i.

Sou a Ana. Fui a mulher de Jesus, filho de José de Nazaré. Chamava-lhe Meu Amado e ele, rindo-se, chamava-me Trovãozinho. Ele dizia que ouvia rumores dentro de mim enquanto eu dormia, um som como trovões muito para além do vale Nahal Tzipori, ou mesmo mais longínquos, para lá do Jordão. Não duvido de que ele ouvisse alguma coisa. Durante toda a minha vida, os desejos viveram dentro de mim, erguendo-se como noturnos para gemerem e cantarem através da noite. O facto de o meu marido inclinar o seu coração para o meu, na nossa fina esteira de palha, e escutar era a amabilidade que eu mais apreciava nele. O que ele ouvia era a minha vida a suplicar para nascer.

ii.

O meu testemunho começa no décimo quarto ano da minha vida, na noite em que a minha tia me conduziu até ao telhado plano da grande casa do meu pai, em Séforis, levando consigo um objeto arredondado embrulhado em linho.

Em outubro recebemos José Luís Peixoto

O escritor José Luís Peixoto é o convidado do próximo encontro do clube de leitura É Desta Que Leio Isto, no dia 28 de outubro, pelas 21h. Iremos conversar sobre o seu mais recente livro, Almoço de Domingo, mas também sobre outras das suas obras.

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Eu segui-a pelo escadote acima, observando o embrulho misterioso, que ela levava atado às costas como se fosse uma criança recém-nascida, incapaz de adivinhar o que escondia. Ela trauteava uma canção hebraica acerca do escadote de Jacob, e fazia-o bastante alto, fazendo-me recear que o som entrasse pelas janelas em fenda da casa e acordasse a minha mãe. Ela proibira-nos de irmos juntas para o telhado, com medo de que Ialta me enchesse a cabeça de temeridades.

Ao contrário da minha mãe, e de todas as mulheres que eu conhecia, a minha tia era instruída. A sua mente era um país imenso e selvagem que transbordava para além das suas fronteiras. Ela invadia tudo. Chegara a nossa casa, vinda de Alexandria, há quatro meses, por motivos dos quais ninguém falava. Eu nem sabia que o meu pai tinha uma irmã, até que, um dia, ela apareceu vestida com uma túnica simples e sem cor, erguendo o corpo pequeno com orgulho, de olhos brilhantes. O meu pai não a abraçou, nem a minha mãe. Deram-lhe um quarto de criada virado para o pátio superior e ignoraram as minhas perguntas. Também Ialta as evitou.

— O teu pai fez-me jurar não falar do meu passado. Ele prefere que penses que caí do céu, como caca de pássaro.

A Mãe dizia que Ialta tinha uma boca impudica. Por uma vez, estávamos de acordo. A boca da minha tia era um manancial de elocuções excitantes e imprevisíveis. Era disso que eu mais gostava nela.

Essa noite não foi a primeira vez em que nos esgueirámos para o telhado depois de anoitecer para fugirmos a ouvidos indiscretos. Junto a mim, sob as estrelas, a minha tia falou-me de raparigas judias em Alexandria que escreviam em pranchas de madeira que continham várias lâminas de cera, dispositivos que eu mal conseguia imaginar. Contou-me histórias de mulheres judias que aí viviam e lideravam sinagogas, estudavam com filósofos, escreviam poesia e possuíam casas. Rainhas egípcias. Faraós femininos. Grandes Deusas.

Se o escadote de Jacob chegava ao céu, o mesmo acontecia com o nosso.

Ialta não vivera mais de quatro décadas e meia, mas as suas mãos já estavam a tornar-se nodosas e deformadas. A pele caía-lhe em pregas sobre as faces e o seu olho direito estava tombado, como que murcho. Apesar disso, ela subia os degraus agilmente, uma aranha graciosa e trepadora. Vi-a içar-se sobre o cimo do escadote para o telhado, com a bolsa que carregava às costas a balouçar de cá para lá.

Instalámo-nos em esteiras de erva, de frente uma para a outra. Era o primeiro dia do mês de Tishri, mas as frias chuvas de outono ainda não tinham chegado. A Lua estava pousada sobre as colinas como uma pequena fogueira. O céu, sem nuvens, era negro, cheio de cinzas. O cheiro a pita e a fumo dos fogos de cozinhar pairava sobre a cidade. Eu ardia em curiosidade de saber o que ela escondia no seu embrulho, mas ela tinha o olhar perdido na distância, sem falar, e eu obriguei-me a esperar.

Os frutos da minha própria audácia estavam escondidos dentro de uma arca de cedro esculpida, a um canto do meu quarto: papiros enrolados, pergaminhos e pedaços de seda, todos cobertos da minha escrita. Havia canetas de cana, uma faca para as aguçar, uma tabuinha de madeira de cipreste, frascos de tinta, uma paleta de marfim e alguns pigmentos preciosos que o meu pai trouxera do palácio. Os pigmentos já estavam quase todos gastos, mas, no dia em que eu abrira a tampa para os mostrar a Ialta, ainda estavam luminosos.

Eu e a minha tia tínhamos ficado ali de pé, baixando os olhos para toda aquela glória, sem que nenhuma de nós falasse.

Ela estendera a mão para a arca e tirara de lá pergaminhos e rolos. Pouco tempo antes de ela chegar, eu começara a escrever as histórias das matriarcas das Escrituras. Ouvindo os rabinos, pensar-se-ia que as únicas figuras merecedoras de menção em toda a história eram Abraão, Isaac, Jacob e José… David, Saul, Salomão… Moisés, Moisés, Moisés. Quando, finalmente, consegui ler as Escrituras sozinha, descobri (surpresa!) que havia lá mulheres.

Ser-se ignorada, esquecida, é a pior tristeza de todas. Jurei registar os seus feitos e louvar os seus progressos, por muito pequenos que fossem. Seria uma cronista de histórias perdidas. Era exatamente o tipo de audácia que a Mãe desprezava.

No dia em que abri a arca perante Ialta, já tinha terminado as histórias de Eva, Sara, Rebeca, Raquel, Lia, Zilpa, Bila e Ester. Mas ainda havia tanto a escrever — Judite, Dina, Tamar, Miriam, Débora, Rute, Hanna, Batseba, Jezebel.

Tensa, quase sem fôlego, vira a minha tia estudar atentamente os meus esforços.

— É como eu pensava — disse ela, de face candente. — Foste muito abençoada por Deus.

Aquelas palavras.

Até esse momento, eu pensara que era simplesmente peculiar — um desvio da natureza. Uma inadaptada. Uma maldição. Há muito que sabia ler e escrever, e tinha capacidades invulgares para combinar palavras e fazer histórias, para decifrar línguas e textos, para captar significados ocultos, para manter ideias contraditórias na mente sem conflito.

O meu pai, Matias, que era chefe dos escribas e conselheiro do nosso tetrarca, Herodes Antipas, dizia que os meus talentos eram mais adequados a profetas e messias, a homens que abriam mares, construíam templos e conferenciavam com Deus no cimo de montanhas, ou, já agora, a qualquer homem comum e circuncidado da Galileia. Só depois de ter aprendido hebraico sozinha e de ter insistido e implorado muito é que ele me permitiu ler a Torá. Desde os oito anos que eu lhe suplicava tutores que me ensinassem, rolos para estudar, papiros para escrever e corantes para misturar e criar as minhas próprias tintas e, muitas vezes, ele fazia-me a vontade — se o fazia por respeito, fraqueza ou amor, eu não saberia dizer. As minhas aspirações embaraçavam-no. Quando não conseguia subjugá-las, encarava-as com ligeireza. Gostava de dizer que o único rapaz da família era uma rapariga.

Uma criança tão estranha como eu requeria uma explicação. O meu pai sugeriu que, enquanto Deus estava a formar-me na barriga da minha mãe, se distraíra e, por engano, me dotara com dons destinados a algum pobre rapazinho. Não sei se ele se apercebia da afronta que isto constituía a Deus, a cujos pés ele depositava o erro.

A minha mãe acreditava que a culpa era de Lilith, um demónio com as presas de uma coruja e as asas de um pássaro repugnante que procurava bebés recém-nascidos para matar, ou, no meu caso, para profanar com tendências antinaturais. Eu vim ao mundo durante uma violenta chuvada de inverno. As idosas que faziam os partos recusaram-se a sair de casa, embora o meu pai, um homem de posição elevada, as ter mandado chamar. A minha mãe, desesperada, sentara-se na cadeira de dar à luz sem ninguém que lhe atenuasse a dor ou que nos protegesse de Lilith com as devidas orações e amuletos, por isso foi a sua criada Shipra que teve de me dar banho em vinho, água, sal e azeite, de me embrulhar em faixas a fazer de fraldas e de me enfiar num berço, onde Lilith poderia encontrar-me.

As histórias dos meus pais entranharam-se-me na carne e nos ossos. Não me ocorrera que as minhas capacidades tivessem sido intencionais, que Deus tivesse querido conceder-me essas bênçãos. À Ana, uma rapariga com caracóis negros desordenados e olhos da cor de nuvens de chuva.

As vozes flutuavam, vindas de telhados próximos. O choro de um bebé, uma cabra a balir. Finalmente, Ialta estendeu a mão para trás de si, para o embrulho, e abriu o pano de linho. Retirou lentamente as várias camadas, de olhos acesos, deitando-me olhares rápidos.

Ergueu o conteúdo. Uma taça de calcário, brilhante e redonda, uma lua cheia perfeita.

— Trouxe-a comigo de Alexandria. Quero que fiques com ela.

Quando a colocou nas minhas mãos, um estremecimento sacudiu-me o corpo. Passei as palmas das mãos pela superfície macia, a abertura larga, as volutas leitosas na pedra.

— Sabes o que é uma taça de encantamento? — perguntou ela. Abanei a cabeça. Só sabia que devia ser alguma coisa de grande magnitude, alguma coisa demasiado perigosa ou maravilhosa para ser mostrada em qualquer outro sítio que não no telhado, às escuras.

— Em Alexandria, as mulheres rezam com elas. Escrevemos a nossa oração mais secreta dentro delas. Assim. — Colocou um dedo dentro da taça e moveu-o numa linha em espiral em volta das faces interiores. — Todos os dias, cantamos a oração. Ao fazê-lo, viramos a taça em círculos lentos e as palavras ganham vida e saltam para o céu.

Eu fixei o objeto, incapaz de falar. Uma coisa tão resplandecente, tão repleta de poderes escondidos.

Ela disse:

— No fundo da taça, desenhamos uma imagem de nós mesmas, para nos certificarmos de que Deus sabe a quem pertence o pedido.

A minha boca entreabriu-se. Com certeza ela sabia que nenhum judeu devoto olharia para figuras em forma humana ou animal, e muito menos as criaria. O segundo mandamento proibia-o: Não criarás uma imagem de nada que viva no céu, nem na terra, nem no mar.

— Tens de escrever a tua oração na taça — disse-me a minha tia. — Mas tem cuidado com o que pedes, pois irás, certamente, recebê-lo.

Eu olhei para a concavidade do recipiente e, por um momento, este pareceu-me um firmamento em si mesmo, a cúpula estrelada virada ao contrário.

Quando ergui o olhar, os olhos de Ialta estavam fixos em mim. Ela disse:

— O santíssimo lugar de um homem contém as leis de Deus, mas dentro do de uma mulher existem outros desejos. — Depois, deu umas palmadinhas no osso liso sobre o meu coração e disse as instruções que fizeram alguma coisa incendiar-se-me no peito: — Escreve o que está aqui dentro, no teu santíssimo lugar.

Erguendo a mão, toquei no osso a que a minha tia acabara de dar vida, pestanejando furiosamente para conter um tumulto de emoções.

O nosso único Deus verdadeiro vivia no Santíssimo Lugar, no Templo de Jerusalém, e eu estava certa de que era um sacrilégio dizer que existia um local semelhante dentro dos seres humanos, e pior ainda sugerir que os desejos sentidos por raparigas como eu tinham algo de divino. Era a blasfémia mais bela e perversa que eu já ouvira. Nessa noite, não consegui dormir devido ao êxtase que me causou.

A minha cama era soerguida do chão por pernas de bronze, estava envolta em almofadas tingidas de carmim e amarelo e tinha um enchimento de palha prensada, penas, coentros e hortelã, e eu fiquei ali, deitada naquele leito fofo e envolta por aqueles aromas, muito para além da meia-noite, elaborando mentalmente a minha oração, esforçando-me por reduzir em palavras a vastidão do que sentia.

Acordei antes de amanhecer, e esgueirei-me pela varanda que encimava o piso térreo, movendo-me, descalça, sem um candeeiro, passando furtivamente pelos quartos onde a minha família dormia. Desci os degraus de pedra. Atravessei o pórtico do átrio de entrada. Cruzei o pátio superior, medindo os passos como se estivesse a caminhar sobre pedras, com medo de acordar os criados que dormiam ali perto.

O mikvá onde nos banhávamos para cumprirmos as regras de pureza ficava dentro de um quarto húmido por baixo da casa, e só era acessível através do pátio inferior. Desci, tateando o caminho ao longo da parede das escadas. Quando o pingar da água na conduta se avolumou e a escuridão se atenuou, distingui os contornos do tanque. Eu gostava de fazer as minhas abluções rituais às escuras — ia ao mikvá desde que sangrara pela primeira vez, como exigido pela nossa religião, mas fazia-o à noite, sozinha, pois ainda não confessara à minha mãe que já era mulher. Há já vários meses que enterrava os meus trapos no jardim das ervas medicinais.

Contudo, desta vez, não fora ao mikvá por razões femininas, mas para me preparar para fazer as inscrições na minha taça. Para escrever uma oração — o que era um ato sério e sagrado. Era o ato de escrever poderes evocados, muitas vezes divinos, mas por vezes instáveis, que entravam nas letras e soltavam uma força misteriosa e estimulante que percorria a tinta em ondas. Não era verdade que uma bênção gravada num talismã protegia um recém-nascido e uma inscrição contra maldições protegia sepulturas?

Despi a túnica e fiquei de pé, nua, no degrau de cima, embora fosse costume entrar de roupa interior. Queria estar nua. Não queria que houvesse nada entre mim e a água. Apelei a Deus para que me purificasse, para que eu pudesse escrever a minha oração com retidão de mente e coração. Depois, entrei no mikvá. Contorci-me por baixo de água como um peixe e voltei à tona, ofegante.

De volta ao meu quarto, vesti-me com uma túnica lavada. Peguei na taça de encantamento e nos meus utensílios de escrita e acendi os candeeiros de azeite. O dia estava a nascer. Uma luz azul e difusa enchia o quarto. O meu coração era um copo a transbordar.

Livro da Saudade

iii.

Sentada no chão, de pernas cruzadas, desenhei pequenas letras no interior da taça com uma caneta de cana acabada de afiar e tinta preta que eu mesma misturara, com cinzas do forno, seiva de árvores e água. Procurara durante um ano a melhor combinação de ingredientes, o tempo exato necessário para cozer a lenha, a goma vegetal certa para impedir que a tinta coalhasse, e ali estava ela, aderindo ao calcário sem escorrer nem borrar, brilhando como ónix. O aroma acre e a fumo da tinta enchia o quarto, fazendo-me arder as narinas e trazendo-me lágrimas aos olhos. Inspirei-a como se fosse incenso.

Havia muitas orações secretas que eu poderia ter escrito. Viajar até ao lugar no Egito que a minha tia libertara na minha imaginação. Que o meu irmão voltasse para casa, para nós. Que Ialta continuasse comigo todos os dias da minha vida. Casar, um dia, com um homem que me amasse por quem eu era. Em vez disso, escrevi a oração que trazia no fundo do coração. Desenhei cada letra em grego com movimentos lentos e reverenciais, como se as minhas mãos estivessem a construir pequenos templos de tinta onde Deus fosse habitar. Escrever dentro da taça era mais difícil do que eu imaginara, mas persisti, acrescentando floreados que eram apenas meus — finos traços para cima, grossos traços para baixo, espirais e chaveirões no final das frases, pontos e anéis entre as palavras.

Lá fora, no pátio, ouvia o nosso criado, Lavi, de 16 anos, a esmagar azeitonas, fazendo ecoar a moagem rítmica da mó pelo chão de pedra, e, quando esse ruído cessou, uma pomba no telhado, oferecendo ao mundo o seu pequeno som. Aquele pássaro encorajou-me.

O Sol nasceu e o céu empalideceu, passando de dourado rosado a dourado esbranquiçado. Dentro de casa, nada se movia. Ialta raramente acordava antes do meio-dia, mas, àquela hora, Shipra já devia ter trazido pão frito e um prato de figos. A Mãe já devia ter aparecido no meu quarto, ansiosa por me dar ordens. Teria franzido o sobrolho ao ver as minhas tintas, ter-me-ia repreendido por ter aceitado um presente tão ousado e teria culpado Ialta por mo ter dado sem a sua autorização. Eu não fazia ideia do que teria atrasado a sua ronda diária de opressão.

Tendo quase terminado a minha oração, pus-me à escuta da minha mãe e do regresso do meu irmão, Judas. Há vários dias que ninguém o via. Com 20 anos, tinha o dever de assentar e arranjar uma noiva, mas preferia enlouquecer o Pai confraternizando com os radicais que se agitavam contra Roma. não era a primeira vez que desaparecia com os zelotas, mas nunca durante tanto tempo. Todas as manhãs, eu esperava ouvi-lo atravessar pesadamente o vestíbulo, esfomeado e exausto, contrito pela preocupação que nos causara. No entanto, Judas nunca se mostrava contrito. E, desta vez, era diferente — todos o sabíamos, mas não o dizíamos. A Mãe temia, tal como eu, que ele se tivesse, finalmente, juntado a Simão, filho de Gioras, o fanático mais inflamado de todos eles, para sempre. Dizia-se que os seus homens caíam sobre pequenos grupos dos mercenários de Herodes Antipas e dos soldados romanos do General Varus e lhes cortavam o pescoço. Também atacavam viajantes ricos na estrada para Canaã, roubando-lhes o dinheiro para dar aos pobres, mas deixando-lhes os pescoços intactos.

Judas era meu irmão adotivo, filho do primo da minha mãe, mas era mais próximo de mim em mentalidade do que os meus pais. Percebendo como eu me sentira isolada e solitária enquanto crescia, levara-me muitas vezes consigo para vaguear pelas colinas em socalcos fora da cidade; trepávamos juntos aos muros de pedra que separavam os campos, surpreendendo as raparigas que guardavam as ovelhas e colhendo uvas e azeitonas à nossa passagem. As encostas estavam crivadas de grutas como favos de mel em colmeias, e nós explorávamo-las, gritando os nossos nomes para as aberturas largas e ouvindo a voz que no-los repetia.

Livro: “O Livro da Saudade”

Autor: Sue Monk Kidd

Editora: Chá das Cinco

Data de lançamento: 14 de outubro

Preço: 16,93€

Era inevitável que eu e Judas encontrássemos o caminho para o aqueduto romano que trazia água para a cidade, e aí tornámos um ritual nosso atirar pedras às colunas que separavam os arcos. Foi enquanto estávamos à sombra dessa gigantesca maravilha romana — ele com 16 anos e eu com 10 — que Judas me falou, pela primeira vez, da revolta em Séforis que lhe levara os pais. Soldados romanos tinham cercado 2000 rebeldes, incluindo o pai dele, e haviam-nos crucificado, alinhando as cruzes à beira das estradas. A sua mãe fora vendida como escrava, juntamente com o resto dos habitantes da cidade. Judas, com apenas dois anos, encontrou refúgio em Canaã até os meus pais o irem buscar.

Adotaram-no por meio de um contrato legal, mas Judas nunca pertenceu ao meu pai, apenas à minha mãe. Tal como qualquer judeu temente a Deus, o meu irmão desprezava Herodes Antipas devido à sua conivência com Roma, e revoltava-o que o nosso pai se tivesse tornado o conselheiro mais próximo de Antipas. Os galileus estavam há muito a conspirar uma rebelião e à procura de um messias que os libertasse de Roma, e cabia ao Pai aconselhar Antipas sobre como pacificá-los, mantendo, ao mesmo tempo, a sua lealdade para com o opressor. Era uma tarefa ingrata para qualquer pessoa, mas especialmente para o nosso pai, cuja inclinação judaica ia e vinha como as chuvas. Respeitava o Sabat, mas com pouca firmeza. Ia à sinagoga, mas saía antes de o rabino ler a Escritura. Fazia as longas peregrinações a Jerusalém na Páscoa e no Sucot, mas com receio. Cumpria as leis alimentares, mas só entrava no mikvá se encontrasse um cadáver ou uma pessoa com uma erupção cutânea, ou se se sentasse numa cadeira da qual a minha mãe, enquanto menstruada, tivesse acabado de se levantar.

A segurança dele preocupava-me. Nessa manhã, partiu para o palácio acompanhado de dois dos soldados de Herodes Antipas, mercenários idumeus cujos capacetes e gládios cintilavam à luz do Sol. Estes acompanhavam-no desde a semana anterior, quando um dos zelotas de Simão, filho de Gioras, lhe cuspira em cima, na rua. Esse insulto provocou uma discussão azeda entre o Pai e Judas, uma tempestade de gritos que varreu a casa, do vestíbulo aos quartos do andar de cima. O meu irmão desapareceu nessa mesma noite.

Entretida com estes pensamentos ansiosos sobre a Mãe, o Pai e Judas, pus tinta a mais na caneta, que pingou para dentro da taça, deixando-lhe um pingo negro de tinta no fundo. Olhei para o pingo, horrorizada.

Com cuidado, dei umas pancadinhas na tinta com um pano de limpeza, o que deixou um borrão cinzento e feio. Só piorara as coisas. Fechei os olhos para me acalmar. Finalmente, reconcentrando-me na oração, escrevi as últimas palavras com toda a atenção.

Abanei um molho de penas sobre a tinta, para acelerar a secagem. Depois, como Ialta me dissera para fazer, desenhei a figura de uma rapariga no fundo da taça. Fi-la alta, com pernas longas, um corpo magro, seios pequenos, rosto oval, grandes olhos, cabelos como silvas, sobrancelhas espessas e a boca em forma de uva. Tinha os braços erguidos, suplicando por favor, por favor. Qualquer pessoa perceberia que aquela rapariga era eu.

A mancha da tinta que caíra pairava sobre a cabeça da rapariga como uma pequena nuvem escura. Franzi o sobrolho ao vê-la, dizendo a mim própria que não significava nada. Não era um presságio. Apenas uma falha de concentração, mas não conseguia evitar sentir-me perturbada. Desenhei uma pomba sobre a cabeça da rapariga, logo abaixo do borrão. As suas asas arqueavam-se por cima dela como um templo portátil.

Levantando-me, levei a taça de encantamento até à pequena janela alta, onde caíam raios de luz. Rodei a taça num círculo completo, vendo as palavras mover-se lá dentro, ondeando em direção à borda.

Senhor nosso Deus, ouve a minha oração, a oração do meu coração.

Abençoa a grandeza dentro de mim, por muito que eu a tema.

Abençoa as minhas canetas de cana e as minhas tintas.

Abençoa as palavras que escrevo. Que sejam belas aos teus olhos. Que sejam visíveis a olhos ainda não nascidos. Quando eu for pó, canta estas palavras sobre os meus ossos: ela era uma voz.

Olhei para a oração, a rapariga e a pomba, e uma sensação ergueu-se-me no peito, uma pequena exultação, como um bando de aves a levantar voo das árvores, todas ao mesmo tempo.

Desejei que Deus reparasse no que eu fizera e que a sua voz me chegasse, vinda de um turbilhão. Desejei que ele dissesse: Ana, eu vejo-te. Como é agradável a tua visão. Mas só havia silêncio.

Foi enquanto me ocupava a guardar os utensílios de escrita que o segundo mandamento me surgiu na mente, como se Deus tivesse, afinal, falado, mas não dizendo o que eu queria ouvir. Não criarás uma imagem de nada que viva no céu, nem na terra, nem no mar. Dizia-se que fora o próprio Deus a escrever aquelas palavras numa placa de pedra e a dera a Moisés. Eu não conseguia acreditar que ele quisesse mesmo que chegássemos a um tal extremo, mas o mandamento fora interpretado à letra, como uma forma de manter Israel pura e separada de Roma. Tornara-se uma prova de lealdade. Fiquei muito quieta. Senti o frio trespassar-me. Já houve pessoas apedrejadas até à morte por criarem imagens mais rudimentares do que a que desenhei. Deixando-me cair no chão, apoiei as costas na robustez da arca de cedro. Na noite anterior, quando a minha tia me dissera para desenhar uma imagem de mim mesma na taça, a advertência contra imagens atormentara-me por alguns momentos, mas eu ignorara-a, cega pela sua autoconfiança. Agora, o meu menosprezo das consequências enfraquecia-me.

Não estava preocupada com a possibilidade de ser apedrejada — as coisas nunca iriam tão longe. Havia apedrejamentos na Galileia, até em Séforis, mas não ali, na casa simpatizante dos gregos do meu pai, onde o que importava não era cumprir as regras judaicas, mas manter a aparência de as cumprir. Não, o que eu sentia era medo de que, se a minha imagem fosse descoberta, a taça fosse destruída. Temia que o precioso conteúdo da minha arca fosse levado, que o meu pai desse, finalmente, ouvidos à minha mãe e me proibisse de escrever. Que descarregasse a sua fúria sobre Ialta, talvez até mandando-a embora.

Pressionei as mãos contra o peito como que a fazer-me voltar a ser a pessoa que era na noite anterior. Onde estava o eu que compunha uma oração que as raparigas não ousavam rezar? Onde estava o eu que entrava no mikvá? Que acendia os candeeiros? Que acreditava?

Eu registara as histórias que a minha tia me contara de raparigas e mulheres em Alexandria, com medo de que também essas se perdessem, e agora remexia nos meus rolos até as encontrar. Alisei-as e li-as. Elas deram-me coragem.

Procurei um pedaço de linho entre os meus panos de limpeza. Tapando a taça com ele, disfarcei-a de penico e escondi-a debaixo da cama. A minha mãe nunca se aproximaria dela. Era com a sua espia, Shipra, que devia preocupar-me.

iv.

O nome da minha mãe, Hadar, significa esplendor, e ela esforçava-se para lhe fazer jus. Entrou no quarto envergando uma túnica cor de esmeralda e o seu melhor colar de cornalina, seguida por Shipra, carregada com uma pilha de roupas exuberantes e uma coleção de bolsas contendo joias, pentes e pinturas para os olhos. Equilibrado no cimo da pilha estava um par de sandálias cor de mel com pequenos sinos cosidos às tiras. Até Shipra, uma criada, trazia o seu melhor casaco e uma pulseira de osso gravado.

— Vamos sair daqui a pouco para o mercado — anunciou a Mãe —, e tu vens connosco.

Se não tivesse chegado com uma missão tão urgente, talvez tivesse reparado no olhar que deitei à taça debaixo da cama e se tivesse admirado com o meu fascínio por aquele objeto. Mas a sua curiosidade não foi despertada, e fiquei tão aliviada que, a princípio, não questionei a irracionalidade de vestir roupas tão finas para ir ao mercado.

Shipra tirou-me a túnica e substituiu-a por outra de linho branco, profusamente bordada com fio de prata. Envolveu-me as ancas com uma faixa índigo, calçou-me as sandálias musicais e mandou-me ficar quieta enquanto clareava o meu rosto moreno com giz e farinha de cevada. O seu hálito cheirava a lentilhas e alho-francês e, quando me virei de costas para ela, beliscou-me o lóbulo da orelha. Bati o pé, desencadeando uma saraivada de toques de sinos.

— Está quieta; não podemos atrasar-nos — disse a Mãe, estendendo a Shipra um lápis de kohl e ficando a vê-la delinear-me os olhos, e depois esfregar-me óleo nas mãos.

Eu não consegui conter-me mais tempo.

— Temos de nos vestir tão bem para ir ao mercado?

As duas mulheres trocaram um olhar. Um rubor nasceu por baixo do queixo da Mãe e espalhou-se-lhe pelo pescoço, como acontecia muitas vezes quando ela era dissimulada. Ignorou-me.

Disse para mim mesma que não havia motivo para me sentir desconfortável. Os cortejos sumptuosos da Mãe não eram invulgares, embora, geralmente, se limitassem aos banquetes que ela organizava para os mecenas do Pai no salão de receções — extravagâncias de cordeiro assado, figos com mel, azeitonas, húmus, pão ázimo, vinho, candeeiros de azeite brilhantes, músicos, acrobatas e um mago leitor de sinas. As suas exibições nunca incluíam caminhadas ostentatórias até ao mercado.

Pobre Mãe. Parecia ter sempre necessidade de provar alguma coisa, embora eu nunca tivesse sabido exatamente o quê, até à chegada de Ialta. Durante uma das nossas conversas no telhado, a minha tia revelara que o pai da minha mãe sobrevivera como um pobre mercador, vendendo tecidos em Jerusalém, que nem sequer eram de grande qualidade. No entanto, o Pai e Ialta descendiam de uma linhagem nobre de judeus de Alexandria que falavam grego e tinham ligações às autoridades romanas. Naturalmente, arranjar um casamento entre duas famílias com um abismo destes a separá-las teria sido impossível, a menos que a noiva fosse extraordinariamente bela ou o noivo tivesse algum defeito físico. De facto, o rosto da Mãe era inigualável e o fémur da perna esquerda do Pai era mais curto do que o da direita, o que o fazia coxear levemente.

Perceber que as exibições de grandeza da minha mãe não eram motivadas apenas por presunção, mas constituíam uma tentativa de compensar a sua condição inferior, fora um alívio. Fazia-me ter pena dela.

Shipra prendeu-me o cabelo com fitas e fixou-me à testa uma faixa ornada com moedas de prata. Embrulhou-me numa capa de lã sufocante tingida de escarlate, e não com alizari barato, mas com o vermelho-vivo dos insetos fêmeas. Como tormento final, a Mãe deixou cair um jugo de contas de lazulite em volta do meu pescoço.

— O teu pai vai ficar satisfeito disse ela.

— O Pai? Ele também vem?

Ela assentiu com a cabeça, puxando um casaco cor de açafrão sobre os ombros e lançando a capa por cima da touca.

Quando é que o Pai alguma vez fora ao mercado?

Eu não compreendia o que se passava, apenas que tudo parecia centrar-se em mim, e isso pareceu-me um mau presságio. Se Judas estivesse ali, defender-me-ia; ele defendia-me sempre. Insistia que a Mãe me dispensasse do fuso, do tear e da lira para poder concentrar-me nos estudos. Fazia as minhas perguntas ao rabino quando eu não era autorizada a falar na sinagoga. Agora, desejava a presença dele de todo o coração.

— E o Judas? — perguntei. — Já voltou?

A Mãe abanou a cabeça e desviou o olhar de mim.

Ele sempre fora o preferido dela, o único alvo da sua adoração. Eu queria acreditar que era por lhe ter conferido o estatuto que advinha de ter um filho, ou porque, em criança, ele era perturbado e atormentado, e precisava de mais atenção. E, afinal, Judas era bonito e afável, e tinha em igual medida princípios e simpatia, a mais rara das combinações, enquanto eu era voluntariosa, impulsiva, cheia de estranhas esperanças e de uma rebeldia egoísta. Deve ter-lhe sido muito difícil amar-me.

— E a Ialta? — perguntei, desesperada por um aliado.

— A Ialta… — Ela cuspiu a palavra. — A Ialta ficará aqui.