esporádico de um compressor de ar, ou o grito indistinto de um dos operários. Reinhold aprendera a gostar destas palmeiras amontoadas: ao anoitecer, vinha quase sempre para ali para contemplar o seu pequeno império. Entristecia-o pensar que seriam reduzidas a átomos quando a Colombo se erguesse em direção às estrelas, envolta numa fúria flamejante.

A dois quilómetros dos recifes, o James Forrestal com os seus holofotes vasculhava as águas escuras. O Sol agora já desaparecera completamente, e a rápida noite tropical vinha de este a correr. Reinhold perguntou-se, com um ligeiro sarcasmo, se o porta-aviões esperava encontrar submarinos russos tão perto da costa.

Pensar na Rússia fez com que se lembrasse, como sempre, de Konrad e daquela manhã na desastrosa primavera de 1945. Passaram mais de trinta anos, mas a memória daqueles últimos dias, quando o Reich se desintegrou sob as ondas do Este e do Oeste, nunca se desvanecera. Ainda conseguia ver os olhos azuis e cansados de Konrad, e a barba dourada por fazer no seu queixo, quando apertaram as mãos e se despediram na cidadezinha prussiana arruinada, enquanto uma torrente ininterrupta de refugiados passava por eles. Fora uma despedida que simbolizava tudo o que acontecera desde então com o mundo: a divisão entre o Este e o Oeste, uma vez que Konrad escolhera a estrada para Moscovo. Reinhold tinha-o considerado um tolo, mas agora já não tinha tanta certeza.

Durante trinta anos, imaginara que Konrad estivesse morto. Apenas na semana passada o coronel Sandmeyer, da Inteligência Técnica, lhe trouxera a notícia. Reinhold não gostava de Sandmeyer, e tinha certeza de que o sentimento era mútuo. Contudo, nenhum deles deixava que isso interferisse no trabalho.

– Sr. Hoffmann – o coronel começara, com o seu melhor tom oficial – acabo de receber algumas informações alarmantes de Washington. É claro que são extraordinariamente secretas, mas resolvemos revelá-las ao pessoal da engenharia, para que compreendam a necessidade da pressa. – Fez uma pausa dramática, gesto que não surtiu efeito em Reinhold. De certa forma, já sabia o que vinha a seguir.

– Os russos estão quase empatados connosco. Conseguiram algum tipo de propulsão atómica. Pode até ser mais eficiente do que a nossa. Estão a construir uma nave nas margens do lago Baikal. Não sabemos até onde chegaram, mas a Inteligência acredita que ainda possa ser lançada este ano. O senhor sabe o que isso significa.

"É Desta Que Leio Isto"

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«Sim», pensou Reinhold, «eu sei. A corrida começou... e nós podemos perder.»

– Sabe quem é o chefe da equipa deles? – havia perguntado, sem esperar de facto uma resposta. Para sua surpresa, o coronel Sandmeyer empurrara sobre a mesa uma folha datilografada e, no cabeçalho, estava o nome: Konrad Schneider.

– O senhor conheceu muitos destes homens em Peenemünde, não foi? – perguntou o coronel. – Isso poderá dar-nos uma ideia dos métodos que eles usam. Gostaria que me preparasse algumas notas sobre o maior número possível deles: as suas especialidades, as ideias brilhantes que tiveram e assim por diante. Sei que estou a pedir muito, depois deste tempo todo... Mas veja o que pode fazer.

– Konrad Schneider é o único que importa – Reinhold respondera. – Ele era brilhante. Os outros são apenas engenheiros competentes. Só Deus sabe o que é que o Konrad pode ter feito em trinta anos. Não se esqueça que ele deve ter visto cada um dos nossos resultados, e nós não vimos nenhum dos dele. Só com isso, ele já tem uma enorme vantagem sobre nós.

Não pretendera, com aquilo, criticar a Inteligência, porém, por um momento, pareceu-lhe que Sandmeyer ficaria ofendido. Mas o coronel encolheu os ombros.

– Tem suas vantagens e desvantagens, como o senhor mesmo me disse. O nosso intercâmbio livre de informações significa um progresso mais rápido, mesmo que deixemos escapar alguns segredos. Os departamentos de pesquisa russos metade das vezes não devem fazer ideia do que é que o seu próprio pessoal faz. Vamos ter que lhes mostrar que a democracia pode chegar à Lua primeiro.

«Democracia... Parvoíce!», pensou Reinhold, mas não foi louco o suficiente para o dizer. Um Konrad Schneider valia um milhão de eleitores. E o que é que Konrad já teria conseguido fazer a esta altura, com todos os recursos da URSS do seu lado? Quem sabe, neste mesmo instante, talvez a sua nave já estivesse a afastar-se da Terra...

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O Sol que desertara Taratua ainda estava alto sobre o lago Baikal quando Konrad Schneider e o Comissário-assistente da Ciência Nuclear se afastaram, caminhando lentamente na plataforma de teste do motor. Os seus ouvidos ainda pulsavam, doridos, embora os últimos ecos ensurdecedores tivessem morrido no lago dez minutos antes.

– Porquê essa cara? – perguntou, de súbito, Grigorievitch. – Devia estar feliz agora. Daqui a um mês estaremos a caminho, e os ianques vão ficar roídos de raiva.

– Você é um otimista, como sempre – disse Schneider. – Mesmo com o motor a funcionar, não é assim tão fácil. É verdade que agora não consigo imaginar nenhum obstáculo sério... Mas estou preocupado com os informantes de Taratua. Eu já lhe expliquei o quão bom é o Hoffmann, além disso ele tem biliões de dólares por trás dele. As fotografias da nave dele não estão muito nítidas, mas parece já não faltar muito para terminarem. E bem sabemos que eles já testaram o motor há cinco semanas atrás.

– Não se preocupe – riu Grigorievitch. – São eles que vão ter uma grande surpresa. Não se esqueça que eles não sabem nada sobre nós.

Konrad Schneider ponderou se isso seria ou não verdade, mas decidiu que era muito mais seguro não levantar dúvidas. Poderia fazer com que a mente de Grigorievitch começasse a explorar canais tortuosos demais e, se tivesse havido alguma fuga de informação, talvez fosse difícil provar a sua própria inocência.

O guarda bateu continência no momento em que Schneider voltou ao edifício administrativo. «Há quase tantos soldados aqui», pensou, mal-humorado, «quanto técnicos.» No entanto, era assim que os russos faziam as coisas, e desde que se mantivessem fora do seu caminho, estava tudo bem por ele. No geral, com algumas exceções irritantes, as coisas tinham corrido praticamente conforme o esperado. Agora só o futuro lhe poderia dizer quem, entre ele e Reinhold, tinha feito a melhor escolha.

Já estava a trabalhar no seu relatório final quando foi perturbado pelo som de vozes a gritar. Durante um momento sentou-se imóvel à secretária, sem conseguir imaginar em que possível circunstância alguém seria capaz de perturbar a rígida disciplina do campo. Depois dirigiu-se à janela e, pela primeira vez na sua vida, soube o que era o desespero.

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A toda a sua volta haviam estrelas quando Reinhold desceu a encosta. Ao fundo, no mar, o Forrestal ainda vasculhava as águas com os seus dedos de luz, enquanto, mais perto da praia, os andaimes à volta da Colombo se transformavam numa árvore de natal iluminada. Apenas a proa saliente da nave permanecia como uma sombra escura, ocultando as estrelas.

Um rádio tocava música de dança bem alto nos alojamentos e, sem dar por isso, os pés de Reinhold aceleraram de acordo com o ritmo. Já tinha quase alcançado a estrada estreita que rodeava a areia quando uma premonição, apenas um movimento vislumbrado, fez com que parasse. Perplexo, desviou o olhar da terra para o mar, e do mar para a terra. Passou-se algum tempo até que se lembrou de olhar para o céu.

Nesse momento, Reinhold Hoffmann soube, ao mesmo tempo que Konrad Schneider, que tinha perdido a corrida. Soube que a perdera não por poucas semanas ou meses, como temia há algum tempo, mas por milénios. As enormes e silenciosas sombras que se moviam entre as estrelas, mais quilómetros acima da sua cabeça do que se atrevia a imaginar, superavam a sua pequena Colombo tanto quanto esta superava as canoas de madeira de um homem do paleolítico. Durante alguns momentos, que pareceram durar para sempre, Reinhold ficou pasmado, da mesma maneira que todo o planeta o fazia, enquanto as enormes naves desciam na sua avassaladora grandiosidade, até que, por fim, pôde ouvir o grito difuso da sua passagem pelo ar rarefeito da estratosfera.

Não lamentou que o trabalho de uma vida se tivesse perdido. Batalhara para levar o homem às estrelas e, na hora do seu triunfo, as estrelas, distantes e indiferentes, tinham vindo até ele.

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Era neste momento que a história sustinha a respiração, e o presente se destacava do passado da mesma forma que um iceberg se separa das encostas geladas que lhe dão origem para navegar pelo oceano, solitário e orgulhoso. Tudo o que as gerações passadas tinham conquistado era, agora, como nada. Um único pensamento ressoava na mente de Reinhold:

«A raça humana não está sozinha».

2

O Secretário-Geral das Nações Unidas mantinha-se imóvel junto à grande janela, os olhos fixos no trânsito que se arrastava pela Rua 43. Às vezes, questionava-se se era bom que um homem trabalhasse àquela altura, tão acima dos seus pares. Distanciamento era aceitável, mas assim seria demasiado fácil transformá-lo em indiferença. Ou estaria ele simplesmente a tentar racionalizar a sua aversão por arranha-céus, que não diminuíra mesmo depois de vinte anos passados em Nova York?

Ouviu a porta a abrir-se nas suas costas, mas não se virou quando Pieter Van Ryberg entrou. Houve a inevitável pausa enquanto Pieter olhava, com desagrado, para o termostato. Não eram novas as piadas sobre o Secretário-Geral gostar de viver num frigorífico. Stormgren aguardou até que o assistente se juntasse a ele à janela, e só então se obrigou a desviar os olhos do panorama familiar, mas sempre fascinante, lá em baixo. Disse:

– Estão atrasados. Wainwright devia ter chegado há cinco minutos.

– A polícia acabou de avisar. Ele trás um verdadeiro cortejo, o que engarrafou o trânsito. Deve chegar a qualquer momento.

Van Ryberg fez uma pausa até que acrescentou, abruptamente:

Ainda acha mesmo que é uma boa ideia falar com ele?

– Receio que agora seja um pouco tarde para recuar. Afinal de contas, eu concordei. Embora tu saibas que a ideia não partiu de mim.

Stormgren caminhara até à mesa e brincou com o seu famoso pisa-papéis de urânio. Não se sentia nervoso, apenas indeciso. Também estava satisfeito por Wainwright estar atrasado, já que isso lhe daria uma pequena vantagem moral quando a reunião começasse. Trivialidades assim desempenhavam um papel muito mais importante nas relações humanas do que qualquer pessoa apegada à lógica e à razão gostaria.

– Aí estão eles! – disse Van Ryberg, de repente, encostando a cara à janela. – Estão a subir a avenida. Mais de três mil, diria eu.

Stormgren pegou no bloco de notas e voltou para o lado do seu assistente. A quase um quilómetro dali, uma pequena mas decidida multidão, movia-se, devagar, na direção do Edifício do Secretariado. Carregavam faixas que eram ilegíveis àquela distância, mas Stormgren já conhecia muito bem a mensagem. Rapidamente se fizeram ouvir, elevando-se acima do barulho do trânsito, o ritmo ameaçador de centenas de vozes em coro. Sentiu uma onda repentina de aversão a tomar conta de si. Certamente este mundo já tivera demasiadas hordas em marcha e frases inflamadas!

A multidão chegara à frente do edifício. Deviam saber que o Secretário-Geral os observava, pois aqui e ali, de forma um pouco tímida, punhos agitavam-se no ar. Não se tratava de um desafio a Stormgren, embora não existissem dúvidas de que os manifestantes desejavam que o gesto fosse visto por ele. Como pigmeus que ameaçam um gigante, estes punhos furiosos erguiam-se contra o céu, cinquenta quilómetros acima das suas cabeças: contra a cintilante nuvem prateada que era a nave almirante da frota dos Senhores Supremos.

«Com certeza», pensou Stormgren, «que o Karellen estava a assistir a tudo e a divertir-se imenso, já que esta reunião nunca teria ocorrido se não tivesse sido instigada pelo Supervisor.»

Era a primeira vez que Stormgren se reunia com o dirigente da Liga da Liberdade. Já tinha deixado de se perguntar se isso era prudente, os planos de Karellen muitas vezes eram subtis demais para a mera compreensão humana. Mesmo no pior dos cenários, Stormgren não via como é que algum dano adicional poderia ser feito. Caso se tivesse recusado a receber Wainwright, a Liga teria usado esse facto contra ele.

Alexander Wainwright era um homem alto e elegante, de quase cinquenta anos. Era, Stormgren sabia, honesto de cima a baixo e, por conseguinte, duplamente perigoso. Contudo, a sua sinceridade óbvia tornava difícil uma pessoa não gostar dele, quaisquer que fossem as opiniões que se tivesse sobre a causa que ele defendesse... e sobre alguns dos seguidores que ela atraísse.

Depois das apresentações feitas por Van Ryberg, breves e um pouco tensas, Stormgren não perdeu tempo.

– Presumo que o principal objetivo da sua visita seja registar um protesto formal contra o projeto da federação. Estou correto?

Wainwright acenou com a cabeça, sério.

– Esse é o meu principal protesto, senhor Secretário. Como sabe, durante os últimos cinco anos temos procurado despertar a raça humana para o perigo a que está exposta. A tarefa tem sido difícil, já que a maioria das pessoas parece satisfeita em deixar que os Senhores Supremos governem o mundo como melhor lhes convém. No entanto, mais de cinco milhões de patriotas, em todos os países, assinaram o nosso abaixo-assinado.

– Não é um número muito impressionante, numa população de dois mil milhões e meio.

– É um número que não pode ser ignorado. E, para cada pessoa que assinou, há muitas que têm sérias dúvidas quanto à sensatez, para não falar na justiça, deste plano de federação. O próprio Supervisor Karellen, apesar de todo o seu poder, não pode apagar mil anos de história com uma canetada.

– O que é que alguém sabe dos poderes de Karellen? – replicou Stormgren. – Quando eu era miúdo, a Federação Europeia era um sonho. Mas, quando cresci, era uma realidade. E isso foi antes da chegada dos Senhores Supremos. Karellen está apenas a concluir o trabalho que nós começámos.

– A Europa era uma entidade cultural e geográfica. O mundo, não. Essa é que é a diferença.

– Para os Senhores Supremos – continuou Stormgren, sarcástico – a própria Terra deve parecer muito mais pequena do que a Europa pareceria aos nossos pais. E a visão deles, diria eu, é mais madura do que a nossa.

– Eu não discordo, necessariamente, da federação como um objetivo final, embora muitos dos meus simpatizantes possam não concordar. Só que isso deve partir de dentro, e não pode ser imposta de fora. Nós precisamos de tentar resolver o nosso próprio destino. Não pode haver mais interferência nos assuntos humanos!

Stormgren suspirou. Já ouvira tudo aquilo uma centena de vezes, e sabia que só podia dar a velha resposta que a Liga da Liberdade se recusava a aceitar. Tinha fé em Karellen e eles não. Era essa a diferença fundamental entre eles, e não havia nada que pudesse fazer a esse respeito. Felizmente, tampouco a Liga podia fazer o que quer que fosse.

– Deixe-me fazer-lhe algumas perguntas – disse Stormgren. – Pode negar que os Senhores Supremos trouxeram segurança, paz e prosperidade ao nosso mundo?

– É verdade. Só nos tiraram foi a liberdade. Nem só de pão...

– ...vive o homem. Sim, eu sei. Mas esta é a primeira época em que todos os homens têm a certeza de conseguir, pelo menos, isso. De qualquer maneira, que liberdade perdemos em comparação com a que os Senhores Supremos nos deram, pela primeira vez na história da humanidade?

– A liberdade de controlar as nossas próprias vidas, guiados por Deus.

«Finalmente», pensou Stormgren, «chegámos ao ponto. No fundo, trata-se de um conflito religioso, por mais que se tente disfarçá-lo. Wainwright nunca deixa ninguém esquecer que já foi sacerdote. Embora já não use o colarinho clerical, de algum modo deixa sempre a impressão de que ele ainda ali está.»

– No mês passado – observou Stormgren – uma centena de bispos, cardeais e rabinos assinou uma declaração conjunta dando apoio à política do Supervisor. As religiões do mundo estão contra si.

Wainwright abanou vigorosamente a cabeça, num gesto de negação indignada.

– Muitos desses líderes estão cegos. Foram corrompidos pelos Senhores Supremos. Quando se aperceberem do perigo, poderá ser tarde demais. A humanidade já terá perdido a iniciativa, ter-se-á tornado numa raça de vassalos.

Seguiu-se um instante de silêncio. Até que Stormgren respondeu:

– Daqui a três dias vou me reunir de novo com o Supervisor. Explicar-lhe-ei as suas objeções, visto que é o meu dever representar os pontos de vista do mundo. Mas isso não vai mudar nada, posso garantir.

– Há uma outra questão – falou Wainwright, devagar. – Temos muitas objeções aos Senhores Supremos, mas, acima de tudo, abominamos essa insistência deles em manterem-se ocultos. O senhor é o único ser humano que já falou com Karellen e, mesmo assim, nunca o viu! Será de admirar que duvidemos dos motivos dele?

– Apesar de tudo o que ele tem feito pela humanidade?

– Sim, apesar de tudo isso. Não sei o que é que nos ofende mais: a omnipotência de Karellen ou sua reclusão. Se não tem nada a esconder, porque é que nunca se mostra? Da próxima vez que falar com o Supervisor, Sr. Stormgren, faça-lhe essa pergunta!

Stormgren ficou em silêncio. Não havia nada que pudesse dizer. Nada que convencesse o outro. Às vezes Stormgren não tinha certeza se mesmo ele realmente se convencera.

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Do ponto de vista deles, era obviamente apenas uma operação muito pequena, mas, para a Terra, era o maior acontecimento da história. Não tinha havido nenhum aviso antes das grandes naves se precipitarem das profundezas desconhecidas do espaço. O dia fora descrito inúmeras vezes, em ficção, mas ninguém acreditava realmente que acontecesse. Agora, por fim, esse dia chegara: as formas cintilantes e silenciosas, suspensas sobre todas as terras, simbolizavam uma ciência que o Homem não poderia ter a esperança de igualar nos próximos séculos. Durante seis dias flutuaram, imóveis, sobre as cidades, sem sequer dar a entender que sabiam da sua existência. Mas não era preciso: não fora por coincidência que as poderosas naves pararam precisamente sobre Nova York, Londres, Paris, Moscovo, Roma, Cidade do Cabo, Tóquio, Camberra...

Antes mesmo do fim destes dias aterradores, alguns homens já tinham adivinhado a verdade. Não se tratava do primeiro e hesitante contacto de uma raça que nada sabia sobre a humanidade. Dentro destas naves silenciosas e imóveis, mestres da psicologia estudavam as reações dos seres humanos. Quando a curva de tensão atingisse o máximo, eles agiriam.

Foi no sexto dia que Karellen, Supervisor para a Terra, se fez conhecer ao mundo numa transmissão que se sobrepôs a todas as frequências de rádio. Falou num inglês tão perfeito que a controvérsia que iniciou assolaria os dois lados do Atlântico durante uma geração. Mas o contexto do discurso foi ainda mais surpreendente do que a forma. Por quaisquer padrões, era a obra de um génio insuperável, mostrando um domínio completo e absoluto dos assuntos humanos. Não restava qualquer dúvida da sua erudição e virtuosismo, os vislumbres de um conhecimento tentador e ainda inexplorado tinham sido concebidos de antemão para convencer a humanidade de que estavam na presença de um poder intelectual esmagador. Quando Karellen terminou, as nações da Terra souberam que os seus dias de soberania precária tinham terminado. Os governos locais, internos, ainda conservariam os seus poderes, mas, no campo mais amplo dos assuntos internacionais, as decisões supremas deixaram as mãos humanas. Discussões, protestos... tudo era inútil.

Dificilmente se poderia esperar que todas as nações do mundo se submetessem, de maneira dócil, a uma tal limitação dos seus poderes. No entanto, a resistência apresentava dificuldades desconcertantes, uma vez que a destruição das naves dos Senhores Supremos, mesmo que fosse possível, aniquilaria as cidades imediatamente abaixo delas. Apesar disso, uma das grandes potências tentou. Talvez os responsáveis esperassem matar dois coelhos com um só míssil atómico, já que o seu alvo flutuava sobre a capital de uma nação vizinha e hostil.

Enquanto a imagem da enorme nave se expandia no ecrã do televisor da sala de controlo secreta, o pequeno grupo de autoridades e técnicos deve ter sentido diversas emoções contraditórias. Se sucedessem, qual seria a reação que as restantes naves iriam adotar? Será que também poderiam ser destruídas, deixando que a humanidade voltasse ao seu próprio caminho? Ou será que Karellen desencadearia uma terrível vingança sobre os seus agressores?

Quando o míssil se destruiu com o impacto, o ecrã ficou subitamente vazio, e a imagem passou de imediato para uma câmara aérea, a muitos quilômetros de distância. Nessa fração de segundo, já se deveria ter formado uma bola de fogo, enchendo o céu com suas chamas solares.

Todavia, não acontecera absolutamente nada. A poderosa nave pairava incólume, banhada pela luz crua do Sol, na fronteira do espaço. Não só a bomba falhara o seu alvo, mas também nunca ninguém conseguiria explicar o que é que aconteceu ao míssil. Além do mais, Karellen não tomara qualquer tipo de medida contra os responsáveis, ou tampouco demonstrou de forma alguma que se tinha dado conta do ataque. Ignorara-o com desdém, deixando que se preocupassem com uma vingança que nunca chegaria. Tinha dispensado um tratamento muito mais eficiente, e muito mais desmoralizante, do que qualquer outro tipo de medida punitiva. Resultado, algumas semanas depois, o governo responsável desintegrava-se completamente no meio de recriminações mútuas.

Também existira alguma resistência passiva às políticas dos Senhores Supremos. Quase sempre, Karellen fora capaz de lidar com isso simplesmente deixando que os envolvidos fizessem o que queriam, até descobrirem que só se prejudicavam a si mesmos com a recusa em cooperar. Apenas uma vez tomara medidas diretas contra um governo recalcitrante.

Durante mais de cem anos, a República da África do Sul havia sido o centro de rivalidades raciais. Homens de boa vontade, de ambos os lados, tinham tentado construir pontes, mas em vão: os temores e preconceitos tinham raízes profundas demais para permitir qualquer tipo de cooperação. Os sucessivos governos distinguiam-se apenas pelo grau da sua intolerância. O país estava envenenado pelo ódio e pelas consequências da guerra civil.

Quando se tornou claro que nenhuma tentativa seria feita para pôr fim à discriminação, Karellen emitira o seu aviso. Limitou-se a especificar uma data e um horário; nada mais. Houve apreensão, mas pouco medo ou pânico. Ninguém acreditava que os Senhores Supremos fossem adotar uma medida violenta ou destrutiva que atingisse tanto inocentes quanto culpados.

E não adotaram. O que aconteceu foi simplesmente que, à hora em que passava pelo meridiano da Cidade do Cabo, o Sol desapareceu. Vislumbra-se apenas um fantasma pálido e arroxeado, que não fornecia nem calor nem luz. De alguma forma, no espaço, a luz do Sol fora polarizada por dois campos transversais, de modo a que nenhuma radiação pudesse passar. A área afetada tinha quinhentos quilómetros de diâmetro, e era perfeitamente circular.

A demonstração durou trinta minutos. Foi o suficiente: no dia seguinte, o governo da África do Sul anunciou que todos os direitos civis seriam restituídos à minoria branca.

Exceto em alguns casos de incidentes isolados, a raça humana aceitara os Senhores Supremos como parte da ordem natural das coisas. Fora uma curva temporal surpreendentemente curta, mas o choque inicial desapareceu e o mundo voltou a seguir o seu curso. A única diferença que um Rip van Winkle recém-acordado notaria era uma certa esperança silenciosa, um certo estado de apreensão e expectativa, enquanto a humanidade aguardava que os Senhores Supremos se mostrassem e descessem das suas naves cintilantes.

Cinco anos depois, continuavam a aguardar. «E isso», pensou Stormgren, «era a causa de todos os problemas.»

Havia o habitual círculo de curiosos, com as suas câmaras prontas, enquanto o carro de Stormgren se aproximava do campo de lançamento. O Secretário-Geral trocou algumas palavras de última hora com o seu assistente, agarrou na sua pasta e passou pelo meio da roda de espectadores.

Karellen nunca o deixava muito tempo à espera. Com um súbito «Oh!» vindo da multidão, uma bolha prateada expandiu-se no céu com uma velocidade de tirar o fôlego. Uma súbita rajada de ar agitou as roupas de Stormgren quando a minúscula nave pousou a cinquenta metros de distância, flutuando, com suavidade, alguns centímetros acima do solo, como se temesse ser contaminada pela Terra. À medida que avançava lentamente, Stormgren viu o casco metálico inteiriço a vincar-se de modo familiar. Logo a seguir, aparecia diante de si a abertura que tanto desconcertara os melhores cientistas do mundo. Entrou assim no único compartimento da nave, suavemente iluminado. Atrás de si, a entrada fechou-se como se nunca tivesse existido, bloqueando qualquer som e toda luz vinda de fora.

A nave tornou a abrir-se cinco minutos depois. Não houve qualquer tipo de sensação de movimento, mas Stormgren sabia que estava, agora, cinquenta quilómetros acima da Terra, bem no interior da nave de Karellen. Estava no mundo dos Senhores Supremos: à sua volta, eles tratavam dos seus negócios misteriosos. Chegara mais perto deles do que qualquer outro homem. Não sabia, porém, mais sobre sua natureza física do que os milhões de habitantes do mundo lá em baixo.

A pequena sala de reuniões, ao fundo do curto corredor de ligação, não estava mobilada, à exceção de uma cadeira e de uma mesa sob um ecrã assente numa divisória. Como esperado, não diziam absolutamente nada a respeito das criaturas que as tinham construído. O ecrã estava vazio, como sempre estivera. Às vezes, em sonhos, Stormgren imaginava que ele se acendia de repente, revelando um segredo que atormentava todo o planeta. No entanto, o sonho nunca se tornara realidade: por trás do retângulo de escuridão, ocultava-se um mistério completo. Contudo, também havia poder e sabedoria. E, talvez mais importante, um imenso e bem-intencionado afeto por aquelas criaturinhas que rastejavam no planeta em baixo.

Do outro lado da divisória veio a voz calma e nunca apressada que Stormgren conhecia tão bem, embora o mundo só a tivesse ouvido uma vez na história. A sua profundidade e ressonância davam a única pista que existia a respeito da natureza física de Karellen, transmitiam uma sensação marcante de puro tamanho. Karellen era grande. Talvez muito maior do que um homem. Era verdade que alguns cientistas, depois de terem analisado a gravação do seu único discurso, tinham sugerido que a voz era a de uma máquina. Isso, porém, era algo em que Stormgren jamais poderia acreditar.

– Sim, Rikki, eu estava a ouvir a tua pequena reunião. A que conclusão chegaste sobre o Sr. Wainwright?

– É um homem honesto, mesmo que muitos dos seus simpatizantes não sejam. O que é que vamos fazer? A Liga em si não é perigosa, mas alguns dos seus elementos extremistas apregoam abertamente a violência. Estive a pensar se deveria colocar guardas em minha casa. Mas espero que não seja preciso.

Karellen esquivou-se ao assunto como, às vezes e de forma irritante, fazia.

– Os detalhes da federação mundial já foram divulgados há um mês. Houve algum aumento substancial nos sete por cento que não aprovam a minha presença ou nos doze por cento dos indecisos?

– Ainda não. Mas isso não tem importância. O que realmente me preocupa é um sentimento generalizado, mesmo entre os simpatizantes, de que chegou a altura de terminar a sua reclusão.

O suspiro de Karellen foi tecnicamente perfeito, embora, de certa maneira, lhe faltasse convicção.

– Também achas isso, não é?

A pergunta era tão retórica que Stormgren não se deu ao trabalho de responder.

– Pergunto-me se realmente compreende – prosseguiu, sem meias palavras – como é que este estado de coisas dificulta meu trabalho.

– Também não ajuda o meu – replicou Karellen, com um certo vigor. – Gostaria que as pessoas parassem de pensar em mim como um ditador e se lembrassem de que sou apenas um funcionário público, a tentar pôr em prática uma política colonial de cuja formulação não participei.

«Isso,» pensou Stormgren, «é uma descrição interessante». Perguntou-se ao certo o quão verdadeira seria.

– Não pode pelo menos dar-nos algum motivo para a sua reclusão? Porque efetivamente não a conseguimos compreender, incomoda-nos e gera todo o tipo de boatos.

Karellen deu aquela sua gargalhada, intensa e profunda, um pouco ressonante demais para ser completamente humana.

– O que é que eles acham que eu sou agora? A teoria do robô ainda é a principal? Preferia ser uma massa de válvulas eletrónicas do que uma espécie de centopeia. Ah, sim, eu vi a caricatura no Chicago Tribune de ontem! Estou a ponderar pedir-lhes o original.

Stormgren contraiu os lábios visivelmente. «Havia alturas», pensou, «em que Karellen tratava as suas responsabilidades de forma completamente leviana.»

– Isto é sério – disse Stormgren, em tom de reprovação.

– Meu caro Rikki – respondeu Karellen – é só por não levar a raça humana a sério que eu consigo manter os vestígios de que ainda possuo dos meus outrora consideráveis poderes mentais!

Mesmo sem querer, Stormgren sorriu.

O Fim da Inocência
créditos: Asa

Livro: O Fim da Infância

Autor: Arthur C. Clarke

Editora: Oficina do Livro

Preço: 14,31€

– Isso não me ajuda muito, não é? Ainda vou ter que descer à Terra e convencer os meus pares de que, embora você não se vá mostrar, não tem nada a esconder. Não é um trabalho fácil. A curiosidade é um dos traços mais marcantes da humanidade. Não vai poder contê-la para sempre.

– De todos os problemas com que nos defrontámos quando viemos para a Terra, esse foi o mais difícil – admitiu Karellen. – Mas vocês têm confiado na nossa sabedoria noutros assuntos. Com certeza também poderão confiar neste!

– Eu confio – disse Stormgren – mas o Wainwright não, nem os simpatizantes dele. Podemos mesmo culpá-los se interpretarem mal a sua relutância em mostrar-se?

Houve silêncio por um momento. Então Stormgren ouviu o som fraco (seria um estalido?) que poderia ter sido causado pelo Supervisor movendo ligeiramente o corpo.

– Sabes porque é que o Wainwright e os outros como ele têm medo de mim, não sabes? – perguntou Karellen. A sua voz sóbria, como um grande órgão fazendo soar as suas notas na nave de uma catedral. – Encontras homens destes em todas as religiões do mundo. Sabem que nós representamos a razão e a ciência e, apesar da confiança que têm nas suas crenças, temem que derrubemos os seus deuses. Não necessariamente com um ato deliberado, mas de uma maneira mais subtil. A ciência tanto pode destruir a religião ignorando-a, como refutando as suas doutrinas. Nunca ninguém demonstrou, que eu saiba, a inexistência de Zeus ou de Thor. Ainda assim hoje têm poucos seguidores. Os Wainwrights também temem que saibamos a verdade sobre a origem das suas crenças. Perguntam-se: Por quanto tempo estivemos a observar a humanidade? Será que vimos Maomé começar a Hégira, ou Moisés a entregar as leis aos judeus? Será que sabemos tudo o que está errado nas histórias em que eles acreditam?

– E sabem? – murmurou Stormgren, meio para si mesmo.

– Esse, Rikki, é o medo que os atormenta, embora jamais o reconheçam abertamente. Acredita em mim, não temos prazer nenhum em destruir a fé dos homens, só que as religiões do mundo não podem estar todas certas, e eles sabem isso. Mais cedo ou mais tarde, o homem vai ter que saber a verdade; mas o momento ainda não chegou. Quanto à nossa reclusão, que tu acusas corretamente de agravar os nossos problemas, é uma questão que está para lá do meu controlo. Lamento a necessidade desta reserva tanto como tu, mas acredita que há razões suficientes para isso. No entanto, eu vou tentar conseguir uma declaração dos meus... superiores... que talvez vos satisfaça e, quem sabe, talvez acalme a Liga da Liberdade. Agora, podemos voltar à nossa agenda e recomeçar a gravação?

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– Então? – perguntou Van Ryberg, ansioso. – Teve sorte?

– Não sei – respondeu Stormgren cansado, enquanto atirava as pastas para cima da mesa e se deixava cair na cadeira. – Karellen vai consultar os seus superiores agora, sejam quem, ou o que forem. Não quis fazer promessas.

– Escute – disse Pieter abruptamente – estive a pensar numa coisa. Que motivo é que nós temos para acreditar que existe alguém acima do Karellen? E se todos os Senhores Supremos, como nós lhes chamamos, estiverem aqui na Terra, dentro das naves? Talvez não tenham para onde ir, mas escondam isso das pessoas.

– É uma teoria bem pensada – sorriu Stormgren. – Só que vai contra o pouco que eu sei, ou penso que sei, sobre o passado do Karellen.

– E quanto é que o senhor sabe?

– Bom, ele refere-se sempre à posição dele aqui como algo temporário e que não o deixa dedicar-se ao seu verdadeiro trabalho, que deve ser algo tipo matemática. Uma vez mencionei a citação de Acton sobre o poder corromper e o poder absoluto corromper absolutamente. Queria ver qual seria a reação dele. Ele deu uma daquelas gargalhadas cavernosas e disse: «Não há perigo disso vir a acontecer comigo. Em primeiro lugar, quanto mais rápido terminar o meu trabalho aqui, mais rapidamente posso voltar para onde realmente pertenço, a muitos anos-luz daqui. E em segundo lugar, não tenho poder absoluto, de maneira nenhuma. Sou apenas um... Supervisor.» É claro que ele me podia estar a enganar. Nunca vou ter a certeza.

– Karellen é imortal, não é?

– Sim, pelos nossos padrões, embora haja algo no futuro que parece temer. Não consigo imaginar o que seja. E isso é mesmo tudo o que eu sei sobre ele.

– Não é muito conclusivo. A minha teoria é que a frota dele se perdeu no espaço e está à procura de um novo lar. Não devem querer que nós saibamos que eles são poucos. Quem sabe, se calhar as outras naves são todas automáticas e não têm ninguém lá dentro. Se calhar são só uma fachada imponente.

– Tu – disse Stormgren – andas a ler ficção científica a mais.

Van Ryberg sorriu, um pouco embaraçado.

– A «invasão do espaço» não correu tão bem como previsto, não é? A minha teoria certamente explicaria porque é que Karellen nunca se mostra. Não quer que nós saibamos que não existe mais nenhum Senhor Supremo.

Stormgren sacudiu a cabeça, discordando, bem-humorado.

– A tua explicação, como quase sempre, é bem pensada demais para ser verdadeira. Embora só tenhamos como inferir a sua existência, deve haver uma grande civilização por trás do Supervisor. E uma que sabe da existência da humanidade há muito tempo. O próprio Karellen deve ter nos estudado durante séculos. Repara no domínio que ele tem do inglês, por exemplo. Ele ensinou-me a mim a usar expressões idiomáticas!

– Já conseguiu descobrir alguma coisa que ele não soubesse?

– Ah, sim, muitas... mas só coisas triviais. Acho que ele tem uma memória absolutamente perfeita, mas há certas coisas que não perdeu tempo a aprender. Por exemplo, o inglês é a única língua que ele compreende com perfeição. Embora nos últimos dois anos tenha aprendido bastante de finlandês, só para me baralhar. E não se aprende finlandês assim! Mas eu já o ouvi a citar grandes trechos do Kalevala, enquanto tenho vergonha de dizer, eu próprio só conheço alguns versos. Também conhece as biografias de todos os estadistas vivos e, às vezes, consegue identificar as referências que eles usam. O conhecimento dele em história e ciência parece completo. Bem sabes o quanto é que nós já aprendemos com ele. No entanto, tomados um de cada vez, não creio que seus dotes intelectuais estejam muito além do alcance das conquistas humanas. A diferença é que nenhum homem conseguiria fazer todas as coisas que ele faz.

– Essa é mais ou menos a conclusão a que já cheguei – concordou Van Ryberg. – Podemos discutir eternamente sobre Karellen, mas no fim voltamos sempre à mesma pergunta: porque diabo é que ele não se mostra? Até que ele apareça, vou continuar a fazer teorias e a Liga da Liberdade vai continuar a berrar.

Ergueu um olho rebelde para o teto.

– Numa noite escura, Sr. Supervisor, espero que um repórter pegue num foguete vá até à sua nave e suba pela porta dos fundos com uma câmara. O furo que isso seria!

Se Karellen estava a ouvir, não deu sinais disso. Mas, é claro, nunca dava.

*

No primeiro ano da sua chegada, o advento dos Senhores Supremos causara menos mudanças na estrutura da vida humana do que seria espectável. A sua sombra estava em todo o lado, mas era uma sombra discreta. Embora houvessem poucas cidades grandes na Terra onde os homens não pudessem ver uma das naves prateadas resplandecendo no zénite, passado algum tempo elas começaram a ser vistas como uma parte tão integrante da paisagem como o Sol, a Lua ou as nuvens. A maioria das pessoas provavelmente tinha apenas uma vaga consciência de que o seu padrão de vida era cada vez melhor e que isso se devia aos Senhores Supremos. Quando paravam para pensar nisso, o que era raro, percebiam que as naves silenciosas tinham trazido paz ao mundo pela primeira vez na história, e aí sim, ficavam devidamente gratas.

No entanto, esses eram benefícios por exclusão e como tal não eram espetaculares. Eram aceites, mas rapidamente esquecidos. Os Senhores Supremos permaneciam distantes, escondendo as suas caras da humanidade. Karellen poderia despertar respeito e admiração, mas não conquistaria nada mais profundo enquanto prosseguisse com sua política atual. Era difícil não sentir algum rancor contra estes seres do Olímpo que se dirigiam à humanidade apenas por meio dos circuitos de telégrafo na sede das Nações Unidas. O que acontecia entre Karellen e Stormgren nunca vinha a público e, às vezes, até o próprio Stormgren se perguntava porque é que o Supervisor considerava as reuniões necessárias. Talvez sentisse a necessidade de ter algum contacto direto com pelo menos um ser humano. Talvez percebesse que Stormgren precisava dessa forma de apoio moral. Se era essa a explicação, o Secretário-Geral ficava-lhe grato. Não se importava que a Liga da Liberdade se referisse a ele, com desprezo, como «o Estagiário de Karellen».

Os Senhores Supremos nunca se envolviam com países ou governos individuais. Tinham tomado a Organização das Nações Unidas tal e qual como a encontraram. Limitaram-se a dar instruções para a instalação dos equipamentos de rádio necessários e emitiam as suas ordens pela boca do Secretário-Geral. O delegado soviético observara, com propriedade, longa e repetidamente, que o procedimento não estava de acordo com a Carta da ONU. Karellen não parecia preocupado.

Era assombroso como tantos abusos, loucuras e males podiam ser desfeitos com apenas uma daquelas mensagens do céu. Com a chegada dos Senhores Supremos, as nações perceberam que não precisavam de se recear umas às outras, e adivinharam (antes mesmo de experimentar) que as armas existentes, seriam certamente inúteis contra uma civilização capaz de atravessar o abismo entre as estrelas. Desta forma, o maior obstáculo individual à felicidade da raça humana fora removido de imediato.

Os Senhores Supremos pareciam bastante indiferentes relativamente às diferentes formas de governo, desde que não fossem opressivas ou corruptas. A Terra ainda tinha democracias, monarquias, ditaduras benevolentes, comunismo e capitalismo. Este foi um dos motivos de grande surpresa para muitas almas mais simples, que estavam completamente convencidas de que o seu era o único modo de vida possível. Outros acreditavam que Karellen estava apenas à espera para introduzir um sistema que iria varrer do mapa todas as formas existentes de sociedade e, por isso, não se preocupava muito com reformas políticas menores. Tudo isso, porém, tal como todas as outras suposições a respeito dos Senhores Supremos, era pura especulação. Ninguém conhecia os motivos deles. E ninguém sabia para que futuro estavam a conduzir a humanidade.