CAPÍTULO 18 — Meu louco mês de novembro

As ideologias – ou o que se tirava delas – eram tantas que tudo se conjuga para que novembro se transforme em ponto de rutura. Uns queriam o poder para os militares, outros para os comunistas, outros para as comissões de trabalhadores, outros para os do antigo regime, outros para os católicos, outros para o povo, outros para o MFA, outros para a revolução popular.

Se o Verão Quente tinha sido incendiado com ocupações, prisões arbitrárias e fogo posto a sedes partidárias, o mês de novembro parecia apostado em imolar-se à vista de todos.

Logo no dia 2, há rebentamento de bombas na Madeira, em Lisboa e em Chaves, contra sedes de partidos de esquerda. Não fazem vítimas, mas dão o mote para o ambiente de perigo iminente, viesse de que lado viesse. No dia seguinte, os jornais noticiam manobras militares em vários pontos do país e falam de um golpe de Estado em preparação pela direita.

É nesta via de extremos que a RTP emite, a 6 de novembro, o célebre debate entre Álvaro Cunhal e Mário Soares, durante 3 horas e 40 minutos. Perante as câmaras, o comunista acusado por Soares de querer instaurar em Portugal uma ditadura de partido único, responde: “Olhe que não, Doutor, olhe que não!”

Uma tirada que, embora famosa, será difícil de medir fora do contexto. O líder socialista tinha começado por argumentar: “Existem imensos exemplos históricos, que são conhecidos. E o senhor doutor não me vai obrigar a falar do que se passa nos países que mais ou menos inspiram o PC para se ver que aí não existem liberdades, nenhumas liberdades.” Em vez de demonstrar porque o adversário estava errado, o dirigente comunista limita-se ao famoso “olhe que não, doutor, olhe que não!”

"É Desta Que Leio Isto"

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Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

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Cunhal torneia um convicto “não” a Soares porque a sua convicção era, de facto, outra. Basta recordar a resposta que havia dado à jornalista italiana Oriana Fallaci, poucos meses antes, em junho de 1975, sobre a construção de uma democracia europeia de tipo ocidental no país: “Nunca haverá em Portugal um regime parlamentar burguês.” Para Cunhal, que assume ter sido “sempre um revolucionário profissional”, a instauração de uma democracia desse tipo era “uma ilusão”. A jornalista escreve mesmo que o homem com mais influência sobre os militares, apesar de ter perdido as eleições, “não acredita na liberdade”. Dizendo, segundo Fallaci, “simplesmente o que pensa com uma candura feroz”, o líder comunista está convencido de que “em Portugal não há qualquer hipótese de uma democracia como as da Europa Ocidental”1. A afirmação seria desmentida pelo PCP, mas Oriana Fallaci não só reafirmou o que publicara, como se oferece para mostrar a gravação, o que o Comité Central nunca permitirá.

Anos mais tarde, Soares há de interpretar a reação do opositor com o excesso de confiança ganho com o mito que o envolvia. Recusando apoios técnicos e assessorias teóricas, o socialista prefere dormir bem antes do debate. Mas uma coisa via como clara: o líder comunista não tinha aceitado os resultados e era preciso dizer-lhe tudo. “Havia uma atitude reverencial em relação a Cunhal. Eu tinha de lhe mostrar que comigo não era assim. Foi para ali a querer mostrar que era um bom rapaz e foi isso que o lixou.”2

O frente a frente naquele início de novembro de 1975 marca o ambiente vivido em todo o país. No próprio dia registam-se dois mortos em Santarém devido a confrontos entre trabalhadores rurais e proprietários.3

Menos de 24 horas depois do programa protagonizado pelos líderes comunista e socialista, a vítima seguinte seria a Rádio Renascença, que vê os seus emissores destruídos à bomba enquanto as instalações são ocupadas por trabalhadores apoiantes da extrema-esquerda. Governo e Conselho da Revolução devolvem a tutela da emissora católica aos donos, mas o episódio choca o país.

Apenas três dias volvidos sobre o debate entre o comunista e o socialista, a nove, dá-se nova relíquia mediática, durante a manifestação de apoio ao VI Governo, em Lisboa, onde Pinheiro de Azevedo, ladeado por Mário Soares e Sá Carneiro, numa tentativa de demonstrar a união entre os vários partidos na construção da democracia, discursa: “Custe o que custar, as armas têm de regressar aos quartéis.” No seguimento destas palavras do primeiro-ministro, proferidas de uma varanda, no Terreiro do Paço, são lançados petardos. “Caem na praça granadas de fumo, o que cria pânico entre os manifestantes. A Polícia Militar vê pistolas e o meu pessoal, quando se sente ameaçado dispara para o ar.”4

Pior um pouco: gera-se o caos entre os manifestantes.

Em resposta às granadas de fumo lançadas pela Polícia Militar, mas que aos civis pareceram bombas, informado pela comitiva de Soares de que se tratava apenas de fumo, Pinheiro de Azevedo grita da varanda para a multidão, já rodeada de bandeiras incendiadas: “Não tem perigo. O povo é sereno! É apenas fumaça! É apenas fumaça!”5

Protegendo-se com lenços na boca, Soares e Sá Carneiro mantêm-se junto ao almirante que tenta convencer os manifestantes: “Ninguém arreda pé!” Mas o ambiente era já demasiado tenso e Pinheiro de Azevedo apressa o encerramento do evento, com palavras de esperança, talvez mais premonitórias do que poderia imaginar: “Portugal e a revolução hão de encontrar o seu caminho.”

Antes de um fecho patriótico ao som do Hino Nacional, dão-se vivas ao socialismo, a que tanto Soares como Sá Carneiro respondem com dedos de vitória e um entusiástico: “Viva!”

Faltavam apenas dois dias para a declaração de independência de Angola, bastião fundamental do colonialismo. A 11 de novembro, o Diário de Notícias titula “Angola Independente”, mas o Jornal Novo prefere um “Saímos de África”, publicando o texto crítico de um Portugal “envergonhado e discreto”, que abandona o território de “bandeira debaixo do braço”.6

Antes de vermos como se vão equilibrar os pesos e as medidas, precisamos de uma breve viagem ao interior da Assembleia Constituinte. Embora tenha sido pouco relatada pelos jornais de então, a atividade no Parlamento era um espelho do Portugal de 1975. Tudo tinha mudado de um dia para o outro. Mas era preciso fazer uma constituição no meio de uma revolução.

Alguns estavam na “assembleia dos doutores”7 com o objetivo de se baterem pela sua dissolução. A ala militar apoiante da extrema-esquerda contestava as funções da Constituinte e defendia que a participação popular não se esgotava em atos eleitorais. Até dentro da casa da democracia havia quem defendesse que aquele não era o lugar dela. Ou seja, ninguém se entendia.

No dia seguinte, a 12 de novembro, os trabalhadores da construção civil marcham sobre Lisboa para a manifestação que vai contribuir para tornar inevitável o 25 de Novembro. O protesto redunda num parlamento sitiado, com duzentos deputados e dezenas de funcionários do Parlamento reféns, num dos momentos mais dramáticos da transição democrática, que ficaria conhecido por Cerco à Constituinte.

Na sequência de tão bizarro protesto (só dali a 46 anos se daria a invasão do Capitólio, nos EUA, que tanto chocou o mundo), regista-se novo evento inédito: a decisão de serem os governantes – e não os trabalhadores – a entrarem em greve.

O Cerco à Constituinte foi uma espécie de Pêndulo de Foucault que deixou o país entre um passado que já não queria e um presente que não traduzia a revolução, só parecendo satisfazer a sua rotação nos polos.

Sabia-se que os trabalhadores da construção civil tinham anunciado greve e sabia-se que alguns partidos, nomeadamente o PCP, estavam empenhados em gritar os seus pontos de vista a quem liderava as instituições políticas. Por isso, ninguém estranhou – por essa altura as manifestações junto à Assembleia eram constantes – nem imaginou que uma reivindicação por melhores condições de trabalho acabasse com mais de duas centenas de deputados feitos reféns e um parlamento sitiado.

Estava-se a 12 de novembro de 1975 e o país nunca se vira tão perto da guerra civil.

Embora o protesto fosse essencialmente laboral na sua génese, foi facilmente engolido por um contexto político em que era preciso lidar constantemente com manobras revolucionárias que punham em causa a existência da Assembleia. Uma dessas tentativas vem do Documento-Guia, elaborado por militares gonçalvistas e outros próximos da extrema-esquerda, com o objetivo de “cimentar o poder popular e a aliança entre as massas e os militares”, com vista a uma Assembleia Popular Nacional, já que os partidos seriam “anulados”. Preconizavam-se assembleias populares. Punha-se em causa a existência da Constituinte, e com isso o sistema parlamentar representativo.8

Dos cinco políticos protagonistas deste livro, o único no Palácio de São Bento no momento da invasão dos trabalhadores era Mário Soares, que abandonara os governos provisórios em agosto de 1975, em rutura com o primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, e passara a assegurar o lugar de deputado do Partido Socialista à Constituinte a 16 de outubro de 1975.

No dia do cerco, o líder socialista fazia o seu primeiro discurso depois de retomar as funções parlamentares quando recebe um papelinho escrito por Jaime Gama: “Acabe o mais depressa possível, o parlamento está quase cercado.” Munido das suas melhores qualidades políticas, sempre à escuta da intuição e das fontes no terreno, neste caso Jaime Gama, que o alertara para a onda de gente que se prepara para engolir o edifício do Parlamento, Soares desabafa: “Está tudo louco!”9

Improvisa um desfecho antecipado para a intervenção no hemiciclo, mas antes de deixar o palácio avalia a situação a partir da janela do salão nobre, acompanhado por Manuel Alegre e Jaime Gama. De facto, concluiu, os manifestantes estavam prestes a cercar o edifício.

Decide, por isso, deixar a Assembleia mesmo antes da ocupação. Avaliadas as possibilidades de fuga, o melhor seria sair pela passagem que para a residência oficial do primeiro-ministro. Corre com Manuel Alegre, passa o jardim das traseiras, sobe à residência de São Bento e sai pelo portão do palácio. O trajeto escolhido permite-lhe verificar como os manifestantes já se preparavam para entrar na Rua da Imprensa Nacional. Apanha o primeiro táxi que passar e dirige-se para a sede do partido, na Rua da Emenda.10

Fora da casa parlamentar, toma-se do dever de estancar aquilo. Telefona. Apela. Alerta. Primeiro, Pinheiro de Azevedo, com quem fala pelo telefone. Inicialmente tranquilo, diz a Soares que tinha chamado os fuzileiros e outras unidades. Tudo se resolveria. Mas ao verificar que ninguém aparece, é o primeiro-ministro quem abandona a calma inicial. Sem forças suficientes para reagir, o presidente da República, também se sente paralisado.

Estariam a cercar a assembleia, eleita em abril do mesmo ano, cerca de 100 mil dos 500 mil trabalhadores da construção civil que Portugal registava em 1975. Eram muitos, mas, sobretudo, estavam fartos de dormir pouco mais do que ao relento em barracas de pau feitas com restos das obras, cozinhar em fogareiros, fazer da rua instalações sanitárias. Queriam ser ouvidos. Não foram. Queriam ter a atenção que um regime sem Salazares ou Caetanos salazarentos lhes tinha prometido. Não tiveram.

E é assim que entre o dia 12 e 13 de novembro de 1975, o país assiste a um extremo que até para aqueles tempos era em demasia: uma assembleia inteira sequestrada, com trabalhadores a tomarem de assalto o órgão legislativo. Durante a noite, há deputados resgatados de ambulância, parlamentares alimentados a fatias de fiambre (os únicos víveres disponíveis antes de se acabarem os mantimentos, pelas oito da noite) e outros a gritarem que os matavam à fome depois de verem esgotar-se a comida no bar da Assembleia. Lá fora gritava-se “Só saímos daqui quando o Governo cair!”11 Os extremistas tentavam o “assalto ao poder”.12 Afinal, tinha sido “sequestrada a Assembleia eleita pelo povo”, com trabalhadores da construção civil a exigir aumentos salariais de 60 por cento.13

Manifestantes e militares do COPCON, liderado por Otelo Saraiva de Carvalho, impediam deputados e funcionários de abandonar o palácio, obrigando os parlamentares que não fossem do PCP ou da extrema-esquerda, os únicos que conseguiam sair e entrar conforme queriam, a dormirem debruçados sobre as bancadas parlamentares.

O cativeiro dos deputados saídos do 25 de Abril dura 36 horas.

Dentro de portas, Raul Rego, diretor do jornal A Luta, que participava como deputado nos trabalhos da Constituinte, faz uma crónica telefonada de São Bento, queixando-se de que não se alimentam há 22 horas, enquanto os “privilegiados do PCP” comem a bel-prazer. O palácio, equiparava, estava transformado em novo Aljube, “diante da impávida serenidade de todos esses chefes que têm a democracia na boca e os processos fascistas no coração”.14 Lá fora, o jornal britânico The Guardian antecipa perigos de guerra civil: “Este poderá ser o último governo de moderação possível em Portugal.”

Os trabalhadores da construção, vindos de autocarro de vários pontos do país, sobretudo do Alentejo, traziam mais de 24 horas de luta aos deputados, senhores do poder mais à mão, já que o ministro do Trabalho, João Pedro Rosa, se tinha recusado a recebê-los. Aqui chegados, não estavam dispostos a deixar acercar-se quem tivesse por objetivo retirar ou melhorar as circunstâncias a algum dos sequestrados.

Os Cinco Homens Que Mudaram Portugal
créditos: Dom Quixote

Livro: Os Cinco Homens Que Mudaram Portugal - Biografias Cruzadas: Do Berço à Democracia

Autor: Isabel Nery

Editora: Dom Quixote

Publicação: 28 de junho

Preço: 19,71 €

O Governo, apoiado pelo presidente da República, declara tratar-se de um “meio intolerável de pressão”. Depois de várias tentativas de negociação infrutíferas, Pinheiro de Azevedo, pressionado por Costa Gomes e por militares moderados, entende que está na altura de acabar com aquilo, chamando os manifestantes à razão. Eram já nove da noite. A tabela salarial tinha até sido aceite, mas faltava uma portaria. Pouco dado a subtilezas, o antigo oficial da Marinha não compreendeu que os trabalhadores não estavam dispostos a dormir ali ao relento para levarem para casa uma quase vitória.

Acompanhado pelo comandante Montez e por Vítor Crespo, do varandim do palácio o primeiro-ministro do VI Governo Provisório é recebido com assobios e gritos de “Fascista!” “Fascista!”. Em resposta ao insulto, não lhe ocorre nada melhor do que mandar os trabalhadores a uma parte desprezível.

Ninguém ia sair dali tão depressa.

Os manifestantes levavam já no medidor de paciência uma noite sem sono. Alguns tinham até sido transportados de ambulância com convulsões, por hipotermia, depois de se terem deixado cochilar no relvado gelado de uma noite de novembro.15 As palavras de um primeiro-ministro que, embraiado pelo seu jeito desbocado, os tinha mandado “bardamerda”, quando a missão que os sindicatos lhe incumbiram havia sido a de acalmar a manifestação, era a última coisa de que precisavam. O vernáculo, tantas vezes saído da boca de Pinheiro de Azevedo, aquece em vez de arrefecer os ânimos.

Era preciso fazer das bancadas parlamentares encosto, almofada e cama. Aguentar. Fome e enxovalhos. Eram as antevésperas da guerra civil.

Os Sindicatos da Construção Civil, afirma Basílio Horta, cercam a Constituinte porque “não queriam que se tratasse de mais nada senão da Constituição, não queriam que se discutisse política”.16

O cerco ao parlamento e o sequestro dos primeiros deputados eleitos em democracia, havia menos de sete meses, levam a que vários políticos sejam barrados à saída, mesmo que fosse para tomar medicação ou pedir auxílio médico. Ao ponto de o próprio Jerónimo de Sousa, deputado da Constituinte pelo PCP, ter ajudado Basílio Horta, então líder parlamentar do CDS. O deputado Oliveira Dias tinha um problema cardíaco e queria ir para casa. Quando Basílio Horta tenta falar com Vital Moreira, do PCP, para o deixarem sair, sente tocarem-lhe no ombro, era Jerónimo de Sousa, que, solidário, lhe diz: “Diga ao seu amigo que eu o levo lá fora.”17

De madrugada, pelas cinco e meia de dia 13, o Secretariado Nacional do PS emite um primeiro comunicado: “Não estão em causa as reivindicações dos trabalhadores da construção civil. Está em causa sim a manipulação política feita por forças minoritárias (...) com o objetivo de transformar a luta dos trabalhadores numa manobra contra o VI Governo e o primeiro-ministro almirante Pinheiro de Azevedo.”18

O protesto inédito leva o Diário de Notícias a publicar uma segunda edição do jornal, que sai às 5h30 de 13 de novembro, titulando: “Vitória dos trabalhadores da construção civil”.19

Durante a noite, chega a haver instruções para deixar seguir quem trabalha na nova casa da democracia, mas são as próprias funcionárias que recusam.20 Depois de uma reunião entre os sitiados do segundo órgão de soberania e o Governo, os constituintes são informados de que a escadaria da Assembleia ia ficar desimpedida para os deputados poderem abandonar o palácio.

Pelas 14 horas do dia seguinte, os deputados começam a ser libertados. “Saímos, mas fomos insultados.”21 O espaço exíguo que dava para a escadaria só permitia a passagem de uma pessoa de cada vez. Embora livres, no corredor da humilhação ninguém podia fugir ao volume acusatório: “Cambada de Fascistas! Saiam daqui! Essa casa é nossa!”

Após três dias de luta intensa, os trabalhadores viram satisfeitas as suas reivindicações, sendo aceite o aumento do salário mínimo para o setor. Mas, sentindo-se impotente para assegurar o funcionamento da Assembleia Constituinte, o Governo muda os trabalhos para o Porto.22 “Eu fui”, recorda Basílio Horta.

“Reunimo-nos na Região Militar do Porto com Pires Veloso, que nos disse não poder garantir a segurança da Assembleia Constituinte.”

Sem apoios e acossado pelo rumor de que o PCP se preparava para tomar o poder, o líder socialista “começa a encarar, com seriedade, a necessidade de a Assembleia se deslocar para o Porto”,23 para organizar a resistência ao assalto ao poder comunista. “A ida de Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral24 para o Norte justificava-se com o receio de que no seguimento da manifestação agendada para esse fim de semana em Lisboa, promovida pelas comissões de trabalhadores da cintura industrial de Lisboa, com o apoio da Intersindical, do PCP, MDP, MES, FSP, LCI e os SUV, se criasse a comuna de Lisboa.”25

A migração do poder parlamentar não chegaria a ser necessária, mas só a sua cogitação era já demonstrativa do ambiente vivido.

1 — Revista Paris Match de 28 de Junho de 1975. No original: “Álvaro Cunhal parle: Au Portugal, il n’y aura plus jamais aucune chance pour une démocratie comme celles que vous avez en Europe occidental.”

2 — “Memórias do Portugal Futuro” – 1974-1975, Vol. II (DVD), Episódio 4 e 5 – Pela Revolução, 2013.

3 — Marinho, António Luís e Carneiro, Mário (2015). 1975 – O ano que terminou em Novembro. Lisboa: Temas e Debates.

4 — Tenente-coronel Campos Andrada, em declarações à RTP.

5 — Reis, A., Rezola, M. I., Santos, P. B. (coord.) (2016). Dicionário de História de Portugal O 25 de Abril. Vol. 1. Porto: Figueirinhas, p. 193 e Arquivos RTP. https://media.rtp.pt/memoriasdarevolucao/acontecimento/o-povo-e-sereno/

6 — Marinho, António Luís e Carneiro, Mário (2015). 1975 – O ano que terminou em Novembro. Lisboa: Temas e Debates, p. 478.

7 — Veiga, Ivo, Rollo, Maria Fernanda e Santos, Paula Borges (2021). Os Constituintes: Percursos Biográficos e Intervenções Parlamentares (1975-1976). Lisboa: Edições Assembleia da República.

8 — Veiga, Ivo, Rollo, Maria Fernanda e Santos, Paula Borges (2021). Os Constituintes: Percursos Biográficos e Intervenções Parlamentares (1975-1976). Lisboa: Edições Assembleia da República

9 — Testemunho de Isabel Soares.

10 — “Memórias do Portugal Futuro” – 1976-1985, Vol. II (DVD), Episódio 6 e 7 – Pela Revolução, 2013.

11 — Jornal A Luta, de 13/11/1975.

12 — idem

13idem

14idem

15 — Testemunho de Carlos Marques.

16 — Testemunho de Basílio Horta.

17idem

18 — Jornal A Luta, 13/11/1975.

19 — Marinho, António Luís e Carneiro, Mário (2015). 1975 O ano que terminou em Novembro. Lisboa: Temas e Debates.

20 — Testemunho de Ana Cruz e Virgínia Francisco.

21 — Testemunho de Basílio Horta.

22Reis, A., Rezola, M. I., Santos, P. B. (coord.) (2016). Dicionário de História de Portugal O 25 de Abril. Vol. 1. Porto: Figueirinhas, p. 212.

23 — Vieira, Joaquim. (2013). Mário Soares: uma vida. Lisboa: A Esfera dos Livros.

24Vieira, Joaquim. (2013). Mário Soares: uma vida. Lisboa: A Esfera dos Livros, p. 384: “Freitas do Amaral relatará um telefonema recebido nesse dia de Soares dizendo-lhe que o líder centrista e os restantes dirigentes e deputados do CDS, por precaução, deveriam, nas horas seguintes, sair da cidade para se instalarem no Norte. Curiosamente, o líder socialista negará tê-lo feito.”

25 — Castaño, David (2012). Mário Soares e a Revolução. Alfragide: Dom Quixote, p. 486.