1 - O Incidente Wén Rui

14h47, 12 de março de 2034 (GMT+8)
Mar do sul da China

Mesmo ao fim de 24 anos, ainda a surpreendia a forma como, de horizonte a horizonte, a vasta extensão de mar conseguia, num instante, tornar-se completamente calma, estendida como uma toalha sobre uma mesa. Imaginou que, se se largasse uma agulha do alto, esta penetraria na água, a toda a profundidade, até pousar no leito, onde, imperturbada por qualquer corrente, repousaria. Quantas vezes, ao longo da sua carreira, se deixara ficar, como agora, na ponte de um navio, a observar este milagre de tranquilidade? Um milhar de vezes? Dois milhares? Recentemente, numa noite em claro, estudara os seus diários de bordo e contabilizara todos os dias que passara a cruzar o alto-mar, sem avistar terra. No total, haviam sido quase nove anos. A sua memória saltou para a frente e para trás, ao longo desses imensos anos, desde os seus dias de vigia de subtenente sobre o convés de madeira de um draga-minas com os seus brônquicos motores a gasóleo, passando por um hiato, a meio da sua carreira, em operações especiais nas águas turvas do mundo, até ao presente, com estes três esguios contratorpedeiros classe Arleigh Burke sob o seu comando, formando uma esteira sul-sudoeste a 18 nós sob um sol implacável e indiferente.

A sua pequena frota encontrava-se a 12 milhas marítimas do recife Mischief, nas há muito disputadas ilhas Spratly, numa eufemisticamente intitulada «patrulha de liberdade de navegação». Ela detestava essa designação. Como tantas coisas na vida militar, era concebida para camuflar a verdade da missão, que se tratava de uma provocação, pura e simples. Estas eram, inequivocamente, águas internacionais, pelo menos de acordo com as convenções estabelecidas pela lei marítima; contudo, a República Popular da China considerava-as mares territoriais. Passar pelas muito disputadas ilhas Spratly com a sua frota era o equivalente legal a entrarmos com o nosso carro pelo estimado jardim do vizinho adentro depois de ele avançar ligeiramente a vedação sobre o nosso terreno. E os chineses já andavam a fazê-lo há décadas, constantemente a avançar aos poucos a vedação, até conseguirem reclamar todo o Pacífico Sul.

Portanto… estava na altura de entrar com o carro pelo jardim deles adentro.

Talvez o devêssemos considerar apenas isso, pensou ela, com um leve sorriso sarcástico a tomar-lhe a compostura irrepreensível. Chamemos-lhes «uma passagem pelo jardim do vizinho» e não «uma patrulha de liberdade de navegação». Assim, pelo menos os meus marinheiros vão compreender o que raio fazemos aqui.

Espreitou para trás de si, para a cauda do seu navio-chefe, o John Paul Jones. Seguindo na sua esteira, dispunham-se, numa linha de batalha sobre o horizonte plano, os seus outros dois contratorpedeiros, o Carl Levin e o Chung-Hoon. Ela era o comodoro, encarregada destes três vasos de guerra, bem como de mais quatro, ainda no seu porto de abrigo de San Diego. Estava no auge da sua carreira, e, ao olhar na direção dos outros navios, procurando-os na esteira do seu navio-chefe, viu-se a si própria, com tal nitidez como se estivesse de pé sobre aquela planura de um mar perfeitamente calmo, aparecendo e desaparecendo no reflexo cintilante. Ela própria como fora em tempos: a jovem subtenente Sarah Hunt. E, depois, tal como era agora: a mais velha e mais sábia capitão Sarah Hunt, comodoro da Esquadra de Contratorpedeiros 21 — «Ilhas Salomão em Diante», o lema deles desde a Segunda Guerra Mundial; «Leões Indomáveis», como se autodenominavam. Nos conveses dos seus sete navios, era afetuosamente chamada «Rainha Leão».

Em outubro recebemos José Luís Peixoto

O escritor José Luís Peixoto é o convidado do próximo encontro do clube de leitura É Desta Que Leio Isto, no dia 28 de outubro, pelas 21h. Iremos conversar sobre o seu mais recente livro, Almoço de Domingo, mas também sobre outras das suas obras.

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Deixou-se ali ficar um pouco, a fitar, pensativa, a esteira da embarcação, encontrando e perdendo a sua própria imagem nas águas. Ontem, fora-lhe dada a notícia, por parte da junta médica, mesmo antes de largarem amarras e partirem da base naval de Yokosuka. Tinha o envelope enfiado no bolso. Pensar nesse papel fez-lhe doer a perna esquerda, precisamente onde o osso ficara mal colocado, seguindo-se à dor a previsível explosão de picadas de alfinetes e agulhas que começava na base da coluna. A antiga lesão apanhara-a, por fim. A junta médica dera a sua sentença. Esta seria a última viagem da Rainha Leão. Hunt ainda não conseguia acreditar.

A luz alterou-se de repente, quase impercetivelmente. Hunt observou uma sombra oblonga a cruzar o manto suave do mar, cuja superfície era agora perturbada por uma leve brisa, formando uma ondulação. Olhou para cima, onde transitava uma débil nuvem, a única no céu. Então, a nuvem desapareceu, dissolvendo-se, ao falhar a sua passagem para lá do implacável sol de final de inverno. O mar voltou a ficar absolutamente imóvel.

Os seus pensamentos foram interrompidos pelo ruído oco de passos lestos e leves a subir a escada atrás de si. Consultou o relógio. A capitão do navio, a comandante Jane Morris, estava atrasada, como era habitual.

10h51, 12 de março de 2034 (GMT+4h30)
Estreito de Ormuz

O major Chris «Wedge» Mitchell quase nunca sentia aquilo

O seu pai sentira-o um pouco mais do que ele, como naquela ocasião em que a câmara térmica do seu F/A-18 Hornet falhara e ele acertara em cheio em duas bombas GBU-38 «perigosamente perto» de um pelotão de soldados em Ramadi usando apenas um GPS portátil e um mapa…

O seu avô sentira-o mais do que eles os dois juntos quando, ao longo de cinco dias esgotantes, lançara bombas Snakeye e napalm recorrendo somente a uma mira ótica em passagens sobre o topo das árvores durante o Tet, voando tão baixo que as chamas empolaram a fuselagem do seu A-4 Skyhawk

O seu bisavô foi, de entre eles, quem mais sentira aquilo, ao patrulhar o Pacífico Sul em busca de Zeros japoneses com o VMF-214, o famoso esquadrão Ovelha Negra, liderado pelo beberrão e duro lutador do Corpo de Fuzileiros, por cinco vezes campeão, o major Gregory «Pappy» Boyington…

Este esquivo aquilo, que se colara a quatro gerações de Mitchells, era a sensação de agir por puro instinto. («Na altura em que eu voava com o Pappy, e andávamos em patrulha, não havia tanta tecnologia mágica como agora. Nada de computadores a fazer mira. Nada de piloto automático. Dispúnhamos apenas da nossa perícia, dos nossos comandos e da nossa sorte. Assinalávamos disparos na canópia com um lápis de cera e lá íamos a voar. E quando voávamos com o Pappy, depressa aprendíamos a observar o horizonte. Observávamos com atenção, mas também observávamos o Pappy. Quando ele atirava o cigarro para fora do cockpit e fechava a canópia com força, sabíamos que a situação era séria e que estávamos prestes a lidar com um bando de Zeros.»)

Da última vez que Wedge ouvira este pequeno discurso da boca do seu bisavô, tinha 6 anos. A voz do piloto de olhar cortante apresentara apenas um leve tremor, apesar de ele já ter ultrapassado os 90 anos. Agora, quando o sol límpido se projetou na sua canópia, Wedge conseguia ouvir essas palavras com demasiada nitidez, como se o seu bisavô estivesse no lugar atrás de si. Só que o F-35E Lightning que ele pilotava tinha apenas um lugar.

Era uma das inúmeras queixas que Wedge tinha em relação ao caça que pilotava, tão perto do espaço aéreo iraniano que roçava literalmente a asa de estibordo ao longo da fronteira. A manobra não era particularmente complexa. Na realidade, voar com tal precisão não requeria qualquer talento. O plano de voo fora introduzido no computador de navegação do F-35. Wedge nada tivera de fazer. O avião pilotava-se sozinho. Ele limitava-se a observar os comandos, a admirar a vista fora da canópia e a ouvir o fantasma do seu bisavô a insultá-lo, instalado no assento traseiro inexistente.

Enfiada atrás do encosto da cabeça, estava uma unidade de bateria auxiliar, que emitia um zumbido incrivelmente alto, superior até ao do motor turbofan do F-35. Esta bateria, da dimensão de uma caixa de sapatos, alimentava a mais recente melhoria do conjunto de tecnologias furtivas do caça. Não fora revelado muito a Wedge sobre este acrescento; apenas que tinha uma espécie de disruptor eletromagnético. Antes de ter sido posto a par da sua missão, deparara-se com dois representantes civis da Lockheed a modificar a zona inferior do seu avião e alertara o sargento de armas, sendo que nem este tinha registo de civis no manifesto do George H. W. Bush. Isto resultara numa chamada ao capitão do navio, que viera a esclarecer a situação.

Devido à sensibilidade da tecnologia a ser instalada, a presença desses representantes era altamente secreta. Em última instância, acabara por ser uma forma atabalhoada de Wedge tomar conhecimento da sua missão, mas, à exceção desse contratempo inicial, as restantes partes do plano de voo haviam decorrido tranquilamente.

Talvez até demasiado tranquilamente, tendo sido esse o problema. Wedge sentia-se desesperadamente entediado. Olhou para baixo, para o estreito de Ormuz, aquela fatia turquesa militarizada que separava a península Arábica da Pérsia. Consultou as horas no seu relógio, um cronómetro Breitling com bússola e altímetro incorporado que o seu pai usara em passagens rasas a disparar sobre Marjah 25 anos antes. Confiava mais no relógio do que no seu computador de bordo. Ambos indicaram que estava 43 segundos desviado de um ajuste de rota para leste de 6 graus que o levaria até ao espaço aéreo iraniano. Em cujo momento — desde que a caixinha zumbidora atrás da sua cabeça fizesse o que lhe competia — ele desapareceria por completo.

Seria um belo truque.

Quase parecia uma partida ter-lhe sido confiada uma missão de alta tecnologia. Os seus companheiros do esquadrão sempre disseram, na brincadeira, que ele devia ter nascido numa época passada. Fora assim que tivera direito à sua alcunha, Wedge1: a primeira e mais simples ferramenta do mundo.

Estava na altura da sua curva de 6 graus.

Desligou o piloto automático. Sabia que iria ouvir das boas por voar com manete de aceleração e manche, mas lidaria com isso quando regressasse ao Bush.

Queria sentir aquilo.

Nem que fosse por um segundo. Nem que fosse uma vez na vida.

Iria valer a pena a reprimenda. Assim, com todo aquele ruído atrás da cabeça, entrou no espaço aéreo iraniano.

*

14h58, 12 de março de 2034 (GMT+8)
Mar do sul da China

— Deseja falar comigo, comodoro?

A comandante Jane Morris, capitão do John Paul Jones, parecia cansada, demasiado cansada para pedir desculpa por estar quase um quarto de hora atrasada para a reunião com Hunt, que compreendia a pressão sob a qual Morris se encontrava. Hunt compreendia tal pressão, pois ela própria a sentira em incontáveis ocasiões. Era a pressão de ter um navio às suas ordens. De ser responsável por quase 400 marinheiros. E a privação de sono por a capitão ser chamada constantemente à ponte, enquanto o barco navegava por entre as aparentemente intermináveis frotas pesqueiras do mar do sul da China. Poder-se-ia argumentar que Hunt estaria três vezes mais sob tal pressão, com base no âmbito do seu comando, mas tanto Hunt como Morris sabiam que o comando de uma frota era um comando por delegação, enquanto o comando de um navio era um comando puro. «No final, tu e só tu és responsável por tudo o que o teu navio faz ou deixa de fazer.» Uma lição simples que ambas aprenderam enquanto subtenentes em Anápolis.

Hunt retirou dois charutos do bolso das calças.

— E o que é isso? — perguntou Morris.

— Um pedido de desculpa — esclareceu Hunt. — São cubanos. O meu pai costumava comprá-los aos fuzileiros em Gitmo2. Agora que são legais já não tem tanta graça, mas, ainda assim… são bastante bons.

Morris era uma cristã devota, discretamente evangélica, e Hunt não sabia se ela iria alinhar, pelo que ficou agradada quando Morris aceitou o charuto e se aproximou para o acender.

— Um pedido de desculpa? — questionou Morris. — Porquê? — Mergulhou a ponta do charuto na chama do Zippo de Hunt, que tinha gravado um daqueles matulões mascadores de charutos, de metralhadora na mão, que geralmente se tatuavam no peito e nos ombros dos militares dos Navy Seals, mas, no caso do pai de Hunt, fora embutido no isqueiro que ele passara à filha.

— Imagino que a capitão não tenha ficado muito entusiasmada por eu ter escolhido o John Paul Jones como meu navio-chefe. — Hunt também acendera o charuto. O fumo ia ficando para trás à medida que o navio seguia a sua rota. — Não gostaria que achasse que esta escolha foi uma repreensão — prosseguiu —, sobretudo sendo a única outra mulher no comando. Não quero que julgue que eu tenho intenção de tomar conta de si ao pôr aqui a minha bandeira. — Hunt olhou instintivamente para o topo do mastro, para o seu galhardete de comando de comodoro.

— Posso ser franca?

— Vá lá, Jane. Deixe-se de merdas. Não é da plebe. Isto não é a academia de Bancroft Hall.

— OK, comodoro — respondeu Morris. — Não penso nada disso. Nem sequer me ocorreu tal coisa. Tem aqui três belos barcos com três boas tripulações. Tinha de se instalar em algum lugar. Para ser sincera, a minha tripulação ficou bastante animada por termos a Rainha Leão a bordo.

— Podia ser pior — comentou Hunt. — Se eu fosse um homem, teriam de levar com o Rei Leão. — Morris riu-se. — E se eu fosse o Rei Leão — acrescentou Hunt, com um ar impassível —, isso faria de si o Zazu. — Então, sorriu, aquele sorriso rasgado que enternecia os seus subordinados.

Morris sentiu-se à vontade para prosseguir, dizendo mais do que diria por norma:

— Se fôssemos dois homens, e o Levin e o Hoon fossem capitaneados por duas mulheres, acha que estaríamos a ter esta conversa? — perguntou a Hunt, deixando que o breve silêncio instalado servisse de resposta.

— Tem razão — disse Hunt, dando mais uma passa no seu charuto cubano, enquanto se debruçava na amurada do convés, a fitar o horizonte, perante um mar incrivelmente calmo.

— Como é que está a sua perna? — perguntou Morris. Hunt levou a mão à coxa.

— Pior não pode ficar — respondeu. Não tocou na fissura no fémur, que sofrera num salto de treino que correra mal. Um paraquedas defeituoso pusera fim à sua presença como uma das primeiras mulheres nos Seals e quase lhe custara a vida. Ao invés, tocou com os dedos na carta da junta médica, enfiada no bolso.

Tinham fumado os seus curtos charutos quase até ao fim quando Morris avistou algo no horizonte, a estibordo.

— Está a ver aquele fumo? — perguntou.

Lançaram os charutos borda fora para verem melhor. Era uma pequena embarcação, a avançar lentamente, ou talvez à deriva. Morris foi até à ponte e regressou ao convés de observação com dois pares de binóculos, um para cada uma.

Agora, viam com nitidez uma traineira com uns 20 metros de comprimento, com a amurada baixa ao meio para poder recolher as redes de pesca e a proa elevada, concebida para cortar vagas tempestuosas. Saía fumo da popa da embarcação, onde a ponte de navegação se encontrava posicionada, atrás das redes e das gruas — grandes nuvens densas e escuras, entremeadas por chamas alaranjadas. Via-se uma agitação no convés, com uma tripulação de uma dúzia de homens a tentar conter o fogo.

A flotilha treinara o que fazer na eventualidade de se deparar com uma embarcação em perigo. Primeiro, verificariam se se aproximavam outros barcos para prestar assistência. Caso isso não acontecesse, amplificariam quaisquer sinais de perigo para facilitar o pedido de ajuda. O que não fariam — ou fariam apenas em último recurso — seria desviar-se da sua patrulha de liberdade de navegação para prestarem auxílio.

— Conseguiu perceber qual é a nacionalidade do barco? — perguntou Hunt. Interiormente, começava a passar revista às possíveis consequências das suas opções.

Morris respondeu que não, que não via nenhuma bandeira à proa ou à popa. Então, recuou até à ponte e perguntou ao oficial do convés, um tenente-júnior bem alimentado com uma penugem de cabelo alourado, se fora lançado algum sinal de perigo na última hora.

O oficial do convés consultou o registo da ponte, confirmou com o centro de informação de combate — o sistema nervoso central de comunicações do navio, situado alguns conveses mais abaixo — e concluiu que não fora lançado qualquer sinal de perigo. Antes de Morris conseguir emitir um sinal em prol da traineira, Hunt dirigiu-se à ponte e deteve-a.

— Vamos desviar-nos para prestar auxílio — ordenou Hunt.

— Desviar-nos? — repetiu Morris, irrefletidamente, quando todas as cabeças na ponte rodaram na direção da comodoro, que sabia tão bem quanto a tripulação que demorar-se naquelas águas aumentaria drasticamente as possibilidades de um confronto com um vaso de guerra do Exército de Libertação Popular. A tripulação já estava numa ligeira posição de combate, bem treinada e a postos, sendo o ambiente de sombria expetativa.

 — Temos uma embarcação em dificuldades que navega sem bandeira e que não lançou um sinal de alerta — observou Hunt. — Vamos averiguar mais de perto, Jane. E entremos em modo de combate total. Algo aqui não bate certo.

Secamente, Morris transmitiu as ordens à tripulação, como o refrão de uma canção por ela ensaiada ao longo de anos, mas que até ao momento não tivera a oportunidade de interpretar. Os marinheiros puseram-se de pronto em ação em todos os conveses do navio, equipando-se rapidamente com material de proteção, aplicando máscaras de gás e coletes salva-vidas insufláveis, trancando as inúmeras escotilhas e acionando o modo de combate total, incluindo energizar o modo furtivo, que iria camuflar o radar do navio e as assinaturas infravermelhas. Enquanto o John Paul Jones mudava de rota e se aproximava da traineira em dificuldades, os seus navios irmãos, o Levin e o Hoon, mantinham-se na rota e aceleravam na missão de liberdade de navegação. A distância entre eles e o navio-chefe começou a aumentar. Hunt desapareceu, então, no seu camarote, de onde deveria enviar uma mensagem encriptada para o quartel-general da Sétima Armada, em Yokosuka. Os planos haviam sido alterados.

*

4h47, 12 de março de 2034 (GMT–4)
Washington D. C.

O Dr. Sandeep «Sandy» Chowdhury, vice-conselheiro nacional de segurança, detestava as segundas e quartas segundas-feiras do mês. Eram os dias, segundo o seu acordo de custódia, em que a sua filha de 6 anos, Ashni, regressava para junto da mãe. O que complicava tudo, com frequência, era o facto de a entrega ocorrer só no final das aulas, o que o deixava responsável por quaisquer imprevistos relativos à educação da menina que pudessem surgir, como um dia de neve. Nesta segunda-feira de manhã em particular, um dia de neve em que era suposto ele estar na Sala de Crise da Casa Branca a monitorizar os progressos de um voo de teste particularmente sensível sobre o estreito de Ormuz, teve de pedir à sua mãe, a extraordinária Lakshmi Chowdhury, que se deslocasse ao seu apartamento, em Logan Circle. Ela viera de madrugada para tomar conta de Ashni.

«Não te esqueças da minha única condição», recordara ela ao filho enquanto ele dava o nó na gravata, em volta de um colarinho demasiado largo para o seu pescoço fino. Avançando para a fria madrugada, ele detivera-se à porta. «Não me esqueço», respondera-lhe. «Estarei de volta quando vierem buscar a Ashni.» Teria mesmo de estar: a única condição da mãe dele era não ser atormentada com a visão da ex-mulher de Sandy, Samantha, uma mulher oriunda da costa do Golfo do Texas a quem Lakshmi chamava, orgulhosamente, «provinciana». Não gostava dela desde que pusera a vista em cima da sua compleição magricela e do seu cabelo louro à pajem. Uma triste imitação de Ellen DeGeneres, comentara em tempos, amuada, tendo de recordar ao filho a anfitriã do antigo programa de televisão de quem nunca fora grande fã.

Era de certa forma humilhante ser solteiro e dependente da mãe aos 44 anos. Porém, o golpe no seu ego esmoreceu quando ele retirou da mala o seu crachá de acesso ilimitado à Casa Branca. Mostrou-o ao agente fardado dos serviços secretos, no portão noroeste, enquanto dois corredores matinais, na Pennsylvania Avenue, olhavam na sua direção, tentando ver se se tratava de alguém conhecido. Nos últimos 18 meses, desde que assumira o seu cargo na Ala Oeste, a sua mãe começara por fim a corrigir as pessoas quando assumiam que o seu filho, o Dr. Chowdhury, era médico.

Ela pedira-lhe, por várias vezes, para o visitar no seu gabinete, mas ele mantivera-a à distância. A ideia de um gabinete na Ala Oeste era bem mais glamorosa do que a realidade, uma secretária e uma cadeira encostadas a uma parede de uma cave num local cheio de outros funcionários.

Chowdhury instalou-se à sua secretária, desfrutando do raro sossego da sala vazia. Mais ninguém conseguira passar pelos cinco centímetros de neve que paralisaram a capital. Remexeu numa das suas gavetas, retirou uma barra energética meio esmagada, mas ainda comestível, e levou-a, com uma chávena de café e uma pasta para a Sala de Crise, transpondo as portas à prova de som.

Um assento com um terminal embutido fora deixado à cabeceira da mesa de reuniões. Ligou-o. Na ponta mais afastada da sala, encontrava-se um ecrã LED com um mapa que mostrava a disposição das forças norte-americanas no estrangeiro, destinado a incluir ligações encriptadas de videoconferência com cada um dos maiores comandos de combate — sul, centro, norte e os restantes. Focou-se no comando indo-pacífico — o maior e mais importante, responsável por quase 40 por cento da superfície terrestre, embora grande parte fosse mar.

O responsável pelo briefing era o contra-almirante John T. Hendrickson, um submarinista nuclear com quem Chowdhury tinha uma certa familiaridade, apesar de nunca terem trabalhado juntos diretamente. O almirante estava ladeado por dois oficiais de patente inferior, um homem e uma mulher, ambos significativamente mais altos do que ele. O almirante e Chowdhury haviam sido contemporâneos no programa de doutoramento na Fletcher School of Law and Diplomacy 15 anos antes. Isso não implicava que fossem amigos; na verdade, a permanência de ambos coincidiu apenas por um ano, mas Chowdhury conhecia a fama de Hendrickson. Com pouco mais de um metro e sessenta e cinco, Hendrickson chamava a atenção na sua pequenez. O seu tamanho compacto fazia parecer que nascera para encaixar em submarinos, e a sua mente peculiar e profundamente analítica parecia igualmente adequada a esse ramo específico do serviço naval. Hendrickson terminara o seu doutoramento num tempo recorde de três anos, em contraste com os sete anos de Chowdhury, e, durante esse período, liderou a equipa de softbol de Fletcher numa tripla conquista consecutiva de campeonatos regionais na zona de Boston, ganhando a alcunha de Bunt3.

Chowdhury quase tratou Hendrickson por essa antiga alcunha, mas não o fez. Era um momento de deferência face aos papéis oficiais. O ecrã diante de si estava pejado de destacamentos avançados de unidades militares — um grupo anfíbio a postos no Egeu, um grupo de porta-aviões e escolta no Pacífico Ocidental, dois submarinos nucleares sob o que restava do gelo ártico, os anéis concêntricos de formações blindadas dispersas de oeste a leste na Europa Central, que ali permaneciam há quase cem anos para manterem ao largo uma ofensiva russa. Hendrickson abordou de imediato dois acontecimentos críticos em curso: um há muito planeado, o outro «em desenvolvimento», como o designou.

O acontecimento planeado tratava-se de um teste de um novo disruptor eletromagnético na tecnologia furtiva do F-35. O teste estava em curso e iria decorrer ao longo das próximas horas. O caça fora lançado de uma esquadra naval do George H. W. Bush, no Golfo Pérsico. Hendrickson consultou o relógio.

— O piloto está oculto no espaço aéreo iraniano há quatro minutos. — Prosseguiu com uma longa descrição, altamente secreta e vertiginosamente expositiva, sobre a natureza da disrupção eletromagnética em curso naquele preciso momento, aplacando as defesas aéreas iranianas.

Ao fim das primeiras frases, Chowdhury já se perdera. Nunca fora dado a pormenores, sobretudo quando esses pormenores eram de natureza técnica. Fora por isso que encontrara o seu rumo na política depois de se licenciar. Era igualmente por isso que Hendrickson — por muito brilhante que fosse — trabalhava, tecnicamente, para Chowdhury. Tendo sido nomeado politicamente para a equipa do Conselho de Segurança Nacional, Chowdhury era seu superior, embora esta fosse uma questão que poucos militares na Casa Branca reconhecessem publicamente perante os seus chefes civis. A genialidade de Chowdhury, apesar de não ser a nível técnico, residia numa compreensão intuitiva de como se safar melhor de qualquer má situação. O seu arranque político dera-se ao trabalhar na presidência de um único mandato de Pence. Ninguém poderia dizer que não era um sobrevivente.

— O segundo acontecimento está igualmente em curso — prosseguiu Hendrickson. — O grupo de comando do John Paul Jones, um grupo de ação de três navios de superfície, desviou o navio-chefe da sua patrulha de liberdade de navegação perto das ilhas Spratly para investigar uma embarcação em apuros.

— Que tipo de embarcação? — indagou Chowdhury. Estava recostado na sua cadeira de executivo em pele à cabeceira da mesa de reuniões, a cadeira em que se sentava a presidente quando usava a sala. Chowdhury mastigava o que restava da sua barra energética de uma forma muito pouco presidencial.

— Não sabemos — respondeu Hendrickson. — Aguardamos uma atualização por parte da Sétima Armada.

Apesar de Chowdhury não conseguir acompanhar as especificidades da disrupção furtiva do F-35, sabia que ter um contratorpedeiro Arleigh Burke de mísseis telecomandados de dois mil milhões de dólares a fazer de rebocador de resgate de um barco misterioso em água reclamadas pelos chineses tinha potencial para minar a sua manhã. E dividir o grupo de ação de superfície não parecia a melhor das ideias.

 — Isso não me soa nada bem, Bunt. Quem é o comandante no local?

Hendrickson lançou um olhar fulminante a Chowdhury, que reconheceu a ligeira provocação ao recorrer à sua velha alcunha. Os dois elementos juniores do pessoal entreolharam-se com apreensão, que Hendrickson optou por ignorar.

— Conheço a comodoro — disse ele. — É a capitão Sarah Hunt. Extremamente competente. A melhor da turma em tudo.

— E então? — questionou Chowdhury.

— Então, será melhor não nos pormos já a censurá-la.

 *

15h28, 12 de março de 2034 (GMT+8)
Mar do sul da China

Assim que recebeu ordem para prestar auxílio, a tripulação do John Paul Jones agiu rapidamente. Foram lançadas duas lanchas semirrígidas pela popa, que se posicionaram ao largo da traineira em chamas. O encorpado tenente-júnior fora posto ao comando desta flotilha de barcos insufláveis, enquanto Hunt e Morris observavam da ponte, ouvindo as atualizações que ele enviava através do seu rádio portátil, com toda a histeria de barítono ao chamar o seu pessoal para a linha de combate. Ambas as oficiais relevaram a falta de calma do seu novato. Ele estava a apagar um fogo com duas bombas de incêndio e duas mangueiras em águas hostis.

2034
créditos: Topseller

Livro: “2034”

Autor: Elliot Ackerman e James Stavridis

Editora: Topseller

Data de lançamento: 25 de outubro

Preço: 16,91 €

Hostis, mas absolutamente calmas, lisas como um painel de vidro, enquanto o drama do fogo e da traineira se desenrolava a uma centena de metros diante da ponte. Hunt deu por si a olhar melancolicamente para a água, pensando, uma vez mais, se seria a última vez que veria aquele mar, ou pelo menos vê-lo ao comando de um navio de guerra. Após um momento de reflexão, disse ao oficial do convés para enviar um sinal aos outros dois contratorpedeiros para suspenderem a patrulha de liberdade de navegação e se desviarem para o local. Seria melhor ter um pouco mais de poder de fogo ali perto.

O Levin e o Hoon inverteram a rota e aumentaram a velocidade, e, em poucos minutos, assumiram posição em redor do John Paul Jones, navegando numa órbita protetora, enquanto o navio-chefe prosseguia a sua aproximação à traineira, em marcha lenta. As últimas chamas foram extintas com celeridade e o jovem tenente-júnior anunciou-o triunfalmente via rádio. Hunt e Morris congratularam-no de pronto, dando-lhe instruções para que subisse a bordo da traineira para averiguar os estragos, ordem que ele acatou. Ou pelo menos tentou acatar.

A tripulação da traineira recebeu o primeiro grupo de abordagem na amurada com gritos irados e desesperados. Um deles lançou inclusivamente um gancho à cabeça de um contramestre. Ao observar aquela escaramuça da ponte do John Paul Jones, Hunt tentou perceber o que levaria a tripulação da traineira incendiada a resistir à ajuda de forma tão encarniçada. Entre transmissões de rádio, em que encorajou um apaziguamento geral, conseguiu ouvir a tripulação da traineira, que falava o que lhe parecia ser mandarim.

— Comodoro, sugiro que os deixemos — acabou por dizer Morris. — Parece que não desejam mais ajuda.

— Isso estou eu a ver, Jane — replicou Hunt. — A questão é porquê.

Via o grupo de abordagem e a tripulação da traineira a gesticular energicamente uns para os outros. Porquê a resistência? Hunt compreendeu o ponto de vista de Morris — a cada minuto que passava, o seu comando tornava-se cada vez mais vulnerável a ser intercetado por uma patrulha naval do Exército de Libertação Popular, o que poderia pôr em causa a sua missão. Contudo, isto não era igualmente a sua missão? Manter as águas seguras e navegáveis? Dez anos antes, ou talvez até cinco, o nível de ameaça teria sido inferior. Na altura, a maioria dos tratados da Guerra Fria permaneciam intactos. No entanto, esses velhos sistemas tinham sido vítimas de erosão. Fitando a traineira, com a sua tripulação desafiadora, Hunt sentiu que aquela pequena embarcação pesqueira representava uma ameaça.

— Comandante Morris — disse, num tom sério —, posicione o seu navio ao lado da traineira. Se não conseguimos fazer a abordagem com os semirrígidos, iremos fazê-la a partir daqui.

Morris contestou de pronto a ordem, expondo uma lista previsível de preocupações: primeiro, o tempo que demorariam iria expô-los ainda mais a um potencial confronto com uma patrulha naval hostil; segundo, posicionar o John Paul Jones ao lado da traineira sujeitaria o próprio navio a um risco indevido.

— Não sabemos o que iremos encontrar a bordo — observou Morris.

Hunt ouviu-a pacientemente. Sentia a tripulação de Morris a desempenhar as suas tarefas na ponte, tentando ignorar as duas oficiais seniores a discutirem. Hunt repetiu a ordem. Morris obedeceu.

Conforme o John Paul Jones se posicionou ao lado da traineira, Hunt conseguiu ver o seu nome, Wén Rui, e o seu porto de abrigo, Quanzhou, um embarcadouro de nível provincial paralelo ao estreito de Taiwan. A tripulação do navio lançou ganchos sobre a amurada da traineira, permitindo-lhes afixar cabos de reboque em aço à sua lateral. Amarradas, as duas embarcações cortaram as águas em tandem, como uma mota com um sidecar rebelde. O perigo desta manobra era evidente para todos os presentes na ponte. Dedicavam-se às suas tarefas com um ar abatido de desaprovação silenciosa, achando que a comodoro arriscava desnecessariamente o navio por causa de um bando de pescadores chineses agitados. Ninguém deu voz ao desejo coletivo de que a sua comodoro abandonasse o seu palpite e regressasse a águas mais seguras.

Sentindo o descontentamento geral, Hunt anunciou que ia até ao convés.

Giraram cabeças.

— Para onde, comodoro? — questionou Morris, num tom de protesto, aparentemente indignada por a sua comandante a deixar numa posição tão precária.

— Para o Wén Rui — respondeu ela. — Quero ver com os meus próprios olhos.

E foi precisamente o que fez, surpreendendo o mestre de armas, que lhe entregou uma pistola num coldre, que ela afivelou, enquanto gritava bem alto por cima da lateral, ignorando a perna a latejar. Quando desceu ao convés da traineira, percebeu que o grupo de abordagem já detivera meia dúzia de tripulantes do Wén Rui. Estavam sentados de pernas cruzadas no meio da embarcação, com um guarda armado atrás deles, de pulsos presos atrás das costas com algemas de plástico, as boinas de pesca puxadas para baixo e as roupas oleosas e manchadas. Quando Hunt pisou o convés, um dos detidos, de rosto barbeado, o que era estranho, e cuja boina não estava puxada para baixo, mas orgulhosamente colocada na cabeça, levantou-se. O movimento não foi desafiador; pelo contrário, o homem tinha um ar astuto. Hunt deduziu que se tratasse do capitão do Wén Rui. O suboficial-chefe que liderava o grupo de abordagem explicou que já tinham efetuado buscas em quase toda a traineira, mas que uma escotilha de aço estanque resguardava um dos compartimentos da popa, e a tripulação recusara-se a destrancá-la, pelo que ele ordenara que trouxessem do depósito do navio um maçarico. Dentro de uns 15 minutos teriam aberto tudo.

O homem barbeado, o capitão da traineira, falou, num inglês hesitante, com um forte sotaque.

— É comanda aqui?

— Fala inglês? — perguntou Hunt.

— É comanda aqui? — repetiu ele, como se não soubesse ao certo o significado destas palavras e as tivesse simplesmente decorado há muito, como plano de contingência.

— Sou a capitão Sarah Hunt, da Marinha dos Estados Unidos — respondeu ela, assentando a palma da mão no peito. — Sim, este é o meu comando.

Ele assentiu com a cabeça e os seus ombros descaíram, como se se tivesse libertado de um grande fardo.

— Rendo meu comando a si — declarou, virando costas a Hunt, um gesto que, à primeira vista, pareceu ser um sinal de desrespeito, mas que ela depressa reconheceu como algo completamente diferente. Na palma aberta, algemada atrás das costas pelos pulsos, encontrava-se uma chave. Ele guardara-a todo aquele tempo e estava agora, com toda a reverência possível, a entregá-la a Hunt.

Hunt retirou a chave da palma da mão dele, notoriamente macia; não a palma calosa de um pescador. Dirigiu-se ao compartimento na popa do Wén Rui, destrancou a fechadura e abriu a escotilha.

— O que temos aí, comodoro? — perguntou o mestre de armas, posicionando-se logo atrás dela.

— Céus — disse Hunt, fitando prateleiras de pequenos discos rígidos a piscarem e ecrãs plasma. — Não faço a mínima ideia.

13h47, 12 de março de 2034 (GMT+4h30)
Estreito de Ormuz

Quando Wedge mudou para o controlo manual, os representantes da Lockheed a bordo do George H. W. Bush comunicaram de imediato com ele, via rádio, querendo averiguar se estava tudo bem. Ao início, não lhes respondera. Ainda conseguiam seguir o seu percurso e verificar que estava a respeitar o plano de voo, que, nesse momento, o situava a cerca de 50 milhas marítimas a oeste de Bandar Abbas, a principal base naval regional iraniana. A precisão do seu voo provava — pelo menos a si — que o pilotava com tanta exatidão quanto qualquer computador.

Então, o seu F-35 foi atingido por uma turbulência atmosférica — uma das más. Wedge sentiu-a a fazer estremecer os comandos, através dos pés, que pisavam os pedais do leme, na manche, e a passar pelos ombros. A turbulência ameaçou lançá-lo para fora de rota, o que poderia tê-lo desviado para as camadas tecnicamente mais desenvolvidas das defesas aéreas iranianas, aquelas que se expandiam desde Teerão, onde as contramedidas furtivas do F-35 se poderiam revelar inadequadas.

Era agora.

Estava a sentir aquilo, pensou.

Ou pelo menos o mais próximo de sentir aquilo que alguma vez estivera. A sua manipulação da manete de aceleração, manche e pedal revelou-se rápida, instintiva, fruto de toda a sua carreira no cockpit, e de quatro gerações da cepa da família Mitchell.

Fez deslizar a aeronave no limite da turbulência, percorrendo 3,6 milhas marítimas a uma velocidade de 736 nós, com um desvio de 28 graus em relação à sua direção de voo. No total, decorreram menos de 4 segundos, mas fora um momento de graça oculta, que somente ele e talvez o seu bisavô, a observar do Além, poderiam apreciar.

Então, tão depressa como surgiu, a turbulência dissipou-se, permitindo que o voo de Wedge retomasse a estabilidade. De novo, os representantes da Lockheed a bordo do George H. W. Bush comunicaram via rádio, questionando porque é que ele desativara o computador de navegação, insistindo para que voltasse a ligá-lo.

Recebido — respondeu Wedge, quando, por fim, apareceu na ligação de comunicação encriptada. — A ativar a anulação de navegação.

Inclinou-se para a frente, premiu um único e inócuo botão e sentiu um ligeiro solavanco, como um comboio a ser novamente posicionado nos carris, quando o seu F-35 regressou ao modo de pilotagem automática.

Sentiu-se tomado por uma forte vontade de fumar um cigarro no cockpit, tal como Pappy Boyington fazia, mas, por hoje, já forçara demasiado a sua sorte. Regressar ao Bush com um cockpit a tresandar a um Marlboro comemorativo seria provavelmente mais do que os representantes da Lockheed, ou os seus superiores, estariam dispostos a tolerar. O maço estava no bolso esquerdo do seu fato de voo, mas iria aguardar e fumaria um cigarro na popa após comunicar o resultado da sua missão. Consultando o relógio, estimou que chegaria a tempo de jantar na cantina dos pilotos, na parte dianteira do porta-aviões. Esperava que houvesse os cheeseburgers triplos com ovo estrelado que ele adorava.

Enquanto pensava no jantar — e no cigarro —, o F-35 desviou-se da rota, rumando a norte, na direção do território iraniano. A mudança de direção foi tão subtil que Wedge só deu por ela quando começou a receber uma série de chamadas do Bush, alarmadas.

— Ligue o computador de navegação. Wedge deu toques no ecrã.

— O computador de navegação está ligado! Esperem, vou reiniciá-lo. — Antes de conseguir iniciar a longa sequência para o fazer, percebeu que o computador não estava a responder. — A aviónica não reage. Vou mudar para comando manual.

Puxou a manche. Pisou os pedais.

A manete de aceleração já não controlava o motor.

O F-35 começava a perder altitude, descendo aos poucos. Num estado de pura frustração que roçava a raiva, Wedge puxou os comandos, como se os estivesse a estrangular e a tentar assassinar o avião. Ouvia as conversas no seu capacete, as ordens impotentes vindas do George H. W. Bush, que, mais do que ordens, eram súplicas, pedidos desesperados para que Wedge descobrisse qual era o problema.

Porém, ele não conseguia.

Wedge não sabia quem, ou o quê, estava a pilotar o seu avião.

7h23, 12 de março de 2034 (GMT–4)
Washington D. C.

Sandy Chowdhury terminara a sua barra energética, já bem avançado na sua segunda chávena de café, e não paravam de chegar atualizações. A primeira fora a notícia de que o John Paul Jones encontrara uma espécie de conjunto de tecnologia avançada na traineira de pesca que abordaram e amarraram a seu lado. A comodoro, uma tal de Sarah Hunt, em cujo julgamento Hendrickson tanto confiava, garantira que, em menos de uma hora, conseguiria transportar os computadores para bordo de um dos três navios da sua flotilha para uma análise forense mais meticulosa. Enquanto Chowdhury ponderava tal opção com Hendrickson, surgira a segunda atualização de informação, vinda do quartel-general da Sétima Armada, o comando indo-pacífico «INFO». Um contingente de vasos de guerra do Exército de Libertação Popular, pelo menos seis, incluindo o porta-aviões nuclear Zheng He, mudara de rota, dirigindo-se para o John Paul Jones.

A terceira atualização fora a mais desconcertante. Os comandos do F-35, aquele cujo voo levara Chowdhury à Sala de Crise nessa madrugada nevosa, estavam bloqueados. O piloto aplicava todos os planos de contingência, mas não estava a conseguir controlar o avião.

— Se não é o piloto que o está a controlar, e não o estamos a pilotar remotamente do porta-aviões, então quem é que o está a fazer? — perguntou Chowdhury a Hendrickson, num tom indignado.

Uma funcionária júnior da Casa Branca interrompeu-os.

— Dr. Chowdhury, o adido militar chinês gostaria de falar consigo — informou ela.

Chowdhury lançou um olhar incrédulo a Hendrickson, como se desejasse que o almirante de uma estrela lhe explicasse que toda aquela situação fazia parte de uma brincadeira elaborada e retorcida. Porém, não lhe foi dado tal conforto.

— OK, passe a chamada respondeu Chowdhury, levando a mão ao telefone.

— Não, Dr. Chowdhury. Ele está aqui. O almirante Lin Bao está aqui — explicou a jovem.

— Aqui? — disse Hendrickson. — Na Casa Branca? Está a brincar comigo.

Ela abanou a cabeça.

— Não estou a brincar consigo. Ele está no portão noroeste.

Chowdhury e Hendrickson saíram da Sala de Crise, percorreram apressadamente o corredor até à janela mais próxima e espreitaram pelos estores. Ali estava o almirante Lin Bao, resplandecente no seu uniforme azul com dragonas douradas, a aguardar pacientemente, com uma escolta de três militares e um civil junto ao portão, entre a crescente multidão de turistas. Tratava-se de uma minidelegação. Chowdhury não compreendia qual seria a jogada deles. Os chineses nunca eram assim impulsivos, pensou ele.

— Céus! — murmurou.

— Não podemos deixá-lo entrar sem mais nem menos — disse Hendrickson.

Um grupo de supervisores dos serviços secretos reuniu-se em volta deles para explicar que a mera aprovação à entrada de um oficial chinês na Casa Branca não poderia ser concretizada em menos de quatro horas, a não ser que tivessem uma aprovação da presidente, do chefe do Estado-Maior ou do conselheiro de Segurança Nacional. Mas os três encontravam-se no estrangeiro. A televisão estava sintonizada nas últimas notícias da conferência do G7, em Munique, o que deixara a Casa Branca sem presidente e sem grande parte da sua equipa de Segurança Nacional. De momento, Chowdhury era o funcionário de maior hierarquia a nível do Conselho de Segurança Nacional na Casa Branca.

— Merda — disse. — Vou lá fora.

— Não pode ir lá fora — replicou Hendrickson.

— Mas ele não pode entrar!

Hendrickson não conseguiu contestar aquela lógica. Chowdhury avançou para a porta. Não pegou no casaco, embora estivesse um frio de rachar. Esperou que, independentemente da mensagem que o adido militar quisesse transmitir, não demorasse muito tempo. Ao sair, o seu telemóvel pessoal apanhou rede e vibrou com meia zia de mensagens de texto, todas da sua mãe. Sempre que ela tomava conta da filha dele, inundava-o com questões domésticas mundanas para que ele não se esquecesse de que ela lhe estava a fazer um favor. Céus, pensou. Aposto que não encontra outra vez as toalhitas de bebé. Contudo, Chowdhury não tinha tempo para tratar das especificidades dessas mensagens enquanto percorria o Relvado Sul.

Apesar do frio, Lin Bao também não envergava casaco, apenas o seu uniforme, com uma parede de medalhas, as dragonas douradas furiosamente bordadas e a boina de oficial da Marinha aconchegada sob o braço. Comia descontraidamente M&M’s, retirando um de cada vez. Chowdhury transpôs o portão de aço negro, dirigindo-se a ele.

— Não consigo resistir aos vossos M&M’s — observou o almirante, alheadamente. Foram uma invenção militar. Sabia? É verdade. Começaram por ser produzidos em massa para os soldados americanos na Segunda Guerra Mundial, especificamente no Pacífico Sul, onde era necessário chocolate que não derretesse. É o que vocês dizem, não é? «Derrete-se na boca e não nas mãos.» Lin Bao lambeu as pontas dos dedos, onde o corante lhe manchara a pele, num tom pastel.

— A que se deve este prazer, almirante? — disse Chowdhury.

Lin Bao espreitou para o interior do pacote de M&M’s, como se soubesse especificamente que cor queria provar a seguir, mas sem a encontrar. Falando para o pacote, respondeu:

— Vocês têm algo nosso. Um pequeno barco. Muito pequeno. O Wén Rui. Gostaríamos que o devolvessem. — Então, retirou um M&M azul, fazendo uma careta, como se não fosse a cor que procurava, e levou-o à boca com um ar desapontado.

— Não devíamos estar a falar disso aqui — disse Chowdhury.

— Quer convidar-me a entrar? — perguntou o almirante, apontando com a cabeça para a Ala Oeste, ciente da impossibilidade de acederem a tal pedido. Então, acrescentou: — Senão, acho que a única forma de conversarmos é aqui fora. — Chowdhury estava a gelar. Enfiou as mãos sob os braços. — Acredite no que lhe digo — prosseguiu Bin Lao. — É do vosso interesse que nos devolvam o Wén Rui.

Apesar de Chowdhury trabalhar para o primeiro presidente americano da história moderna sem afiliação partidária, a posição da administração no que tocava à liberdade de navegação e ao mar do sul da China mantinha-se consistente com as várias administrações republicanas e democratas precedentes. Chowdhury repetiu essas posições políticas bem estabelecidas a Lin Bao, que se mostrava impaciente.

Não tem tempo para isso — disse ele a Chowdhury, ainda a depenicar o pacote de M&M’s, cada vez mais vazio.

— Isso é uma ameaça?

— De modo nenhum — respondeu Lin Bao, abanando tristemente a cabeça e simulando desapontamento por Chowdhury ter feito tal sugestão. — Julgo que a sua mãe lhe tem estado a enviar mensagens, não é? Não tem de responder? Veja o seu telemóvel. Ela quer levar a sua filha Ashni à rua, para aproveitar a neve, mas não encontra o casaco da menina.

Chowdhury retirou o telefone do bolso das calças. Viu as mensagens de texto.

Eram tal como Lin Bao as descrevera.

— Temos navios nossos a caminho, para intercetar o John Paul Jones, o Carl Levin e o Chung-Hoon — prosseguiu Lin Bao, referindo o nome de cada um dos contratorpedeiros para provar que estava bem informado, tal como estava bem informado em relação a todas as mensagens de texto enviadas para o telemóvel de Chowdhury. — Uma escalada da vossa parte seria um erro.

— O que nos dão em troca do Wén Rui?

— Devolvemos o vosso F-35.

— O nosso F-35? — repetiu Chowdhury. — Vocês não têm nenhum dos nossos F-35.

— Talvez deva regressar à Sala de Crise para confirmar — disse Lin Bao, afavelmente. Deitou na palma da mão o último M&M’s do pacote. Era amarelo. — Também temos M&M’s na China. Mas os de cá sabem melhor. Tem algo que ver com o revestimento. Na China, ainda não acertámos bem na fórmula. — Enfiou o chocolate na boca, fechando fugazmente os olhos para o saborear. Quando os reabriu, fitou de novo Chowdhury. — Tem de nos devolver o Wén Rui.

— Eu não tenho de fazer nada — retorquiu Chowdhury.

Lin Bao assentiu com a cabeça, desiludido.

— Muito bem — disse. — Eu compreendo.

Amarrotou o pacote dos chocolates e atirou-o para o chão.

— Apanhe isso, por favor, almirante — pediu Chowdhury. Lin Bao olhou para o pedaço de lixo.

— E se não o fizer?

Enquanto Chowdhury tentava arranjar uma resposta, o almirante virou-se e foi-se embora, abrindo caminho por entre o tráfego do final da manhã.


1 «Wedge» significa «cunha». [N. T.]

2 Designação abreviada de Guantánamo, província cubana onde os Estados Unidos contam com uma base naval e uma prisão. [N. T.]

3 Técnica de batida de softbol. [N. T.]