Manhattan 

O RAPAZ DE AZUL
também A Esmeralda da Morte 

* O primeiro filme de Friedrich Wilhelm Murnau foi rodado na pri­mavera de 1919 no castelo de Vischering na região de Münster, bem como nas cercanias de Berlim. O mais importante adereço da ação era um quadro baseado no The Blue Boy de Thomas Gainsborou­gh, mas com o rosto original substituído pelo rosto do protagonista de Murnau, Thomas van Weerth, representado por Ernst Hofmann. No decurso da ação diferentes pistas coincidem em mostrar que o protagonista, o último da sua linhagem, vive na pobreza e sozi­nho, com um velho criado, no castelo dos seus antecessores. Con­templa muitas vezes o retrato de um dos seus antepassados com o qual sente uma misteriosa afinidade, não apenas graças a uma grande semelhança de fisionomias. Será ele a reencarnação deste ra­paz vestido de azul que traz ao peito a aziaga esmeralda da morte, que apenas causou infortúnios à sua família? Para repelir a maldi­ção, um dos seus antepassados escondeu a esmeralda. Certa noite, Thomas sonha que o «Rapaz de Azul» sai do quadro e o conduz ao esconderijo. Quando Thomas acorda, encontra com efeito a esme­ralda no sítio mencionado e ignora as súplicas do seu velho criado para se livrar da pedra preciosa. Ao mesmo tempo chega ao caste­lo um grupo de músicos que lhe levam tudo: roubam a esmeralda, pegam fogo ao castelo, destroem o retrato. Thomas adoece, mas sobrevive graças ao amor puro e à devoção altruísta de uma atriz bonita.

† Ainda não se conseguiu provar se este filme mudo estreou ou não. Provavelmente nunca foi exibido como filme principal, já que ne­nhum dos críticos da época o menciona. Considera-­se que é um filme desaparecido. A Cinemateca Alemã de Berlim conserva na sua cole­ção de películas em nitrato 35 fragmentos curtos do filme em cinco tonalidades diferentes.


Tinha-se claramente constipado. O nariz pingava. Teria estado entupido sequer? Não se conseguia mesmo lembrar. O que a deixava desconfiada. Pois, afinal, tinha um grande cuidado com a sua saúde. Onde estavam os malditos Kleenex outra vez? O pacote estava aqui mesmo há bocado. Que raiva. Sem lenços não podia aproximar-se da porta. Ah, ali estavam eles, debaixo do espelho! Para dentro da mala já, pôr o chapéu e os óculos de sol, abrir a porta e ir aos correios. Que estranho cheiro era este outra vez no corredor? Ah, sim. Era a segunda-feira do sabão azul e branco, o dia em que chegava sempre, cedo pela manhã, um batalhão de limpezas vindo de Queens, que esfregava o mármore como um bando de macacos enlouquecidos, de tal modo que muitas vezes ela era arrancada ao sono ainda antes de o Sol nascer. Ainda que ninguém no prédio inteiro se levantasse tão cedo quanto ela. Este fedor a mulheres de limpeza pairaria no ar pelo menos até quarta-feira. Teria de voltar a pensar em mudar de casa. Coisa que nunca mais acabava! dava vontade de gritar. Pelo menos o elevador chegava imediatamente. O boy bem que podia ser mais bem-educado. Ninguém lhe tinha dito com quem estava a lidar? Agira como se não a reconhecesse. Ninguém lhe tinha dito como deveria cumprimentá-la? Tão jovem e já completamente estragado. Isso mesmo se adivinhava na sua cara de bebé. Em todo o caso não havia outros hóspedes. Era o que mais lhe faltava. Mas demorava outra vez uma eternidade. Dezassete andares eram dezassete andares. Por fim chegaram. Pelo menos o porteiro sabia como comportar-se, levantou-se do seu cubículo e abriu-lhe a porta. Faça favor.

Em outubro recebemos José Luís Peixoto

O escritor José Luís Peixoto é o convidado do próximo encontro do clube de leitura É Desta Que Leio Isto, no dia 28 de outubro, pelas 21h. Iremos conversar sobre o seu mais recente livro, Almoço de Domingo, mas também sobre outras das suas obras.

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O céu! O ar era puro. Não havia abutres à vista. Ninguém a observava. Sem dúvida por causa dos novos óculos de sol. Muito bem. Ela não era esquisita e escolheu simplesmente o primeiro que lhe apareceu, um homem num fato de flanela cinzento. Na verdade, não era particularmente elegante. Mesmo assim era uma boa escolha. Caminhava expeditamente na direção do Eastside, navegava por entre o torvelinho e dava-lhe a ela um rumo, um ritmo. O que já era alguma coisa. Por vezes desaparecia na multidão, mas ela depressa o alcançava. Ela era, afinal, uma caminhante versada. Era a única disciplina na qual atingira uma relativa mestria. No fundo era a sua única alegria, a sua religião. Poderia, num caso extremo, renunciar à calistenia, mas de modo algum aos seus passeios. Nem à deambulação diante das montras, nem a perder o rumo nem a sair da rota. Uma hora diária no mínimo, de preferência duas. A maior parte das vezes a descer até Washington Square Park e de volta para casa, ocasionalmente a subir até à 77th Street. No início era bom seguir o passo de estranhos. Mais tarde chegava o momento de se deixar ir. Assim como assim, não era possível perder-se. Uma vantagem das ilhas.

Fazia mais frio do que pensara. Em todo o caso, frio de mais para abril. Mesmo para a costa Leste. Ora fazia um frio de morrer, ora um calor insuportável nesta cidade. Era um mistério a razão por que aqui vivia, neste clima detestável e cheio de correntes de ar, infinitamente propício a constipações. Deveria ter ido para a Califórnia logo em março. Como sempre, de resto. Em março teria sido o mais acertado, logo em março! Morria-se de tédio lá, sem dúvida, quando não se tinha nada que fazer. Mas mesmo assim o clima era perfeito: ar fresco, sol em abundância. Podia-se andar o dia inteiro de um lado para o outro em pelota. Enfim, pelo menos em teoria. A única chatice era que Schleesky odiava a Califórnia. Por isso tinha de ser ela a tratar de tudo: a marcar o voo, um motorista e até um lugar onde ficar, desde que tinham vendido a casa e desde que a Mabery Road deixara de existir. Como se não tivesse já coisas suficientes que fazer. Estivera à procura do pulôver certo semanas a fio. Tinha de ser de caxemira. Em rosa-velho, a sua cor preferida. Adorava cores: salmão, lilás, cor-de-rosa. Mas, acima de tudo, rosa-velho. Além disso, tinha prazos, compromissos idiotas. Ela cancelava a maior parte, mas era cansativo de qualquer maneira. Cecil tentara uma vez mais, manifestamente convencido de que bastaria propor-lhe uma qualquer hora e ou, pior ainda, pedir-lhe que os propusesse ela. Como havia ela de saber se amanhã ou dali a três dias teria fome ou sede ou vontade de o ver? Para já não falar do facto de estar adoentada. Nunca tivera uma grande saúde. Ainda que tivesse bastante cuidado consigo, andasse sempre agasalhada e nunca, nunca se sentasse na sanita. A realidade era esta: uma corrente de ar e ela ficava de cama com uma valente carraspana. A última vez que se constipara fora a tomar um chá com a Mercedes. E, no entanto, só se tinha encostado por um momento à janela aberta. Ao final do dia já lhe doía terrivelmente a garganta, e, ainda que tivesse ido para a cama com dois pulôveres e collants de lã, como sempre, no dia seguinte acordara miseravelmente doente.

O menino azul
"Jonathan Buttall (O menino azul")", quadro do pintor inglês Thomas Gainsborough que serviu de inspiração para o filme de Friedrich Wilhelm Murnau. créditos: Wiki Commons

Demorara semanas até começar a recuperar. Na verdade, seria mais fácil dizer quando não estava doente. E já para não falar dos malditos afrontamentos que surgiam do nada. Simplesmente horríveis. Precisava de cuecas novas com urgência. Em Londres, no outono passado, vira umas azul-claras, pelo joelho. Cecil escrevera-lhe a dizer que na Lillywhites só havia em azul-cobalto, vermelho-escarlate e amarelo-canário. Mas nesse caso deveria ter ido espreitar ao Harrods. Fosse como fosse, prometera que lhe arranjaria algumas. Mais uma coisa de que ela tinha de tratar. Talvez se devesse encontrar com ele, afinal, só por causa das cuecas.

Ora então, para onde tinha ido o fato cinzento? Deixara simplesmente a rota, vagueara para a direita e aproximava-se da fachada de vidro. Que diabo! Ele não queria… ou queria, não! Não podia ser verdade! Dirigia-se precisamente para lá. E desapareceu com efeito pelas portas giratórias do Plaza! Já se tinha acostumado a ele. Se ao menos fosse o Waldorf Astoria! No Plaza não entraria nem que fosse arrastada pelos cabelos. Tinha a mais sórdida entrada das traseiras de toda a cidade. Era incrível que um hotel tão fino pudesse ter um pátio com um cheiro tão nauseabundo. Ela conhecia bem as entradas das traseiras. Se ela conhecesse tudo tão bem quanto conhecia as entradas das traseiras! Com caixotes do lixo ou com aquelas selhas cheias de roupa suja malcheirosa e os elevadores do pessoal com o fedor a restos de comida. O azar dela! Ainda não eram dez horas e já a primeira desilusão, sem contar com o rapazote do elevador. Simplesmente não se deveria conviver com mais ninguém.

Ali estava ela agora, de nariz a pingar. Ranho a escorrer. E ninguém a detinha. Que miséria! Não havia ninguém que se preocupasse com ela. Que reparasse nela, que a reconhecesse, que a ajudasse. Todos passavam por ela a correr. Por ela. Uma mulher que mexia na sua mala com dedos protegidos por luvas. Os malditos Kleenex, como se tivessem sido engolidos pelo chão. E a fonte da Grand Army Plaza nem sequer jorrava água. Mas interromper o passeio por essa razão, passados nem sequer dois quarteirões? Pois bem, puxar para cima o ranho, atravessar a rua no próximo sinal verde e sem fazer mais experiências, descer um pedaço da 5th Avenue e subir pela Madison. O fato cinzento fora um erro. Um erro mais, era tudo. Outra vez. Não era para admirar. Estava sempre a cometer erros. Simplesmente atroz. Mas não fora sempre assim. Antigamente era diferente. À época não fazia estes errozinhos de merda. Soubera sempre exatamente o que queria e quanto. Tinha um dom infalível. Sem refletir. Refletir nunca lhe servira de nada. Nunca chegara a uma resolução refletindo. As patéticas ruminações de merda que apenas causam rugas. Nunca refletira sobre nada na sua vida. Não sabia sequer o que isso era. Intelectualmente, afinal, ela era um zero à esquerda. Simplesmente não sabia nada. Era completamente ignorante. Também nunca lera livros. E o que aprendera até agora? Os significados das diferentes posições da cabeça: baixar a cabeça significa submeter-se, lançar a cabeça para trás significa o contrário, a cabeça ligeiramente inclinada para a frente significa apoio, a cabeça muito levantada significa serenidade e constância. É espantoso que tivesse reparado nisto. Ela que nunca reparava em nada. Não sabia nada de nada, mas tinha uma intuição sonâmbula! Na qual confiara. Desde rapaz que soubera o que queria. No passado. E agora fora-se, a estúpida intuição. Evaporara-se. Onde estivera essa famosa intuição, quando ela se obrigara a vestir o monstruoso fato de banho? Correra para a sua perdição de olhos abertos, diante da câmara a rodar. Puro suicídio. No cume o ar era rarefeito. Quando se olha para baixo, já se perdeu. Depois o maldito medo dominou tudo. E depois já não havia nada.

O nariz a pingar vinha antes ou depois do nariz entupido? Qual era afinal o curso clássico da maldita doença? Mais tarde havia de ligar à Jane para lhe perguntar. A Jane saberia. Ou pelo menos fingia, o que ia dar ao mesmo. Ainda que esta noite também ela não soubesse o que fazer. Mas pode-se sempre ligar à noite a uma boa amiga por causa de uma qualquer urgência! Sentira-se realmente miserável. Pensamentos idiotas o tempo todo, sonhos absurdos. Não se aguentava. Agora era claro de que se tratava: uma constipação a instalar-se, mas ontem à noite podia também ter sido um AVC, reumatismo ou cancro. Haveria mesmo cancro no nariz? Se sim, provavelmente teria outro nome. Mas também não era uma simples constipação, ranhosa como estava também podia ser sinusite. No entanto, não lavara a cabeça ao fim do dia. Que diabo a havia feito mudar de ideias? Ah, é verdade, Cecil, a velha tia bisbilhoteira, voltara a ligar e ficara horas a fio a palrar. Que erro ter atendido. O mais pequeno gesto de afeição era imediatamente castigado. Esta velha tia bisbilhoteira conseguia ser pior do que a Mercedes. Só repreensões e juras de amor. Não admira que depois tivesse tido uma enxaqueca. Se em vez de ter atendido o telefone tivesse lavado a cabeça. Pelo menos isso teria ficado feito. Outra vez o nariz. Que merda. Ainda assim continuava vermelho. Mas o que era aquilo afinal? Uma câmara, apontada a ela. Ora então. Afinal. Atrás da câmara uma mulher, uma rapariga nova, giraça. Outra coisa, para variar. Mas ela não se atreveu…? Não podia ser verdade! Agora era fotografada a assoar o nariz. Em plena luz do dia. Que escândalo! Não era poupada a nada. A fotógrafa já desaparecera. A rua estava cheia. Um vaivém sem fim. Irmãs do Exército de Salvação com postais e um acordeão, o pobre diabo com o seu carrinho Hot Dog, o homem dos jornais atrás do seu monte de níqueis e de pilhas de papel. Todos tinham alguma coisa para fazer. Só ela não. Nem sequer lia o jornal. O jornal nunca tinha nada. Quem era aquela boneca na capa da Life? Ah, vejam só! A pequena Monroe, pálpebras a meia haste, louríssima, os ombros descobertos — em parte pega, em parte boneca de luxo, mas não desprovida de estilo. A verdade era que ela sabia bem o que fazia. The Talk of Hollywood, portanto. Não me digam. Espalhara-se finalmente a palavra de que esta coelhinha era a última sensação. Algo que ela profetizara havia anos. Um canhão. Qual canhão, uma bomba. E a atriz perfeita para interpretar a rapariga que leva Dorian Gray a perder a cabeça. Céus! Isso é que era! A Monroe como Sybil e ela própria como Dorian. Sim, isso é que era, o papel perfeito para um comeback. E numa qualquer cena do filme: a Monroe nuinha como veio ao mundo! Perdida por cem, perdida por mil. Tudo o resto teria sido um desperdício. Isso é que era! A grande Garbo arruinada pela pequena Monroe. Um triunfo da arte da representação! Que raiva, que merda, isso é que era. E ela soubera-o. Soubera-o simplesmente. Só que ninguém percebera. Mas eles nunca percebem nada, aqueles idiotas. Chegavam sempre com estes papéis de mulheres. Morrer pelo verdadeiro amor ou outro disparate qualquer patético e vomitivo. Um cadáver saído do Sena que faz carreira como máscara mortuária com um sorrisinho débil. Se era para ser uma máscara, então que fosse a sério.

Gostaria de fazer de palhaço, um palhaço homem, que debaixo da maquilhagem e das calças de seda afinal fosse uma mulher. E todas as raparigas que o admiram não percebem porque razão ele não responde. Mas Billy também não percebera. Um traidor como todos os outros. Agora vinha-lhe tudo à memória. Que ele tenha ousado dizer o seu nome juntamente com o de todas as outras estrelas decadentes do cinema mudo. Como se estivesse fora de prazo, ela, como se estivesse morta! Simplesmente de mau gosto. Fosse como fosse, havia um único realizador em quem ela teria confiado cegamente, e esse estava a fazer tijolo. Por esse realizador ela teria feito de fantasma, qual quê, teria feito de zombie! Ele teria podido fazer o que quisesse dela. Tudo! Mas ele não quisera. Não obstante, ela agradara-lhe, nessa época, em casa de Berger. E ele a ela, moreno como estava. Acabado de regressar do mar do Sul, alto e esguio como sempre. Completamente nas lonas, mas tinha de ficar no Miramar com o pastor-alemão. Maravilhosamente arrogante e magnificamente autoritário. Nunca se sabia ao certo o que queriam dizer as suas palavras. A maneira como lhe contara que a sua família saíra da Suécia séculos atrás. E como se pusera hirto, como se isso provasse alguma coisa. Simplesmente arrebatador! Mais tarde, na mesa de bilhar, fora muito meigo. O que não surpreende, bêbedos como estavam os dois. Os olhos dele, castanhos e inquietos, o cabelo ruivo, a boca trémula, a voz sempre troante. Feito exatamente à sua medida. Mas não! Outra vez apenas o princípio do fim. Cinco semanas mais tarde estava morto. Como todos os que haviam sido importantes para ela: Alva, Moje, e depois também Murr. No entanto, as coisas podiam ter corrido bem. Ele não se mostrara nada relutante. Que ele gostasse de rapazes não era impedimento. Pelo contrário: ela nunca fora uma rapariga. Como Cecil troçara dela. «Come on, nunca foste um rapaz.»

Inventário de Algumas Perdas
créditos: Elsinore

Livro: “Inventário de Algumas Perdas – Romance de Formação”

Autor: Judith Schalansky

Editora: Elsinore

Data de lançamento: 25 de outubro

Preço: 16,91 €

Mas depois desenterrara uma fotografia dela e vira qualquer coisa, um momento que ainda não continha os momentos posteriores. A sua infância à luz do ocaso. A maldita pobreza, a vida cinzenta em Söder. O pai a um canto do quarto debruçado sobre o jornal, a mãe noutro, a remendar um vestido qualquer. O ar sempre pesado. Gostaria que Cecil a tivesse agarrado então. E acima de tudo: que não a largasse nunca mais até que ela gritasse Nicht machen! — em alemão. Schleesky nunca a agarrava. No entanto, tinha mãos grandes como uma tampa de sanita. Era uma pena.

As montras dos ateliers de moda também já tinham sido mais requintadas. Onde raio podia ela encontrar um tapete cor de malva? E onde é que ela vira os móveis pintados? Disparate, mesmo com eles a sua casa continuaria a ser um tédio de morte. Um maldito buraco com vista para o Central Park. Nada nela lhe agradava. Era assustador. Teria de voltar a mudar-se. Uma vida de vagabundo, uma vida em fuga, à margem. Sempre sozinha, sozinha como um extra que chega tarde à sua única cena. Deitava-se com as galinhas. Teatro raramente, cinema só quando não havia filas. Não havia nada para ela fazer. Os nativos de Virgem supostamente sabiam consertar coisas. Mas ela só sabia mudar-se. C’est la vie. Não, não era problema da vida. Era problema dela. Cecil tinha razão. Desperdiçara os seus melhores anos. Se ao menos alguém pudesse viver por ela, alimentando-a com o seu sangue. Mas quem? Mesmo Jane perdera a paciência ontem à noite. Nesta situação! Que ela ainda lhe tivesse atirado à cara as vezes que já lhe tinha ligado, era preciso ter lata! Dez vezes? Mesmo que fossem! Primeiro, as críticas grotescas de Cecil, depois, a aceitação de que hoje já não teria força para lavar a cabeça. E depois a frieza de Jane. Infelizmente, Cecil tornara-se, entretanto, tão dependente que já só fazia dó. Quase tanto como Mercedes. Só que a velha gralha ainda lhe trazia azar. O quiroprático que ela lhe recomendara. Dr. Wolf, já só o nome era um mau augúrio! Na verdade, só tinha qualquer coisa no pulso. Mas depois ele também lhe fizera estalar qualquer coisa nas costas e nas ancas. Remexera-lhe o esqueleto todo! No final não só lhe deslocara as ancas, mas também lhe deixara a boca ao lado. Quase a matara.

E se bebesse um café? Mas onde? estava em plena Baixa. Que gaita. Devia ter vindo mais cedo! Ainda tinha de ir à ervanária! Já devia ter ido buscar o chá de urtiga. Ter-se esquecido de uma coisa tão importante! Típico. Tinha decerto uma coisa para fazer, um destino. A ervanário no cruzamento entre a Lexington Avenue e a 57th Street. Afinal estava doente. Talvez estivesse outra vez a rapariguinha morena e solitária. Não propriamente uma beldade, mas inspirava tanta confiança. Tudo ficaria bem. Que magnífica ideia. Ela dar-lhe-ia Kleenex novos e talvez lhe misturasse também um qualquer cocktail de vitaminas. Depois podia ligar à Jane e convidá-la para almoçar no Colony. Dar-lhe uma nova oportunidade. Ou então ir sozinha ao Three Crowns e comer smörgåsbord. Por uma vez não comeria os malditos legumes cozidos nem o frango grelhado. Depois ir à Peacock Gallery condescender num belo whiskey e fumar um maço de Kent Gold. Podia ir ao alfaiate e encomendar umas calças novas feitas por medida. Sim, podia até ligar ao Cecil e encarregá-lo de encontrar um pulôver rosa-velho. Provavelmente encontrá-lo-ia logo. Era tão vivaz, ele, e tão terrivelmente competente para viver e tão assustadoramente interessado — em coisas e em pessoas. Por que diabo queria ele então passar tempo com ela, era incompreensível. Ela, aliás, era a primeira a saber como era aborrecida. Pois, afinal, tinha de passar o tempo todo consigo mesma. Não podia simplesmente desligar quando já era demais. Não podia separar-se de si mesma. Infelizmente não era possível.

Ah, como gostaria de fazer férias de si mesma. Ser outra pessoa. Já estava pelos cabelos com as malditas rodagens. Era mais prático quando ainda havia um argumento. Schleesky não era um autor particularmente dotado. Mas mais vale um mau dono do que dono nenhum. Também não tinham sido assim tão poucos homens. Um número de dois algarismos. As mulheres não contavam. Estavam noutra folha. Talvez fosse o Cecil. Apesar de tudo, gostava dele. De quem mais podia ela dizer o mesmo? Se ele tivesse simplesmente pegado nela e a tivesse levado ao altar. Em vez disso, o palerma esperara por um sim. Se ele tivesse percebido que ela tinha de ser forçada a ser feliz. Que tudo o que ela precisava era de um pontapé no cu! Que ela simplesmente desaprendera a palavra «sim». Claro que queria fazer filmes. Mas era preciso esperar por boas ofertas. Isso fora culpa dela, depois do desastre com o fato de banho. Agora já não era assim tão fácil perceber o que era isso: uma boa oferta. Madame Chauchat d’A Montanha Mágica? Marie Curie e os raios-X? A intuição fora-se. Simplesmente desaparecera. E esta besta atenciosa do Schleesky podia arranjar-lhe um carro e uma garrafa de vodka a meio da noite, mas nestas coisas era tudo menos uma ajuda. Claro que era tirânico. Era o que tinha de magnífico. Tinha mãos bastante grandes para um homem baixo. Era com elas que fazia de todos os outros paus-mandados. Sem levantar a voz. Todos se borravam de medo dele. Um Cérbero ou Cerberus ou como era que se chamava. Mas pelo menos sabia o que queria. A maneira como às vezes olhava para ela. Com olhos frios de peixe, como se ela nem sequer ali estivesse.

Ali, ao lado da máquina automática de fast­food, era ali. O seu destino, o seu farol, a sua querida ervanária. E tivera sorte. Estava lá a rapariguita morena. Já de chávena na mão. Podia confiar nela. A túnica ficava-lhe muito bem quando se curvava para a frente. Porque estava ela com um ar tão estranho? «Meu Deus, Miss Garbo, não está com boa cara.» Essa agora. «O que foi? Mudei assim tanto?» O olhar aterrorizado da rapariga. «Não, não. Nada disso.» Agora minimizava o assunto, tentava apagar tudo. Mas isso era inconcebível. Meu Deus, tinha de sair já daqui. O chá posto de lado. Já estava pago. E porta fora. Que catástrofe. Merda. Obviamente estava com má cara. Pior do que o habitual. Tinha de ver. Mas onde? Um espelho numa montra. Merda. O que fora aquilo? De facto, estava com um aspeto horrível, atroz. Olhos vermelhos, nariz vermelho, rugas, mais do que alguma vez tivera. O pescoço todo frouxo. Por toda a parte linhas a meio caminho de se tornarem rugas. Quais rugas, sulcos, fendas que mais pareciam covas à volta da boca por estar sempre a fumar. Nenhum maquilhador conseguiria alisá-las nem com uma espátula. O mármore esboroava-se. Tudo o que fora contorno perdera precisão e começara lentamente a decair. O papel de máscara mortuária já lhe assentaria bem. Quem morria cedo tinha pelo menos isso. A máscara de Murr simplesmente preservara-o.

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