— Entre a vida e a morte existe uma biblioteca — começou ela. — E, nessa biblioteca, as estantes estendem-se até ao infinito. Cada um dos livros oferece-te a possibilidade de viveres outra vida que podias ter vivido. Permitem-te ver como as coisas podiam ter sido diferentes se tivesses feito outras escolhas… Se tivesses a oportunidade de voltar atrás nos teus arrependimentos, farias alguma coisa de modo diferente?

Uma Conversa sobre Chuva

Dezanove anos antes de decidir morrer, Nora Seed encontrava‑se sentada na pequena biblioteca da escola de Hazeldene, na cidade de Bedford. Fitava um tabuleiro de xadrez na mesa baixa à sua frente.

— Nora, querida, é muito natural que te preocupes com o teu futuro — disse a bibliotecária, a Sra. Elm, com os olhos a brilhar como gelo ao sol. Então, fez a sua primeira jogada. Um cavalo a saltar sobre a aprumada fileira de peões. — É claro que tens de te preocupar com os exames. Mas podes ser aquilo que quiseres, Nora. Pensa em todas as possibilidades que tens pela frente. É entusiasmante.

— Sim, penso que seja.

— Tens uma vida inteira à tua frente.

— Uma vida inteira.

— Podes fazer aquilo que quiseres, viver onde quiseres. Talvez num sítio um pouco menos frio e húmido.

Nora empurrou um peão duas casas para a frente.

Livro: A Biblioteca da Meia-Noite

Editora: Topseller

Data de lançamento: 31 de maio

Preço: 16,91

Era difícil não comparar a Sra. Elm à sua própria mãe, que tratava Nora como se ela fosse um erro que precisava de ser corrigido. Por exemplo, quando Nora era bebé, a mãe andava preocupadíssima com a possibilidade de a sua orelha esquerda vir a ficar mais saliente do que a direita, por isso recorreu a fita adesiva para controlar a situação e usava um gorro de malha para o disfarçar.—

— Eu detesto o tempo frio e húmido acrescentou a Sra. Elm, para dar mais ênfase à questão.

A Sra. Elm tinha o cabelo grisalho curto e um rosto oval bondoso, um tanto enrugado; vestia uma camisola verde‑tartaruga de gola alta. Era uma senhora bastante idosa. Mas, de toda a gente na escola, era a pessoa que mais estava em sintonia com Nora, por isso, mesmo quando não chovia, ela gostava de passar o intervalo da tarde na pequena biblioteca.

— O frio e a humidade nem sempre ocorrem ao mesmo tempo — disse‑lhe Nora. — A Antártida é o continente mais seco da Terra. Tecnicamente, é um deserto.

— Bem, parece ser mesmo o lugar ideal para ti.

— Acho que não é suficientemente longe.

— Então talvez devesses ser astronauta. Viajar pela galáxia. Nora sorriu.

— A chuva nos outros planetas ainda é pior.

— Pior do que em Bedfordshire?

— Em Vénus chove ácido puro.

A Sra. Elm tirou um lenço de papel do interior da manga e assoou delicadamente o nariz.

— Estás a ver? Com um cérebro como o teu, podes fazer o que quiseres.

Pela janela salpicada de chuva, Nora viu passar a correr um rapaz louro que reconheceu de uma turma dois anos abaixo da sua. Andava a perseguir alguém ou a ser perseguido. Desde que o irmão tinha saído da escola, Nora sentia-se um pouco desprotegida. A biblioteca representava um pequeno abrigo da civilização.

— O meu pai acha que eu deitei tudo a perder. Agora que parei de nadar.

— Bem, longe de mim estar a criticar, mas há coisas mais interessantes neste mundo do que nadar muito depressa. Tens muitas vidas possíveis à tua frente. Como te disse na semana passada, podes ser glacióloga. Andei a fazer alguma pesquisa e…

Foi nesse momento que o telefone tocou.

— Um minuto — disse suavemente a Sra. Elm. — Vou só atender o telefone.

Um instante depois, Nora virou‑se para observar a Sra. Elm ao ouvi‑la dizer:

— Sim. Ela está aqui comigo. — O rosto da bibliotecária assumiu uma expressão de choque. Voltou-se de costas para Nora, mas as suas palavras eram audíveis do outro lado da sala silenciosa: — Oh, não. Não. Oh, meu Deus. É claro que sim…

Biblioteca da Meia Noite

Dezanove Anos Depois

O Homem à Porta

Vinte e sete horas antes de decidir morrer, Nora Seed estava sentada no seu sofá velho a ver fotografias das vidas felizes das outras pessoas, à espera de que algo acontecesse. Até que algo aconteceu, vindo do nada.

Alguém lhe tocou à campainha, fossem quais fossem os seus motivos peculiares.

Por momentos, ainda se questionou se devia ignorar e não abrir a porta. Afinal, estava com a roupa de dormir, embora ainda fossem nove da noite. Sentia-se constrangida com a sua t-shirt larga em que se lia «ECO GUERREIRA» e as suas calças de pijama axadrezadas.

Calçou os chinelos, para se apresentar ligeiramente mais civilizada, e descobriu que a pessoa que estava à porta era um homem, e ela sabia quem ele era.

Era alto, magro e meio desajeitado, de ar jovial e rosto bondoso, mas os seus olhos tinham um brilho e uma vivacidade especiais, como se pudessem ver através dos objetos.

Foi bom vê-lo, ainda que um pouco surpreendente, principalmente porque ele encontrava-se equipado para fazer desporto e estava corado e transpirado, apesar do tempo frio e chuvoso. A justaposição entre os dois fê-la sentir‑se ainda mais andrajosa do que cinco segundos antes. No entanto, Nora andava a sentir-se muito sozinha. E embora tivesse estudado o suficiente de filosofia existencial para acreditar que a solidão era um aspeto fundamental no ser humano enquadrado num universo essencialmente desprovido de significado, foi muito agradável vê-lo.

— Ash disse ela, com um sorriso. Chamas‑te Ash, não é?

— Sim. Chamo‑me Ash.

— O que estás aqui a fazer? É bom ver‑te.

Algumas semanas antes, ela estava sentada a tocar no seu piano elétrico quando ele desceu a Bancroft Avenue a correr e, ao vê-la pela janela da sua casa no 33A, acenou-lhe timidamente. Em certa ocasião, já alguns anos antes, ele convidara-a para beber café. Talvez estivesse prestes a fazê-lo novamente.

— É bom ver-te também disse ele, mas a sua testa tensa não corroborava as suas palavras.

Quando Nora se lhe dirigia na loja, ele parecia sempre uma pessoa descontraída, porém agora a sua voz carregava qualquer coisa pesada. Coçou a testa. Fez outro som estranho, mas não chegou a conseguir pronunciar uma palavra inteira.

— Estiveste a correr? Que pergunta inútil. Era evidente que tinha saído para correr. Mas ele pareceu ficar momentaneamente aliviado por ter qualquer coisa trivial para dizer.

— Sim. Vou fazer a meia-maratona de Bedford. É este domingo.

— Ah, muito bem. Que bom. Eu também pensei em fazer uma meia-maratona, mas depois lembrei-me de que detesto correr.

Isto parecera-lhe mais engraçado quando o pensara do que agora, com as palavras verbalizadas e libertas no ar. E ela nem sequer detestava correr. Ainda assim, sentiu-se perturbada ao ver a seriedade da expressão dele.

— Disseste‑me que tinhas um gato acabou ele por afirmar.

— Sim. Tenho um gato.

— Eu lembro‑me do nome dele. É Voltaire. Um gato ruivo às riscas?

— Sim. Chamo‑lhe Volts. Ele acha Voltaire um pouco pretensioso. Como se veio a revelar, não é grande adepto de filosofia e literatura francesas do século XVIII. É um gato muito terra a terra. Sabes como é… Para um gato.

O Ash baixou os olhos para os chinelos dela.

— Receio que ele tenha morrido…

— O quê?!

— Está ali deitado na beira da estrada, muito quieto. Vi o nome na coleira dele e acho que é capaz de ter sido atropelado por um carro. Lamento muito, Nora.

Nora sentia‑se tão assustada com a súbita torrente de emoções que a inundou que continuou a sorrir, como se o sorriso tivesse a capacidade de a manter no mundo em que estava até uns instantes antes, um mundo no qual Voltaire estava vivo e aquele homem a quem vendia pautas de música para guitarra lhe tivesse batido à porta por outro motivo qualquer.

Segundo se lembrava, Ash era cirurgião. Não veterinário, mas um cirurgião de pessoas. Se ele dizia que algum ser estava morto, a probabilidade era que, de facto, estivesse.

— Lamento muito.

Nora sentiu uma onda familiar de tristeza. A única coisa que a impedia de chorar era a sertralina que ainda havia no seu corpo.

— Oh, meu Deus.

Saiu para a rua, para as lajes rachadas e molhadas da Bancroft Avenue, mal conseguindo respirar, e viu o pobre bichinho peludo às riscas alaranjadas deitado no alcatrão brilhante molhado da chuva, colado ao passeio. Tinha a cabeça encostada à berma e as patas esticadas numa espécie de galope médio, como se estivesse a perseguir um pássaro imaginário.

— Oh, Volts. Oh, não. Oh, meu Deus.

Sabia que devia sentir pena e desespero pelo seu amigo felino e sentia —, mas era forçada a reconhecer outra coisa também. Enquanto fitava a expressão calma e pacífica de Voltaire a sua total ausência de dor —, havia um sentimento inescapável a ganhar força na escuridão.

Inveja.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Teoria das Cordas

Quando ela era mais nova, o pai costumava ficar ao lado da piscina, com os maxilares cerrados e os olhos a viajarem entre o cronómetro e a filha, enquanto ela tentava bater os seus recordes pessoais. Agora, ao chegar atrasada e ofegante para o seu turno da tarde na loja Teoria das Cordas, lembrou-se daquele olhar sentenciador, já há tanto tempo desaparecido, que recebia com frequência depois de um grande esforço.

— Desculpa — disse a Neil, que estava no minúsculo caixote sem janelas que lhe servia de escritório. — O meu gato morreu. Ontem à noite. E tive de o enterrar. Bem, alguém me ajudou a enterrá-lo. Mas depois fiquei sozinha no meu apartamento e não conseguia dormir, esqueci-me de ligar o despertador e acordei ao meio-dia. Depois tive de fazer tudo à pressa.

Era tudo verdade e Nora imaginava que o seu aspeto — incluindo o rosto sem maquilhagem, o rabo de cavalo solto e desmazelado e o mesmo vestido em segunda mão de bombazina verde com peitilho que usara durante toda a semana, combinado com o seu ar generalizado de cansaço e desespero corroboraria a história.

Neil levantou o olhar do computador e reclinou-se na cadeira. Juntou as mãos e fez um campanário com os indicadores, sobre os quais apoiou o queixo, como se fosse o próprio Confúcio a meditar sobre uma verdade filosófica profunda acerca do Universo e não o dono de uma loja de equipamentos musicais a lidar com uma funcionária atrasada. Na parede atrás de si havia um cartaz gigantesco dos Fleetwood Mac; o canto superior direito estava descolado e fazia lembrar a orelha descaída de um cão.

— Escuta, Nora, eu gosto de ti. — Neil era inofensivo. Um amante de guitarras com 50 e poucos anos que gostava de contar anedotas pirosas e tocar covers do Dylan ao vivo na loja, o que fazia com relativa habilidade. E sei que tens as tuas cenas de saúde mental.

— Toda a gente tem cenas de saúde mental.

— Sabes o que quero dizer.

— Estou a sentir-me bastante melhor, genericamente falando — mentiu ela. Não se trata de um caso clínico. O médico diz que é uma depressão situacional. O problema é que continuo a encontrar novas… situações. Mas não tirei dia nenhum por causa disso. A não ser quando a minha mãe… Sim. Essa foi a única vez.

Neil suspirou. Ao soltar o ar, fez um ruído sibilante com o nariz.

Um ominoso si bemol maior.

— Há quanto tempo trabalhas aqui, Nora?

— Há 12 anos e… sabia aquilo bem demais 11 meses e 3 dias. Mais coisa menos coisa.

— Isso é muito tempo. Sinto que estás destinada a coisas muito melhores. estás na reta final dos 30.

— Tenho 35 anos.

— Mas tens tanta coisa a teu favor. Ensinas pessoas a tocar piano…

— Uma pessoa.

Ele sacudiu uma migalha da camisola.

— Imaginaste que o teu futuro seria passado na tua cidade natal, a trabalhar numa loja? Quando tinhas 14 anos, quero eu dizer? Como é que imaginavas o teu futuro nessa altura?

— Aos 14 anos? Imaginava que ia ser nadadora. — Ela tinha sido a adolescente de 14 anos mais rápida do país a nadar bruços e a segunda mais rápida a nadar estilo livre. Lembrava‑se de estar no pódio no Campeonato Nacional de Natação.

— Então, o que aconteceu?

Nora fechou os olhos. Recordava‑se do cheiro da desilusão, o forte odor do cloro, por ter acabado em segundo lugar.

— Era demasiada pressão.

— Mas é a pressão que nos constrói. Começamos como um pedaço de carvão e a pressão transforma-nos em diamantes.

Ela não corrigiu o seu conhecimento falacioso em relação aos diamantes. Não lhe disse que, embora o carvão e os diamantes sejam ambos carbono, o carvão é demasiado impuro para se tornar um diamante, não importa a pressão a que seja sujeito. De acordo com a ciência, começamos por ser carvão e acabamos a ser carvão. Talvez a verdadeira lição de vida fosse essa.

Alisou uma madeixa do cabelo cor de carvão em direção ao rabo de cavalo.

— O que estás a dizer, Neil?

— Que nunca é tarde para perseguir um sonho.

— Tenho quase a certeza de que é demasiado tarde para perseguir esse sonho.

— Tu és uma pessoa extremamente bem qualificada, Nora. Tens um curso de Filosofia…

Nora fitou um pequeno sinal que tinha na mão esquerda. Aquele sinal passara por tudo o que ela também passara. E estava ali, sossegado, sem se preocupar com nada. Existia apenas como um sinal.

— Se queres que seja sincera, Neil, a procura por filósofos em Bedford não é assim nada de extraordinário.

— Tu foste para a faculdade, viveste em Londres durante um ano e depois voltaste para cá.

— Não tinha grandes alternativas.

Nora não queria falar sobre a mãe que já morrera. Nem sequer sobre Dan. Porque Neil descobrira que ela tinha cancelado um casamento dois dias antes da data e achava‑a a história de amor mais fascinante desde os tempos do Kurt e da Courtney.

— Todos temos alternativas, Nora... «Livre‑arbítrio» diz‑te alguma coisa?

— Bem, não exatamente se subscreveres uma visão determinista do Universo.

— Mas porquê vir para aqui?

— Porque ou trabalhava aqui ou no Centro de Resgate de Animais. Aqui o ordenado era melhor. Além disso, tenho conhecimentos musicais.

— Tiveste uma banda. Com o teu irmão.

— Sim, tive. Chamava‑se The Labyrinths. Mas era um projeto que não ia a lado nenhum.

— O teu irmão conta uma história diferente. Aquilo apanhou Nora de surpresa.

— O Joe? Como é que…?

— Ele comprou um amplificador. Um Marshall DSL40.

— Quando?

— Na sexta‑feira.

— Ele esteve em Bedford?

— A não ser que fosse um holograma. Como o Tupac.

Ele deve ter vindo visitar o Ravi, pensou Nora. Ravi era o melhor amigo do irmão. Enquanto Joe desistira de tocar guitarra e se mudara para Londres, onde tinha um emprego merdoso, que detestava, em informática, Ravi ficara em Bedford. Agora tocava numa banda de covers, chamada Slaughterhouse Four, que fazia a ronda dos bares da cidade.

— Certo. Isso é interessante.

Nora tinha quase a certeza de que o irmão sabia que sexta-feira era o seu dia de folga. Esse facto provocou‑lhe uma pontinha de tristeza.

— Eu sou feliz aqui.

— Só que não és.

Ele tinha razão. Uma tristeza profunda começou a alimentar‑se dela. A mente de Nora estava a devorar‑se a si mesma. Ela sorriu ainda mais.

— Sou feliz com o meu trabalho, quero eu dizer. Feliz no sentido em que me sinto satisfeita. Neil, eu preciso deste emprego.

— Tu és boa pessoa, Nora. Preocupas-te com o mundo. Com os sem-abrigo, com o ambiente.

— Preciso de trabalhar.

Ele regressou à sua pose de Confúcio.

— Tu precisas de liberdade.

— Não quero liberdade.

— Isto não é uma organização não-governamental. Embora, deva dizer, esteja a transformar-se rapidamente numa.

— Ouve, Neil, é por causa do que eu disse na outra semana? Sobre precisares de modernizar as coisas? Tenho algumas ideias para chamar os jovens para…

— Não — disse ele, na defensiva. — Esta loja vendia apenas guitarras. Teoria das Cordas, percebes? E eu diversifiquei o negócio. Fiz com que funcionasse. O problema é que quando os tempos estão difíceis, não posso pagar‑te um ordenado para afugentares os clientes com a tua cara de enterro.

— O quê?

— Lamento, Nora parou por um instante, mais ou menos o tempo que demoraria a levantar um machado no ar —, mas vou ter de prescindir dos teus serviços.

Viver É Sofrer

O céu estava inundado de nuvens carregadas, de um cinzento muito escuro, como se quisesse proporcionar um eco celestial do estado de espírito de Nora, que andava às voltas em Bedford à procura de uma razão para viver. Aquela cidade era um verdadeiro tapete rolante de desespero. O centro desportivo forrado a crespido granitado onde o seu pai, já falecido, outrora a observara a nadar piscinas e mais piscinas, o restaurante mexicano onde ela levara Dan para comerem fajitas, o hospital onde a mãe tinha feito os tratamentos.

Dan enviara‑lhe uma mensagem no dia anterior.

Nora, tenho saudades da tua voz. Podemos conversar? D X

Respondeu‑lhe que estava estupidamente ocupada (que piada). Mas era impossível responder‑lhe qualquer outra coisa. Não porque tivesse deixado de gostar dele, mas porque ainda gostava. E não podia correr o risco de voltar a magoá-lo. Ela lhe tinha arruinado a vida. «A minha vida está um caos», dissera‑lhe ele por mensagens embriagadas, pouco tempo depois do quase casamento de que ela desistira dois dias antes da data.

O Universo tinha tendência a mergulhar no caos e na entropia. Era um princípio de termodinâmica simples. Talvez também fosse o princípio de uma existência básica.

Perde‑se o emprego e a seguir as merdas começam a acontecer.

O vento soprou por entre as árvores. E começou a chover.

Nora encaminhou‑se para o abrigo de um quiosque de jornais, com a profunda — e, como se viria a verificar, correta — sensação de que as coisas estavam prestes a piorar.