* Para ouvir esta história carregue sobre a parte sombreada do texto. 

Ricardo nasceu na ilha da Martinica, nas Antilhas Francesas, Caraíbas, vive em Moscovo há dois anos e trabalha para a Embaixada da Costa do Marfim. Fala russo, francês, mas foi em inglês que serviu, por breves instantes, de “guia” no Metro da capital russa. Saltitou entre estações para nos deixar na Arbatskaya, estação que dá acesso à rua Arbat, uma das ruas mais antigas de Moscovo, porto de abrigo de artistas.

À primeira vista, mal passamos os detetores de metais espalhados nas mais de 200 estações, apercebemo-nos que não será uma simples viagem do ponto A ao ponto B, ou se quisermos da estação de Paveletskaya (que cola com a estação de caminhos de ferro de Paveletsky, que faz a ligação ao aeroporto internacional de Domodedovo), linha verde, número 2, datada de 1943, até Arbatskaya, linha 3, pintada de azul, mergulhada a 41 metros de profundidade, construída em 1953 e que para além de meio de transporte serviu de abrigo contra possíveis bombardeamentos (um dos muitos bunkers da cidade) numa era em que se vivia em plena Guerra Fria.

A primeira espreitadela foi na estação desenhada pelo arquiteto russo Mikhail Polyakov, que concebeu o edifício onde hoje emerge o Hotel Hilton Leningradskaya, icónico imóvel dos anos 50 do século passado e um dos sete arranha-céus da cidade.

Entre as sombras de milhares de moscovitas em passo acelerado com os olhos postos nos telemóveis conseguimos parar a imagem e deliciar-nos com o chão de mármore vermelho, os tetos ornamentados, relevos florais (bouquets) e os candeeiros de bronze um tanto ao quanto ao estilo Rococó.

A primeira amostra deste museu debaixo de terra confirma a cada milímetro quadrado aquilo que há muito se conta destas galerias por onde passam todos os dias milhões de pessoas. Mas no meio daquele esplendor, o nosso “guia” preferiu alertar para as dificuldades linguísticas que os moscovitas (e russos) sentem quando se trata de ajudar alguém na rede de Metro. “Elas esforçam-se por falar em inglês. Os homens russos não tanto. E têm vergonha de não conseguirem explicar”, diz.

Não foi difícil, digamos. “Elas” e “eles” falam (e ajudam), a rede não é nenhum bicho-de-sete-cabeças e a app (Yandey Metro) dá uma enorme ajuda. É claro que os nomes no alfabeto cirílico dificultam, e muito, a leitura e a compreensão onde estamos e para onde queremos ir. Mas descanse. A seguir ao anúncio feito em russo sobre a “próxima estação” escutamos o mesmo em inglês. E há mais. Nas duas linhas circulares, quando a carruagem se desloca no sentido dos ponteiros do relógio é uma voz masculina quem mais ordena, sendo que as mulheres fazem-se ouvir no sentido contrário e, nas outras linhas, uma voz grossa anuncia o caminho até ao centro, sendo que em sentido inverso é um som no feminino que nos embala.

No meio de eventuais incertezas na hora de escolher a linha, uma certeza acompanha-nos. Há sempre uma carruagem a passar a cada 90 segundos. Ou seja, se nos enganarmos, rapidamente voltamos ao ponto de partida.

Um palácio do povo e para o povo com arte, história e música

Entremos então nesta cápsula do tempo, viajando às raízes do orgulho russo e soviético, a uma afirmação então feita do outro lado da Cortina de Ferro sobre o Capitalismo Ocidental, com obras de arte, símbolos, ornamentos, pinturas e figuras icónicas espalhadas nas paredes e nos tetos. Uma exaltação à “mãe Rússia” que permanece hoje, enaltecendo e honrando o passado.

Um palácio do povo e para o povo, que viveu e vive entre a decoração Art Deco e o Barroco russo, com outros estilos, nada condizentes, à boleia do tempo da construção e da visão asceta que então predominava.

Assim se pode definir o Metro de Moscovo, obra iniciada em 1935 por Estaline que foi, na altura, a joia da coroa da tecnologia soviética banhada com valores e cultura da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), representados em arte, à mão de serem absorvidos pela vista de quem mergulhava nas profundezas da terra.

Grande parte da linha foi construída durante a 2ª Guerra Mundial tendo, então, servido de bunker, com lojas, livrarias e, imagine-se, com uma “delegação” governamental temporária na estação Mayakovskaya, inaugurada em 1938 e exemplo da arquitetura estalinista pré-guerra. Nesta paragem, cujo nome homenageia o poeta russo Vladimir Mayakovsky (1893-1930) e que representa o esplendor da aviação russa, ficamos, literalmente, a olhar para cima, para os 34 mosaicos pintados nos tetos.

Por mais voltas que dê e queira dar, há saídas obrigatórias. À cabeça está a Ploschad Revolutsii (Praça da Revolução, em português). Não se surpreenda com as constantes afogadelas no nariz de um cão (dá sorte, dizem), atente às 76 estátuas em bronze que ornamentam esta estação e cujas figuras, a maioria sentadas, encolhidas, representam o povo soviético: do soldado do exército vermelho, ao agricultor, ao estudante, aos vendedores, engenheiros e outros.

Deste ponto submerso emergimos à superfície deparando-nos com outro verdadeiro postal da cidade: Kremlin, Praça Vermelha, rua Nikolskaya, GUM e as Catedrais de São Basílio, Kazan e da Anunciação.

Do carrossel militar à nova vida

O Metro de Moscovo apresenta duas linhas circulares. Uma “nasceu”, segundo reza a lenda, após Estaline ter pousado uma chávena de café num mapa do metropolitano e que viria a criar (daí a cor castanha) o primeiro círculo (12 estações) no coração da cidade e cuja decoração glorifica a herança militar do povo russo.

Neste enorme carrossel, a cada estação acrescenta-se um capítulo na história do país. Na Novoslobodskaya, os vitrais do artista Pável Kôrin transportam-nos para uma igreja bizantina, sobressaindo o grande painel de esmalte batizado “Paz Mundial”. A Park Kultury, com relevos de atividades físicas dá acesso ao famoso Gorky Park. Em Komsomolskaya, aprendemos a história militar russa. Na Belorusskaya, os mosaicos no teto narram a história antiga e moderna da Rússia e na Taganskaya a arquitetura medieval é o tema principal.

Na Kiyevskaya, a narrativa contada em painéis versa as relações entre a Rússia e a Ucrânia, e na Dobryninskaya vislumbra-se a figura de Lenine. A Park Pobedy, mergulhada a cerca de 80 metros de profundidade, dá acesso ao parque Vitória (tem a maior escada rolante da Europa e demora três minutos até à superfície), local que constitui uma ode à vitória na 2ª Guerra Mundial; e na estação Dostoevskaya, inaugurada em 2010, os retratos de Fyodor Dostoevsky cumprem o tributo ao grande nome da cultura russa. Albergando uma fonte na passagem entre as estações Rimskaya e Ploshchad Ilyicha, e ostentando o “troféu” de única estação numa ponte, está Vorobyovy Gory.

Mas não é só a arte que inunda estes corredores e há espaço para outras formas de expressão cultural. O Metro em Moscovo é sinal de música e artistas de todos os géneros aproveitam a acústica e dão largas à sua criatividade. Em cada recanto.

Aproveitando a deixa musical, na Elektrozavodskaya parece que estamos numa discoteca, tantos são os focos de luz em forma redonda. Pura ilusão. A estação aberta em 1944 “ganhou” o nome devido às inúmeras fábricas nas redondezas, sendo que as paredes estão decoradas com temas alusivos à labuta industrial.

O Metro de Moscovo continua a crescer, em estações e arquitetonicamente falando. Com o wi-fi, em quase todo o lado, os espelhos, metais, vidros, o ar minimalista e high-tech são os postais das novas paragens.

Resta saber como conviverá com o mármore, mosaicos e esculturas do passado glorioso, com a estética do presente, um casamento já visto nas carruagens em que viajamos ao tempo de Estaline, misturando o piso de madeira com o ferro e outras que nos recolocam na era de Putin.

Para o final desta viagem, uma única certeza sobre o Metro da capital russa: é que continua a servir dois propósitos: levar as populações do ponto A ao ponto B enquanto viaja pela história da URSS e da Rússia.