Final de verão ao largo da costa da Ilha de Kulusuk, a sudeste da Gronelândia, e um icebergue solitário transpira no canal. É enorme, com uns 30 metros desde o nível do mar até ao cume, e tem a forma de uma vela, com a ponta arredondada. Brilha, branco como cera húmida. A parte submersa entrevê‑se sob a forma de uma aura verde-garrafa.

O azul-escuro do canal, o azul intenso do céu límpido. A Lua diurna por cima de uma montanha que parece um escudo. Na margem mais afastada do canal, um glaciar desce até à água a uns dez quilómetros de distância, a zona de ablação onde ocorreu um desprendimento mal se vê.

Baixa-mar. Na praia da aldeia que a descida da maré deixou a descoberto está um homem inclinado sobre qualquer coisa. Tem as pernas esticadas, o corpo dobrado pela cintura. As mangas arregaçadas revelam braços vermelhos até ao cotovelo. Veste um casaco amarelo refletor e roupa impermeável. A carcaça de uma toninha jaz sobre rochas cobertas de algas. O homem usa uma das mãos para agarrar uma aba da pele negra da toninha e puxa‑a para trás, na sua direção, usando a faca curva de esfolar que tem na outra mão para cortar a carne à medida que se torna visível. Dir-se-ia que está a ajudar a toninha a despir um fato de mergulho.

Uma centena de casas de madeira, cada qual empoleirada numa plataforma de gnaisse polida pela neve. É Kulusuk, e mais do que uma povoação, parece um aviário. As casas exibem painéis exteriores de cores garridas — vermelhos, azuis e amarelos — com pinceladas brancas de tinta antiferrugem por cima das cabeças dos pregos. A maior parte das casas está amarrada com cabos de aço, para resistir às grandes tempestades de inverno. O piteraq — o vento catabático que sopra desde a calota de gelo — atinge aqui a força de um furacão, arranca tudo à sua passagem e deixa a terra em pedra viva, montes de neve com muitos metros de altura no lado a sotavento dos edifícios e estilhaça o gelo marinho da costa.

Hoje não há vento. O ar está quente. Invulgarmente quente. O icebergue exsuda. O homem esfola a toninha. Junto ao quebra-mar, objetos maciços e pálidos flutuam a uns 30 centímetros da superfície, balouçando suavemente na ondulação, atados com corda aos degraus mais baixos da escada de ferro cravada na parede do quebra-mar. São os corpos de focas-aneladas, sem cabeça e barbatanas frontais, atados pelas caudas. Os cadáveres estão ali há algum tempo. Têm um débil tom esverdeado. Há entranhas por entre as algas. Foi um mês fraco para os caçadores de Kulusuk.

No lado oriental da baía, ao abrigo de uma escarpa, uma série de cruzes brancas de madeira desce quase até à linha da maré. São de tamanhos diferentes. Algumas têm a trave horizontal entortada. À distância parece um canteiro de neve ou um glaciar minúsculo que descai encosta abaixo. É um cemitério: um dos poucos lugares da aldeia onde se acumulou terra suficiente para enterrar um corpo.

Um uivo agudo rasga o ar e, sem demora, outros 30 ou 40 juntam-se ao coro. Os huskies de Kulusuk uivam ao céu, sentados, de dorsos completamente direitos, parecem lobos. Um deles esforça-se tanto que a corrente que o prende está esticada como uma barra e a coleira estrangula-lhe o uivo.

Quatro crianças e um husky jovem divertem‑se num trampolim, pulam e pulam, os pés das crianças esticando a rede quase até à rocha sobre a qual o trampolim está assente.

O cachorro estica as pernas, prepara‑se. Quando os uivos começam, o cachorro uiva também, e as crianças imitam‑no, pulando e uivando com ele. O icebergue transpira, o homem esfola a toninha, as crianças e os cães pulam e uivam.

Kulusuk
Fotografia tirada a 19 de agosto de 2019 pela Agência France-Presse, não relacionada com a obra. créditos: Jonathan NACKSTRAND / AFP

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Durante aquele verão quente de 2016, antes de eu ter ido à Gronelândia, por todo o mundo o gelo estava a revelar segredos que há muito guardava. A criosfera derretia-se e, enquanto isso acontecia, coisas que mais valia estarem enterradas começaram a vir à superfície.

Na Península de Yamal, entre o Mar de Kara e o Golfo de Ob, 12 mil quilómetros quadrados de permafrost derreteram. Cemitérios de pessoas e animais transformaram-se em neve derretida e lamacenta. Os cadáveres de renas mortas por antraz há 70 anos ficaram expostos ao ar. Vinte e três pessoas foram infetadas e ficaram com lesões negras na pele. Uma dessas pessoas, uma criança, morreu. Veterinários russos, de fatos brancos anticontaminação, percorreram a região para vacinar as renas e os seus pastores. Soldados russos queimaram as carcaças infetadas em piras de alta temperatura. Agrónomos russos afirmaram que não voltaria a crescer mais nada naquela região. Epidemiologistas russos previram que cemitérios árticos e campas rasas viessem a libertar outras doenças, como a varíola, de vítimas mortas no final do século xix, e vírus perigosos latentes nos corpos congelados de mamutes.

No glaciar de Siachen, em Caracórum, onde a Índia e o Paquistão travam uma guerra esquecida desde 1984, o gelo que retraiu tem revelado projéteis, piolets, balas, uniformes abandonados, pneus de veículos, aparelhos de rádio… E corpos humanos massacrados.

No Noroeste da Gronelândia, uma base militar dos EUA do tempo da Guerra Fria, assim como o lixo tóxico que ela continha, começaram a aflorar. O Camp Century foi escavado pelo corpo de engenheiros do exército dos EUA em 1959. Abriram túneis na calota de gelo e criaram uma cidade secreta: uma rede de três quilómetros de galerias que albergava laboratórios, uma loja, um hospital, um cinema, uma capela e acomodações para 200 soldados, tudo alimentado pelo primeiro gerador nuclear móvel do mundo. A base foi abandonada em 1967. Os últimos soldados levaram com eles a câmara de reação do gerador nuclear, mas deixaram o resto da infraestrutura da base intacta sob o gelo, incluindo os resíduos biológicos, químicos e radioativos que ela continha, presumindo — como declaravam os relatórios de encerramento do Pentágono — que ficariam «preservados para a eternidade» pelas neves perpétuas do Norte da Gronelândia. E ali continua tudo inumado: cerca de 200 mil litros de gasóleo e uma quantidade desconhecida de líquido de refrigeração do reator e de outros poluentes, como PCB. Com o aumento das temperaturas globais, porém, prevê-se que o degelo ultrapasse a acumulação de neve na zona de Camp Century. De acordo com a dinâmica que observei, capítulos problemáticos da nossa história, que há muito se consideravam mortos e enterrados, estão a emergir novamente.

Naquele verão, o calor no Ártico quebrou recordes, e o mesmo sucedeu com o degelo. Novos mínimos estão previstos para o gelo marinho no Ártico. Em Nuuk, a capital da Gronelândia, a temperatura atingiu os 24 °C. Os meteorologistas dinamarqueses reviram a suas medições. Não era um erro. Na última década, a calota de gelo perdera massa ao dobro da velocidade do século anterior. Nesses anos, também começou a derreter-se um mês antes do habitual, e nos rios os caudais formados pela água do degelo alcançaram velocidades inimagináveis. Os glaciologistas reviram os seus modelos. Não era um erro.

A água do degelo correu com ímpeto a partir de abril, empoçando sob a forma de lagos azuis e verdes sobre a calota de gelo e correndo sob a forma de rios nos glaciares. O aumento sobre a calota da água proveniente do degelo ajudou a alterar o albedo: era absorvida mais luz do Sol, a temperatura aumentava e isso provocava mais degelo e, em consequência, mais absorção… Um círculo vicioso que o inverno apenas colocaria em pausa.

As faces de ablação dos glaciares da Gronelândia ribombaram. Os icebergues ressumavam nos fiordes. Os cientistas polares apresentaram as suas previsões sobre a altura em que o Oceano Ártico degelaria por completo. Os níveis mais elevados de perda de gelo ocorreriam no Noroeste e no Sudeste do país, para onde eu me dirigia.

Circulavam histórias perturbadoras acerca de desaparecimentos no gelo. Um empresário russo de casaco de pele de camelo e pasta voara para a costa leste, mas já não regressara à Rússia. Um caminhante japonês esfumara‑se no oeste do país e estava desaparecido há semanas. Meio a brincar, os locais falavam do kisuwak, a criatura selvagem que deambulava pelo gelo e apanhava viajantes desprevenidos; uma versão antropomórfica da crevasse glaciar ou do gelo marinho extremamente fino.

Naquela região, neste momento da história, dava a sensação de haver muitos sítios onde uma pessoa podia desaparecer da face da Terra.

— O ano tem sido excecional — diz Matt. — O gelo desapareceu dos fiordes em junho. No inverno pouco nevou. Nunca ninguém viu um ano assim. Normalmente, o canal estaria cheio de gelo, por esta altura. Há duas semanas foi avistado um urso a nadar junto à costa de Kulusuk. Devia estar desesperado. Ninguém disparou sobre ele.

Matt reside em Kulusuk desde os 19 anos. Já se passaram mais 16. Ele e a sua companheira, Helen, vivem numa casa de tábuas azuis mesmo por cima da loja e da escola. São ambos alpinistas, esquiadores e guias com uma experiência formidável. Ambos se comportam com a competência confiante e típica de quem possui capacidades excecionais na natureza, mas não necessita de alardeá-las, a menos que as circunstâncias assim o exijam. O compromisso para com a comunidade gronelandesa à qual se juntaram é total, como o demonstram os anos que Matt passou na aldeia e as amizades profundas que ali fez.

— Bem‑vindo a nossa casa! — exclama Matt, quando chegamos. A casa é luminosa e espaçosa, de paredes brancas e soalho de madeira clara. Um mapa emoldurado da região decora uma das paredes. A intrincada linha costeira faz lembrar um coral. Sentamo-nos a beber chá. Para além de Matt e Helen, há mais três pessoas, todos bons amigos: eu, Bill Carslake, compositor e maestro, gentil e engraçado (há 20 anos que o conheço) e outra Helen, Helen Mort (com quem travei conhecimento há apenas um ano ou dois, mas que tenho já na conta de uma das mais talentosas pessoas do meu círculo de amigos). Helen M, nome que lhe damos na montanha para a distinguir da outra Helen, é escaladora, corredora e escritora, dona de um talento raro. É extremamente modesta, dotada e consistentemente subtil nas suas relações com as pessoas e as paisagens. Juntos viemos trepar os picos da costa leste da Gronelândia e explorar o mundo subterrâneo gelado desta glaciação, a maior depois da Antártida.

Acerco‑me da janela virada a oriente. Dá para a baía. Um grupo de mães e filhos avança pelo caminho marginal. Levam todos redes pretas que lhes cobrem a cabeça, apertadas em redor do pescoço. Assemelham-se a um cortejo fúnebre ou a uma excursão de apicultores.

— É a mais recente moda em Kulusuk — refere Matt, que se juntou a mim. — Há 20 anos não havia mosquitos. Agora, com o tempo a aquecer, chegaram os mosquitos e as melgas. Há quem passe os meses de verão com a rede posta.

Kulusuk é uma das poucas povoações que existem na costa leste da Gronelândia: minúsculas colónias nas franjas desta grande ilha. Me‑ nos de 3000 pessoas vivem em 2500 quilómetros de costa. À semelhança de muitas das povoações gronelandesas mais pequenas, Kulusuk é uma sociedade fraturada pela transição: uma cultura previamente, e em parte, nómada, que subsistia da caça, e na qual a modernidade se intrometeu sob a forma de estase e alcoolismo.

Helen apresenta‑me a Geo, um gronelandês encorpado de sessenta e poucos anos.

— O Geo é meu pai — explica Matt —, e não digo isto numa perspetiva sentimentalista. Tornou-se meu pai e eu tornei-me filho dele.

Quando Geo sorri, coisa que acontece com frequência, os pés-de-galinha à volta dos seus olhos chegam-lhe quase às orelhas. Geo é um excelente caçador, famoso pela sua capacidade para manejar um barco e uma matilha de cães, e a sua resistência é lendária.

— Há dois invernos, tivemos uma grande tempestade — conta Matt. — Os homens voltavam de uma caçada e a tempestade surpreendeu-os. A neve era tanta que os cães não conseguiam puxar os trenós, e ainda tinham de atravessar um desfiladeiro para chegar à aldeia. Os caçadores começaram a ficar preocupados. A situação era séria. O Geo colocou-se à frente a equipa, deitou mãos ao trabalho e veio a abrir o caminho durante seis horas. Regressaram todos em segurança.

Geo estica-se no sofá da sala principal ao estilo romano, erguido sobre um dos braços, a escutar o reconto da história e a sorrir. Ele, Matt e Helen comunicam numa mistura de inglês macarrónico e gronelandês macarrónico. O facto de não dominarem uma língua comum não constitui uma barreira à intimidade. Estão fisicamente à vontade uns com os outros. Quando se sentam lado a lado, fazem-no frequentemente com um braço por cima dos ombros ou com as pernas encostadas.

Em criança, Geo foi levado para a Dinamarca durante um ano como parte de um projeto concebido na década de 1960 e chamado «Dinamarqueses do Norte». O objetivo era que os gronelandeses se adaptassem ao modo de vida dinamarquês, forçando as crianças da Gronelândia a viver com famílias dinamarquesas.

— O Geo ainda hoje estremece quando se fala disso — refere Helen. Foi duas vezes a Inglaterra, a convite de Matt e Helen e em ambas as ocasiões arranjou uma tatuagem, uma em cada antebraço. Arregaça as mangas para mostrar-mas.

— Esta, Glasgow — diz ele, e aponta para uma cruz no antebraço direito. — Esta, Kendal — e mostra uma âncora no esquerdo.

— Uma noite, em Glasgow, saí mais o Geo — relata Matt. — Acabámos nuns bares pouco recomendáveis. O Geo destacava‑se dos restantes fregueses. No Filthy McNasty percebi que na outra ponta do balcão estavam uns tipos a observar o Geo e a pensar vir ter connosco para armar confusão, mas depois reconsideraram e deixaram-se ficar quietinhos. Devem ter chegado corretamente à conclusão de que o Geo era um tipo mais duro do que aqueles que habitualmente frequentam os bares de Glasgow a uma sexta‑feira à noite.

Geo pega na guitarra que está a um canto da sala e canta em voz baixa uma cantiga melancólica do Leste da Gronelândia.

Alguém bate à porta. É Siggy, um marinheiro islandês com o qual Matt viajou para norte, ao longo da costa. Siggy tem um bonito barco novo (em segunda mão), com o casco em madeira, no qual fez a viagem desde Reiquiavique. Veste calças verdes de pele de toupeira e fala sem pressa.

— Este ano não há gelo — diz Siggy. — Podemos chegar a qualquer lado, explorar livremente. Temos andado de T-shirt na coberta. — Encolhe os ombros. — O tempo não devia estar assim, mas a vida tornou‑se mais fácil para nós, marinheiros.

Penso no anglo-saxão unweder, palavra usada para descrever um tempo atmosférico tão extremo que parece ter vindo de outra região climatérica ou de outra época. A Gronelândia está a passar por uma fase de unweder.

Geo pára de tocar, pousa a guitarra e fala sem papas na língua.

— Dentro de dez anos, nem neve, nem gelo, nem caça, nem cães.

A banquisa está a tornar-se tão fina que facilita a navegação para quem vem ao país, mas torna a caça impossível para os gronelandeses. As intrincadas fases de endurecimento pelas quais o gelo marinho passa anualmente já não se completam em muitos lugares, pois a temperatura da água do mar está a ultrapassar os 1,8 °C negativos, que é o ponto de congelação do mar. Quando os homens não podem viajar em segurança por cima do gelo marinho, a caça torna-se difícil. As focas afastam-se mais da costa. Os ursos morrem, não por serem caçados, mas de fome. É perigoso atravessar enseadas e fiordes. As motos para a neve arriscam-se a afundar-se no gelo fino, arrastando os seus condutores com elas. A caça, um dos poucos aspectos da vida tradicional gronelandesa que sobreviveu à fixação das populações, corre perigo de extinção, desta feita por culpa do aquecimento global.

Mundo Subterrâneo

O gelo tem vida social. A sua mutabilidade modela a cultura, a língua e as histórias de quem vive perto dele. Em Kulusuk, as consequências das mudanças recentes são amplamente visíveis. Os habitantes desta aldeia fazem parte do precariado de um planeta volátil e em rápida mutação. O degelo, em conjunto com a fixação forçada, entre outros factores, teve efeitos graves na saúde física e mental dos gronelandeses e contribuiu para o aumento dos índices de depressão, alcoolismo e obesidade, sobretudo nas comunidades mais pequenas. «A perda dessa paisagem de gelo», escreve Andrew Solomon, que estudou os índices de depressão na Gronelândia, «não é meramente uma catástrofe ambiental, mas também cultural.» O dialeto inuktitut falado na Ilha de Baffin, no Ártico canadiano, tem uma palavra que abrange ao mesmo tempo as mudanças climáticas, as mudanças no gelo e as mudanças que tudo isto acarretou para as pessoas. A palavra é uggianaqtuq, que significa «comportamento estranho, imprevisível». Se algum povo sabe o que é viver com a imprevisibilidade do gelo, esse povo é, sem dúvida, o Inuíte, que há milénios que se vem adaptando a essas alterações.

Mais tarde, nesse mesmo dia, Helen apresenta-me a Frederick e Christina, dois dos pilares da comunidade de Kulusuk. Christina nasceu e cresceu ali e é a professora da aldeia. Frederick é do Oeste da Gronelândia, mas mudou-se para Kulusuk há vários anos para viver com Christina. São ambos profundamente cultos e autoconscientes, pouco dados a qualquer tipo de romantismo, muito cientes da estreita margem de tolerância que a vida ali possui, mas também orgulhosos da resiliência de que a ininterrupta existência de Kukusuk é prova.

— As alterações climáticas são sentidas aqui com muito impacto — diz Frederick. — Vieram para cá espécies novas e as antigas desapareceram. Às vezes, no outono, temos relâmpagos e trovões. A banquisa costumava ser tão grossa… — Faz um gesto para abarcar o espaço entre o chão e o teto da casa, uma altura de dois metros e meio. — Mas a cada ano vai ficando mais fina e na primavera passada tinha esta grossura… — Com as mãos delimita mais ou menos o comprimento de um antebraço. — É muito perigoso para os trenós puxados por cães. Caçar é mais difícil. E não podemos ir tão longe como costumávamos. — Encolhe os ombros. — É uma mudança para o nosso espírito, para além das nossas vidas.

Christina escuta-o. Entra numa divisão contígua e sai de lá com uma canoa de madeira pintada com cores garridas. Tem cerca de meio metro de comprimento e contém uma zebra, um leão, um tigre e uma girafa em fila indiana. — O nosso filho fez isto na escola — diz Christina. — Chamou-lhe o Caiaque de Noé, porque salva os animais do dilúvio do aquecimento global.

Não há seres humanos a bordo do caiaque.

O degelo é encarado por alguns como uma oportunidade, e não como uma perda. Os investidores estrangeiros foram avançando ao mesmo tempo que o gelo recuava e o acesso à fabulosa riqueza mineral da Gronelândia se tornou mais fácil. «O que o gelo revelar fará de muitos bilionários», disse-me um geólogo antes de eu ter viajado para a Gronelândia. «A mineração não tardará a chegar, e em grande, a um país onde nunca houve nada mais profundo do que uma pedreira.»

Nos últimos anos foram concedidas mais de 50 licenças de mineração na Gronelândia que permitem a exploração de ouro, rubis, diamantes, níquel e cobre, entre outros minerais. E na ponta sul da ilha, perto de uma vila com uma taxa elevada de desemprego chamada Narsaq, fica um dos maiores depósitos de urânio do mundo. Niels Bohr, o nobelizado físico atómico que trabalhou no Projeto Manhattan, visitou Narsaq em 1957, pouco depois da descoberta do depósito. Um projeto de mineração sino-australiano propõe‑se abrir uma mina a céu aberto junto a Narsaq para extrair não só urânio, mas também outros minerais raros usados em turbinas eólicas, telemóveis, automóveis híbridos e lasers.

Nesse final de tarde em Kulusuk, um pôr-do-sol demasiado garrido banha a aldeia: um fundo lilás e laranja retroilumina uma cadeia serrilhada de picos, coroada por veios incandescentes de nuvens estriadas. É uma espécie de resplendor alpino, mas com uma voltagem incrível.

— É a calota de gelo que faz estes poentes — explica Matt. — É provavelmente o maior espelho do mundo: centenas de milhares de quilómetros quadrados de gelo a refletir o sol à medida que ele desce sobre o horizonte. Caminhamos juntos por um caminho em ziguezague que sobe até ao cimo do afloramento rochoso sobre o qual a aldeia se construiu. Abeiro-me da orla oeste do afloramento para ter uma vista mais desimpedida do ocaso sobre o fiorde… E estaco.

A pequena baía por baixo de mim é a lixeira da aldeia. Milhares de sacos de lixo, uma variedade de grades de plástico, caiaques partidos, armários de melamina e frigoríficos brancos foram lançados a partir de onde me encontro. Ao lusco-fusco assemelha-se a uma língua de gelo que desliza em direção à água: um glaciar em avanço, não em retirada.

Kulusuk
Fotografia tirada a 19 de agosto de 2019 pela Agência France-Presse, não relacionada com a obra. créditos: AFP or licensors

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O gelo tem memória. Recorda ao pormenor e recorda‑se durante milhões de anos ou mais. O gelo recorda-se de fogos florestais e da subida do nível dos mares. O gelo recorda-se da composição química do ar por volta do início da última glaciação, há 110 mil anos. Recorda-se de quantos dias de sol incidiram sobre ele num verão há 50 mil anos. Recorda-se da temperatura das nuvens num dia em que nevou, no início do Holoceno. Recorda-se das erupções do Tambora em 1815, do Laki em 1783, do Monte Santa Helena em 1482 e do Kuwae em 1453. Recorda-se do auge romano da fundição de minério e recorda-se das quantidades letais de chumbo que estavam presentes na gasolina nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Recorda‑se e relata… Conta‑nos que vivemos num planeta instável, capaz de mudanças rápidas e de reviravoltas velozes.

O gelo tem memória e a cor desta memória é o azul.

Na calota de gelo, a neve cai e assenta em camadas macias conhecidas como firn. À medida que estas camadas se formam, o ar fica preso entre os flocos de neve, bem como a poeira e outras partículas. Torna a cair mais neve, que se acomoda sobre as camadas já existentes e sela o ar que estas contêm. Neva mais uma vez e mais outra. O peso da neve começa a aumentar sobre a camada inicial, comprimindo‑a e alterando a estrutura da neve. A geometria intrincada dos flocos começa a colapsar. Sob pressão, a neve agrega‑se e transforma‑se em gelo. Ao mesmo tempo que os cristais de gelo se formam, o ar encurralado é comprimido e dá lugar a minúsculas bolhas. Esta inumação é uma forma de preservação. Cada uma das bolhas de ar é um museu, um relicário prateado no qual é mantido um registo da atmosfera no momento em que a neve caiu. Inicialmente, são esféricas, mas ao mesmo tempo que o gelo se afunda e a pressão sobre ele aumenta, as bolhas são comprimi‑ das em varas compridas ou discos aplanados ou espirais.

O gelo profundo é azul, um azul sem igual em todo o mundo — o azul do tempo.

O azul do tempo entrevê-se nas profundezas das crevasses.

O azul do tempo entrevê-se nas faces de ablação dos glaciares e nos icebergues com 100 mil anos que afloram à superfície dos fiordes vindos das profundidades do mar.

O azul do tempo é tão belo que atrai corpo e mente.

O gelo regista e armazena, é um arquivo. Recolhe e conserva dados ao longo de milénios. Ao contrário dos nossos discos rígidos e de outros meios de armazenamento, que têm de manter‑se atualizados para não se tornarem obsoletos, o gelo tem sido consistente na tecnologia que usa há milhões de anos. Assim que aprendemos a interpretar o seu arquivo, é possível lê‑lo tão para trás em termos temporais — e tão para baixo, em termos espaciais — quanto o gelo alcança. As bolhas de ar encurraladas conservam pormenores acerca da composição atmosférica. O teor isotópico das moléculas de água presentes na neve regista a temperatura do ar. As impurezas na neve — o ácido sulfúrico, o peróxido de hidrogénio — revelam as erupções vulcânicas ocorridas, os níveis de poluição, de queima de biomassa ou a extensão da banquisa. Os níveis de peróxido de hidrogénio indicam a quantidade de sol que incidiu sobre a neve. Imaginar o gelo como um meio de comunicação, neste sentido, pode equivaler também a imaginá-lo como um meio de comunicação no sentido sobrenatural, como um «médium», uma presença que permite comunicar com os mortos e enterrados através de enormes períodos de tempo profundo e escutar mensagens distantes do Pleistoceno.

O gelo tem uma memória excecional, mas também sofre de perdas de memória.

O peso sobre gelo com 2000 anos de idade pode atingir meia tonelada por cada cinco centímetros quadrados. O ar contido neste gelo foi comprimido de tal maneira que núcleos de gelo extraídos a grande profundidade se fraturam e estalam quando o ar se expande. É por isso que o som produzido pelos glaciares se assemelha a disparos. É por isso que, se deitássemos um cubo de gelo azul muito antigo num copo de água ou de gelo, o copo provavelmente se partiria.

A maior profundidade ainda — em gelo com entre 8000 e 12 mil anos — a pressão torna‑se tão grande que as bolhas já não conseguem sobreviver como vazios no interior da estrutura do gelo. Desaparecem enquanto formas visíveis e combinam‑se com o gelo para dar origem a uma mistura de ar e gelo chamada clatrato. O clatrato, enquanto meio de armazenamento e de comunicação, é mais difícil de ler e as mensagens que alberga são mais vagas, mais encriptadas.

Em gelo com 1,5 quilómetros de profundidade, as camadas individuais são apenas entrevistas sob a forma de «estratos fantasmagóricos acinzentados (…) visíveis sob o feixe de uma lâmpada de fibra ótica». E uma vez que o gelo flui — porque continua a deslocar‑se mesmo sob pressões imensas —, o seu registo deforma‑se, as camadas dobram‑se e deslizam, de tal maneira que a sua sequência é quase impossível de discernir.

Nos pontos mais profundos da calota antárctica e gronelandesa, onde o gelo tem milhares de quilómetros de profundidade e centenas de milhares de anos de idade, o peso é tão grande que empurra a rocha que está sob ele contra a crosta terrestre. A essa profundidade, o gelo comprimido comporta‑se como um cobertor que retém o calor geotérmico que emana do leito de rocha. Esse gelo, o mais profundo de todos, absorve algum desse calor e derrete‑se pouco a pouco. É por isso que existem lagos de água doce a vários quilómetros abaixo da calota antártica. São mais de 500 reservatórios subglaciares, que aparecem desenhados como contornos espectrais em mapas da região e que estão enterrados há milhões de anos, tão alienígenas como os oceanos cobertos de gelo que se acredita existirem em Encélado, um dos satélites naturais de Saturno.

Da mesma maneira que a mente humana, numa fase final da vida, poderá ter dificuldade em recordar acontecimentos da juventude — enterrados como estão sob uma acumulação de memórias subsequentes — também as memórias mais antigas do gelo são mais difíceis de recuperar, e mais vulneráveis à perda.

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