Parte Um

A rapariga está proibida de fazer qualquer som, pelo que o pássaro amarelo canta. Ele canta o que quer que seja que a rapariga componha na sua mente: trinados agudos de flautim; rugidos graves de contrafagote. O pássaro chilreia todas as partes musicais, exceto as percussões, porque os coelhos da quinta obsequiosamente batem com as patas traseiras como bombos, como tarolas. As faixas para violino e violoncelo são as mais elaboradamente compostas. Ricas e de uma maciez líquida, exceto quando o medo torna as notas ásperas e secas.

A música ajuda as flores a desabrochar. Quando as margaridas se tornam abundantes, o pássaro tece uma grinalda para a rapariga usar na cabeça como uma princesa — embora ninguém consiga ver. Ela tem de se esconder de toda a gente da aldeia: soldados, rapazes da quinta, assim como dos vizinhos. A senhora com olhos semicerrados e sapatos bojudos acabou de arrastar um rapaz pela rua fora e regressou, arrogante e de costas muito direitas, aconchegando um saco de açúcar como se fosse um bebé.

Quando passavam gigantes com estrondo, o pássaro enroscava-se na viga, silencioso e quieto. Tratar do jardim teria de esperar. A rapariga, com a música enclausurada dentro de si, enfia-se debaixo do feno. Imagina a mãe a sussurrar a história noturna habitual ou a cantar num sussurro a sua música de embalar preferida.

Agarra a sua manta com força e tenta adormecer, tentando em vão sentir o aroma esmorecido do lar.

Capítulo Um

Polónia - Verão de 1941

Um calor ameaçador impregna o espaço exíguo do sótão do celeiro, que não tinha mais de três passos por quatro. As tábuas são rudes e lascadas e as vigas apresentam ângulos abruptos, levando a que a inclinação seja demasiado baixa para que Róża possa manter-se de em algum ponto que não o centro. Teias sedosas cobrem os cantos e magros feixes de luz solar sangram pelas fendas. De resto, está às escuras.

Ajoelhando-se, Róża amassa um tapete de feno para Shira se deitar. Posiciona-a junto à parede em frente à escada, para depois a cobrir com mais feno. Róża arranja um lugar para si em frente à sua filha, em ângulo para poder manter-se de olho na porta. Ainda sente o coração a martelar-lhe o peito.

Livro: A Melodia do Pássaro Amarelo

Editora: Saída de Emergência

Data de lançamento: 2 de junho

Preço: 15,93€

Nem uma hora antes, a mulher de Henryk, Krystyna, entrou de rompante para encurralar uma galinha e deu com elas agachadas atrás de um carrinho de feno.

Róża engoliu em seco, assustada, e cingiu Shira com força. O olhar de Krystyna apontou para a parede com as ferramentas penduradas — espátulas e pás, uma forquilha — e, a seguir, ela saiu lentamente. Pouco depois, apareceu Henryk. A sua expressão era de profunda preocupação, mas em cada mão segurava uma batata.

Nós também temos os nossos rapazes. Ainda vamos ser todos mortos.

O chão coberto de poeira estremeceu sob os pés de Róża. Havia prémios para as denúncias: um saco de açúcar por judeu. Ela pensou rapidamente no que poderia ter para oferecer como moeda de troca: fermento e sal da padaria. Moedas. Três dos rubis da avó escondidos na bainha de um casaco. Se necessário fosse, a sua aliança de casamento.

Será que os avaliara mal? Henryk frequentava a padaria deles antes da guerra. Sempre fora amistoso, talvez até um pouco de namoriscar, quando Róża trabalhava ao balcão. Houve alturas em que ele levara o seu filho Piotr e cada um deles comia uma bolacha cheia de compota numa única dentada, sorrindo e sacudindo o açúcar em que se colava aos lábios. Eram gratos à família dela; o tio dela, Jakob, um médico, tratara Piotr quando ele apanhou rubéola. Róża acreditava que eles ajudariam, pelo menos de início.

— Imploro-te, apenas uma ou duas noites.

— Não mais do que isso.

Henryk retirou equipamento do sótão e juntou feno com uma forquilha. Róża seguiu Shira de perto enquanto esta trepava pelo escadote.

Agora, estão ali, quietas e caladas. Róża pergunta a si mesma, Para onde iremos a seguir? Não de volta a Gracja. Não, depois do que aconteceu a Natan, abatido a tiro ao fim de uma semana de trabalho árduo, e aos pais dela, levados à força do seu apartamento para serem enfiados em camiões de gado. E não para o bosque, para onde fora o seu primo Leyb, sem garantia de comida ou abrigo. Chegado o inverno, com as temperaturas gélidas da floresta, Shira não sobreviveria.

Então, para onde? Róża vasculha a sua mente, mas sem encontrar resposta. O plano de contingência para esta noite é o depósito dos vegetais de Henryk, ao lado da casa da quinta, caso se torne necessário abandonar o celeiro.

As tábuas do sótão são duras nas costas e rabo de Róża e uma lasca de feno crava-se no seu pescoço, mas mantém-se quieta até Shira adormecer; depois, muda de posição, com muito cuidado, num movimento vagaroso e silencioso.


À tarde, Henryk põe um balde de água e dois trapos lavados do lado de dentro da porta do celeiro. Róża e Shira descem silenciosamente o escadote. Depois de beberem o conteúdo, Róża mergulha os braços na água, com a sua frescura a relaxar-lhe todo o seu ser.

Primeiro, lava Shira, retirando-lhe a terra e a imundície das bochechas e pescoço, com movimentos lentos e suaves do pano. Com paciência e prazer, esfrega as mãos de Shira em concha, com força, como se segurassem algo, um hábito iniciado depois de o seu pai não ter regressado —, movendo o pano rapidamente entre cada dedo de Shira, para depois o passar húmido pelos pulsos e antebraços. Manda Shira ir dar uma volta ao sótão e começa a tratar de si, desabotoando a blusa para chegar ao peito, às costas e ao espaço por baixo dos braços. A água escorre e faz-lhe cócegas nos flancos; Róża apanha-a com o trapo e transporta-a para cima ao longo do corpo, com o cuidado de esfregar o seu odor. Esfrega-se até sentir um leve movimento no exterior do celeiro. Henryk? Ele deixou-se ali ficar depois de entregar o balde, pensa ela, e está agora a observá-la por uma fenda na parede de baixo do celeiro. A respiração dela torna-se ténue. Olha para as suas mamas expostas, para a sua barriga lisa, para as suas ancas salientes. O seu primeiro instinto foi virar-se, mas manteve-se imóvel. Esta noite, elas seriam alimentadas aqui. Abrigadas. Volta a embeber o trapo e prossegue, com a sensação de Henryk estar a fitá-la, a observá-la.


Mais tarde nesse dia, Róża espreita por uma abertura entre as tábuas do tão e Krystyna dentro da casa da quinta, agitada, a discutir com Henryk. Abana a cabeça com força, levando o bebé, Łukasz, a deslizar de lado pela anca. Róża baixa-se no chão do sótão.

Henryk entra no celeiro e começa a juntar grandes pilhas de feno com a forquilha, tapando a vista para os campos vizinhos e para a estrada.

A casa da quinta, branca com portadas entalhadas e pintada num azul-vivo, é mais pequena do que o celeiro e não tapa por completo a vista para a estrada, em especial nas curvas desta. A taberna deve ser algures perto porque Róża consegue ouvir a algazarra da clientela.

Quando cai a noite, Róża mostra a Shira como embrulhar o dedo no canto limpo do trapo para fazer uma escova de dentes e como se aliviar num balde cheio de palha que Henryk mais tarde irá misturar com o feno e os desperdícios dos animais.

Henryk traz um balde diferente com a comida. Couve e nabos cozidos.

— A Krystyna manda-vos isto. Só por esta noite. Ela está muito assustada.

Róża assente com a cabeça, grata.

De volta para debaixo do feno, Róża crava as bases das mãos nos olhos. Florescem manchas amarelas e pretas, espalhando-se como tinta vertida. Espantam imagens de Natan e dos pais dela.

Acaba por abrir os olhos para dar com Shira a olhar, enfeitiçada, para dois coelhos que saltam de lado sobre um fardo de feno e desatam a correr. Se Shira sente a falta dos seus rituais de deitar em casa — um banho de banheira, leite morno com noz-moscada e mel, carícias dos avós —, ela não o demonstra. Na sua perna, os seus dedos tamborilam o ritmo de alguma melodia rebuscada que apenas ela ouve na sua cabeça.

Krystyna aparece uma hora mais tarde, com uma postura tensa e rígida, e os lábios cingidos. Mas trouxe mais água e um pouco de pão. Róża nem pode agradecer a Krystyna nem repreender Shira antes de a rapariga baixar o escadote do sótão e, com uma vénia teatral, oferecer a Krystyna um pequeno retângulo de feno entrançado que ela fez. A expressão de Krystyna amolece. O seu olhar torna-se mais amável. Shira corre de novo para o sótão para os braços de Róża.

A Melodia do Pássaro Amarelo
créditos: Saída de Emergência

Capítulo Dois

Shira treina tornar-se invisível. Curva os ombros, enfia o estômago para dentro, rebola como um gato. A mãe também treina, enterrando-se bem fundo no feno e incitando Shira, com um aceno de mão, a acomodar-se no seu colo e ficar quieta. Ou, levando um dedo aos lábios, dá-lhe a indicação para que se mantenha em silêncio.

As tábuas do soalho são ásperas e o feno pica e arranha. Shira não compreende porque é que não podem ir para casa porque é que tiveram sequer de sair de casa —, onde, juntos, o pai e a mãe dela a enfiavam na cama que parecia um ninho macio e fofo e onde a música e o aroma dos cozinhados da avó vagueavam no ar.

Lá, Shira podia percorrer o corredor e juntar-se a eles, vendo-os a abrir os estojos dos instrumentos. Aconchegada no colo do avô, a inspirar os cheiros da oficina dele a serradura e verniz, saltitava e tamborilava ao sabor da ondulação das notas do violoncelo da mãe, do violino do tata.

No início, enquanto afinavam e aqueciam, tudo parecia dessincronizado e triste. Mas, depois, lançavam-se às suas canções e a música transportava-os a todos, até Shira já não se sentir encostada ao avô, mas sim num lugar completamente diferente de beleza pura e compartilhada. Melodias vibrantes e comoventes. Ritmos intensos e vibrantes. Não interessava que tudo começasse a soar bem alto não havia um único vizinho no prédio que não se deleitasse com a música deles. Se quisesse, Shira até podia cantarolar. Mas, aqui, a sua mãe era insistente: elas tinham de se manter caladas, de se esconder. Por isso, encolhe-se como uma mola e mantém-se imóvel.

Shira esforça-se por abafar os sons de todos os seus movimentos as suas passadas, a sua respiração. O jorro esperado do seu xixi, ela aprendeu a distribuí-lo num pingar quase silencioso. E sabe como se disfarçar e, assim, apagar quaisquer vestígios da sua existência — uma série de momentos de desaparecimento — antes de se refugiar atrás das pilhas de feno.

No entanto, mesmo quando Shira se esforça por não gerar ruído, o seu corpo desafia-a com um espirro súbito, um engolir em seco involuntário, um sonoro estalido da anca por se manter tanto tempo imóvel. Surge uma cãibra num músculo da barriga da perna. Uma comichão a precisar de ser coçada. Uma pressão nos intestinos. O mais meticulosamente planeado movimento leva o feno a rumorejar ou o soalho a gemer. Shira olha apologeticamente para a mãe. Preocupada, a mãe devolve-lhe o olhar.

Shira ensaia o plano para se retirar, caso seja necessário, do celeiro para o depósito dos vegetais — uma ziemianka, com o ninho de cegonhas por cima, anexa à casa da quinta — onde deve aguardar pela mãe no chão atrás dos barris, sem se mexer (por muito frio ou húmido que possa estar), o tempo que for necessário: pescoço direito, e não torcido, ou vai ficar com dores. Também ensaia o que a mãe lhe disse vezes sem conta sobre os seus sons, como não podem soar mais alto do que um sussurro, a não ser quando ela diga que é seguro, muito tarde à noite, falar pianissimo em vez de piano pianissimo. Se a sua mãe a acordar de repente, não deve falar alto. Tem de controlar a respiração: nada de suspiros pesados. E de maneira nenhuma espirrar.

Sempre que Shira faz algo como mudar de posição, o soalho range e o ar torna-se mais espesso e húmido, difícil de respirar. Mas, depois, o seu pássaro amarelo desliza-lhe das mãos e escapa-se por um buraco nas tábuas do sótão. umas voltas rápidas por ali, atento a perigos, e regressa com as suas penas brilhantes despenteadas pelo vento. Shira procura os seus olhos negros como contas em busca de conforto: Os sons dela continuam sem ser ouvidos.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Volta a instalar-se no feno e tenta de novo manter-se imóvel até se formarem e pulsarem nela notas, trechos de canções e em breve passagens completas, de início discretas, mas depois crescendo de intensidade e tornando-se mais sonoras. Uma história contada com cordas e sopros: uma noite glacial, um fogo estrepitante, sons como água negra sob gelo brilhante, baixos e timbales e anseios de violino, e, finalmente, um crescendo, a terra gelada a estalar…

A mãe dela acena com um braço, a testa franzida. Shira percebe que está outra vez a tamborilar.

Capítulo Três

O tempo esbate-se e dilata no celeiro. Estar escondido de dia é indistinguível de estar escondido de noite, e o decorrer de cada minuto silencioso parece uma eternidade na escuridão das sombras. No entanto, Róża mantém a rotina de sono que iniciou para Shira quando fugiram inicialmente de Gracja, quando se mantiveram pelos arrabaldes das aldeias, atravessando campos e prados a caminho do celeiro de Henryk.

Primeiro, espreitam para as fotografias no invólucro de cartão: Natan na universidade numa imagem granulosa e escura; os pais de Róża, de olhos meigos apesar das posturas rígidas e formais; e Shira, com o seu vestido pelo tornozelo. Róża gostaria de ter recolhido outras fotografias, que fossem melhores, de Natan e da família alargada deles. Mas eram estas que estavam à mão.

Através de sussurros, Shira pede a Róża para lhe falar de cada uma delas.

— Este é o teu pai no dia em que se licenciou em farmacologia; estes são a tua bobe e o teu zayde no casamento da tia Syl e do tio Jakob; esta és tu no bar mitzvah do Gavriel.

A seguir, Róża conta a história de uma miudinha que, com a ajuda do seu pássaro amarelo-vivo, cuida de um jardim encantado. A miudinha tem cinco anos, a mesma idade da Shira. O jardim deve ser cuidado em silêncio — apenas o canto do pássaro é seguro —, mas há uma princesa que não consegue parar de espirrar e gigantes que nunca a devem ouvir. aventuras e ameaças evitadas pelo raciocínio rápido da rapariga; e, a cada vez, a história termina com a rapariga e a mãe enroscadas juntas numa pi- lha suave de pétalas de margarida para uma boa noite de sono.

Mais tarde, Róża canta numa voz sussurrada uma canção de embalar sobre pintainhos que esperam que a mãe regresse com uns copos de chá para beberem. Ela deixa de fora o Cucuricoo que inicia a canção e reza para que Shira não o pronuncie em voz alta. A seguir, enrosca os seus dedos grandes sobre os pequenos de Shira um enroscar de mãos, um aperto de boa-noite e acomoda Shira com a sua manta para que durma.

Só que esta noite, aturdida com a fome, a inatividade e a luz roxa esmorecente, Róża cambaleia a cabeça a meio da história. Desperta de repente, com uma lucidez renovada, quando ouve o som de alguém a entrar no celeiro. Henryk. Transporta com ele, ao subir o escadote até ao sótão, o ar noturno e o odor a álcool.

Róża calcula que passe da meia-noite. A casa da quinta tem as luzes apagadas: Krystyna e os rapazes devem estar a dormir. Shira senta-se de pernas cruzadas precisamente ao centro do sótão, bem desperta, fingindo que brinca com o seu pássaro, tentando decifrar os sussurros de Henryk sobre notícias da guerra que ele acabou de ouvir na taberna.

O olhar de Henryk incide em Shira.

— Quando é que ela dorme?

Róża empurra Shira para um lugar na parede mais afastado do escadote.

— Tens de te deitar ali. Sim, com a cara virada para a parede, e não te vires… está aqui a tua manta… e prometo-te que terminamos a nossa história logo de manhã bem cedo. — Róża sente Shira a encrespar-se com o falso ânimo na voz dela.

— Mas, mamã…

— Agora, nada de perguntas. Chiu.

Róża mantém-se em silêncio e imóvel enquanto Henryk baixa as calças e a penetra. Seca e tensa, ela sente-se como que a rasgar. Sente o intenso peso dele sobre si. Os impulsos dele tornam-se mais rápidos, mais profundos, com um ritmo cada vez mais intenso. O feno arranha as costas dela enquanto ele a pressiona contra as tábuas do chão, sentindo o sal, o suor e a respiração dele no seu nariz.

Os sons dele, o som deles a batida de uma porta de alpendre durante um temporal poderiam afastar tudo. No entanto, a Róża nada mais resta do que esperar que termine. Henryk tateia pela blusa dela acima e dá com os mamilos; torce, apertando com força. Róża prende o olhar numa abertura no teto do sótão, uma fatia de luar. Henryk continua a fazer força. Um grunhido final e a humidade quente saem de dentro dele, antes de colapsar sobre ela, com uma mão ainda no cabelo dela.

Quando Róża ousa olhar na direção de Shira, apercebe-se de imediato, pelo movimento incerto da respiração da rapariga, que ela permanece acordada.

Bem cedo na manhã seguinte, no segundo dia delas no celeiro, Róża está acordada e inquieta sobre partirem — para onde irão? — quando entra Henryk. Ela retesa-se e cruza os braços sobre o peito.

— Podem ficar mais algum tempo anuncia Henryk. Róża afunda-se no feno como se fosse uma poça.

— Obrigada.

Mais tarde, vê uma vizinha a aparecer com uma travessa de biscoitos de açúcar e a interromper a reprimenda que Henryk dava aos seus rapazes mais velhos, Piotr e Jurek. Ele dissera-lhes para se manterem longe da bomba do poço, mas andaram a mexer e partiram-na. Agora, está a avisá-los — mantenham-se longe do celeiro.

— Arranjou um cavalo? pergunta a vizinha, com os biscoitos ali ao alto, de olhos semicerrados.

— Hã?

— Um cavalo no seu celeiro? Altas pilhas de feno ainda tapavam a linha de visão desde os campos vizinhos para a fachada frontal do celeiro.

— Oh, isso. Não, tenho só andado a mudar equipamentos de um local para o outro, nada mais.

Quando se aproxima outra vizinha, Krystyna — com os seus olhos apenas por uma vez a espreitarem na direção do sótão — leva o pequeno Łukasz até ao grupo para ser adorado. Que instinto de proteção por Róża e Shira é que tomou conta dela?, pensa Róża. E que instinto de traição poderia surgir igualmente tão de repente?

Róża recua face à fenda na parede antes de ver algum deles a comer os biscoitos.

O dia vai passando: Krystyna traz um jarro de água e dois nacos de pão; mais tarde, Henryk remove o balde dos dejetos delas. Apesar daquela amabilidade, Róża está certa de que, a qualquer momento, um ou outro de exigir a partida delas e esforça-se ao máximo a tentar pensar para onde ela e Shira poderão ir a seguir. Há uma casa que conhece, na aldeia seguinte, onde em tempos entregou sękacz para o casamento de um mercador. O bolo — que necessitou de quarenta ovos — era alto como uma árvore e muito difícil de transportar; e a casa também se destacava porque também esta era muito alta. Tenta recordar-se: a que distância ficava a casa dos seus vizinhos? E alguma vez recebeu a notícia de que a mulher do mercador tivera filhos? Se assim foi, se calhar teriam menos sorte lá…

Com o anoitecer, Krystyna traz sopa. Nem ela, nem Henryk mencionam a partida delas. Depois de comerem, Róża deita Shira para a noite, contando-lhe um novo acrescento à história. A miudinha descobre uma família de toupeiras, que gentilmente espetam à vez o focinho cá fora e deambulam em redor de um buraco junto ao jardim! A rapariga receia que as toupeiras escavem um túnel através de um canteiro de flores encantadas, pelo que inteligentemente compõe uma “canção comovente” para que o seu pássaro lhas cante. Ao escutarem o animado tema, as toupeiras põem os seus chapéus, pegam nos seus sacos e desatam a fugir, com as cabeças a balançar ao ritmo da música e o jardim fica seguro. Shira pergunta:

— O que levam as toupeiras nos sacos?

Róża responde:

— Os óculos!

Os olhos de Shira arregalaram-se maravilhados. A seguir, Róża cantarola num sussurro a canção de embalar, cobre as mãos de Shira com as suas, e aconchega-a na sua manta tudo antes de Henryk subir o escadote. Não são expulsas do celeiro no dia seguinte, nem no outro a seguir.

Róża faz uns entalhes rasos nas vigas do celeiro com uma pedra para registar a passagem de cada dia. Aprecia o peso da pedra na sua mão, a cedência da madeira macia por baixo. Na acumulação de marcas sente o triunfo da sobrevivência, sempre temperada pelo medo.

Capítulo Quatro

Enquanto Róża marca a viga, no final de mais um dia, Shira sussurra as suas perguntas persistentes.

— Porque é que temos de nos esconder? Porque é que temos de ficar caladas? Róża fixa o olhar em Shira, desejando ter respostas que a aquietassem.

— Alguns gigantes não gostam de flores, e como acreditam que a sica das nossas vozes ajuda as flores a crescerem, nunca devemos deixar que os gigantes ouçam as nossas canções.

— E não tem mal se for um pássaro a cantar?

— Não, desde que nós fiquemos caladas.

Róża volta-se de novo para a viga, pensando na visita de Henryk na noite anterior. Ele penetrou-a vagarosamente, de uma forma quase gentil. Ela não conseguiu deixar de reparar nas diferenças dele face a Natan: o próprio peso, o modo como o peito tinha menos pelos, como o seu odor agarra nele o travo da terra. Mesmo quando estava ali completamente imóvel a olhar para o vazio como se ocupasse um corpo diferente, um lugar diferente —, os olhos dela vagueavam desde a parede para a cara dele, para os olhos cinzentos descaídos dele…

A ponta afiada da pedra, agarrada no punho de Róża, morde-lhe a carne. Contém um grito e pousa a pedra num canto. Faz cálculos, tentando descortinar em que traço calhou, despercebido, o Shabat.

Talvez a mulher do mercador viva sozinha na casa alta? Ao contrário de Henryk, que ficou livre do serviço militar devido a um problema num nervo de um olho que o impede de focar rapidamente a visão no meio de fumo, o marido provavelmente foi recrutado.

Contando as marcas, Róża constata que é o décimo primeiro dia delas no celeiro.

Porque o seu tempo é precioso.

Subscreva a newsletter do SAPO 24.

Porque as notícias não escolhem hora.

Ative as notificações do SAPO 24.

Saiba sempre do que se fala.

Siga o SAPO 24 nas redes sociais. Use a #SAPO24 nas suas publicações.