1 - Um animal muito racional?

O homem é um animal racional. Pelo menos é o que nos dizem. Durante toda a minha longa vida, tenho procurado diligentemente provas a favor desta afirmação. Até agora, não tive a sorte de as encontrar.

Bertrand Russell

Aquele que mais eloquentemente ou mais subtilmente souber censurar a impotência da alma humana, é tido por divino.

Bento de Espinosa

Homo sapiens significa hominídeo inteligente, e, de muitas maneiras, merecemos o epíteto específico do nosso binómio lineano. A nossa espécie datou a origem do universo, explorou a natureza da matéria e da energia, descodificou os segredos da vida, revelou os circuitos da consciência e fez a crónica da nossa história e diversidade. Durante grande parte da nossa existência, aplicámos este conhecimento para melhorar o nosso próprio florescimento, aliviando os flagelos que causaram miséria aos nossos antepassados. Adiámos o nosso encontro esperado com a morte de trinta para mais de setenta anos (oitenta nos países desenvolvidos), reduzimos a pobreza extrema de noventa por cento da Humanidade para menos de nove por cento, diminuímos as taxas de vítimas mortais da guerra em vinte vezes e da fome cem vezes. Mesmo quando a antiga maldição da peste voltou a surgir no século XXI, identificámos a causa em poucos dias, sequenciámos o seu genoma em semanas e administrámos vacinas num ano, mantendo a sua taxa de mortalidade numa fração das pandemias históricas.

A capacidade cognitiva para compreender o mundo e moldá-lo para nossa vantagem não é um triunfo da civilização ocidental; é o património da nossa espécie. Os San do deserto do Calaári, no sul de África, são um dos povos mais antigos do mundo e o seu estilo de vida de recoleção, conservado até tempos muito recentes, oferece um vislumbre sobre como os humanos passaram a maior parte da sua existência. Os caçadores-recoletores não atiram apenas lanças aos animais que passam e não se servem apenas dos frutos e das nozes que crescem em seu redor. Louis Liebenberg, cientista dedicado ao rastreio e que trabalhou durante décadas com os San, descreveu como estes devem a sua sobrevivência a uma mentalidade científica. Raciocinam a partir de dados fragmentários até conclusões remotas, com um entendimento intuitivo de lógica, pensamento crítico, raciocínio estatístico, inferência causal e teoria dos jogos.

Os San praticam uma caça de persistência, que recorre aos nossos três traços mais distintos: o bipedismo, que nos permite correr de forma eficiente; a ausência de pelos, que nos permite aguentar o calor nos climas quentes; e as nossas grandes cabeças, que nos permitem ser racionais. Os San usam esta racionalidade para perseguirem os animais em fuga através das suas pegadas, dos eflúvios e de outros rastros, perseguindo-os até caírem por exaustão ou por causa do calor. Por vezes, os San perseguem um animal ao longo de um dos seus caminhos habituais ou, quando o trilho se desvanece, procurando em largos círculos os últimos rastros conhecidos. Mas, com frequência, perseguem-nos usando o raciocínio.

Em outubro recebemos José Luís Peixoto

O escritor José Luís Peixoto é o convidado do próximo encontro do clube de leitura É Desta Que Leio Isto, no dia 28 de outubro, pelas 21h. Iremos conversar sobre o seu mais recente livro, Almoço de Domingo, mas também sobre outras das suas obras.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Além disso, pode ficar a par de tudo o que acontece no clube de leitura através deste link.

Os caçadores distinguem dezenas de espécies pelas formas e pelo espaçamento das suas pegadas, auxiliados pelo seu entendimento da causa e do efeito. São capazes de inferir que um rastro fundo e pontiagudo vem de uma ágil cabra-de-leque, que precisa de uma boa aderência, enquanto uma pegada plana vem de um pesado cudo, que tem de suportar o seu peso. Sabem determinar o sexo dos animais pela configuração das suas pegadas e pela localização da sua urina relativamente às patas traseiras e dos seus excrementos. Usam estas categorias para fazer deduções silogísticas: o xipene e o cabrito podem ser perseguidos na estação chuvosa, porque a areia molhada abre-lhes os cascos e endurece-lhes as articulações; o cudo e o elande podem ser perseguidos na estação seca porque se cansam facilmente na areia solta. Estamos na estação seca e o animal que deixou estes rastros é um cudo; portanto, este animal pode ser perseguido.

Os San não classificam apenas os animais em categorias, mas fazem distinções lógicas mais finas. Distinguem os indivíduos dentro de uma espécie pelas marcas dos seus cascos, procurando entalhes e variações reveladoras. E distinguem traços permanentes de um indivíduo, como a sua espécie ou o seu sexo, a partir de condições temporárias como a fadiga, que inferem dos sinais de arrasto dos cascos e de paragens de descanso. Contrariando a balela de que os povos pré-modernos não têm conceito de tempo, calculam a idade de um animal pela dimensão e rigidez das suas pegadas, e são capazes de datar o seu rastro pela frescura das marcas no terreno, pela humidade da saliva ou dos excrementos, pelo ângulo do Sol relativamente a um local de descanso com sombra e pelo palimpsesto das pegadas sobrepostas de outros animais. A caça de persistência não teria sucesso sem estas subtilezas lógicas. Um caçador não pode rastrear qualquer órix entre os muitos que deixaram rastros, mas apenas aquele que persegue até à exaustão.

Os San também recorrem ao pensamento crítico. Sabem não confiar nas primeiras impressões e entendem os perigos de verem o que querem ver. Tampouco aceitam argumentos de autoridade: qualquer um, incluindo um jovem, pode desmentir uma conjetura ou propor a sua própria até que um consenso surja da disputa. Apesar de serem principalmente os homens que caçam, as mulheres são igualmente sábias a interpretarem rastros, e Liebenberg relata que uma jovem mulher, !Nasi, «quase envergonhava os homens».

Os San ajustam a sua crença numa hipótese em função do diagnóstico da evidência, uma questão de probabilidade condicional. Uma pata de ouriço, por exemplo, tem duas almofadas próximas, enquanto um ratel só tem uma, mas o rastro de uma almofada pode não ficar registado num solo duro. Isto significa que, embora a probabilidade de um rastro ter uma marca de almofada por ter sido feito por um ratel seja elevada, a probabilidade inversa, de um rastro ter sido feito por um ratel dado que só tem uma almofada, é mais baixa (uma vez que também poderia ser um rastro incompleto de um ouriço). Os San não confundem estas probabilidades convencionais: sabem que, como duas almofadas só podem ter sido deixadas por um ratel, a probabilidade de um ratel, dadas as duas marcas de almofadas, é elevada.

Os San também calibram a sua crença numa hipótese segundo a sua plausibilidade prévia. Se os rastros forem ambíguos, partirão do princípio de que vêm de uma espécie comum; só se a evidência for definitiva é que concluirão que pertencem a uma espécie mais rara. Como veremos, esta é a essência da lógica bayesiana.

Outra faculdade crítica exercida pelos San é distinguirem a causação da correlação. Liebenberg recorda:

Um rastreador, Boroh//xao, disse-me que quando [a cotovia] canta, seca o solo, tornando as raízes boas para comer. Depois, !NAte e /Uase disseram-me que Boroh//xao estava errado — não é o pássaro que seca o solo, é o sol que seca o solo. O pássaro está apenas a dizer-lhes que o solo irá secar nos próximos meses e que essa é a época do ano em que as raízes são boas para comer…

Os San usam o seu conhecimento da textura causal do seu ambiente não só para compreenderem como é, mas também para imaginarem como poderia ser. Ao imaginarem cenários, podem estar vários passos à frente dos animais no seu mundo e engendrar armadilhas intrincadas para os apanharem. A ponta de um ramo flexível é presa ao chão e o ramo é dobrado ao meio; a outra ponta está presa a um laço camuflado com galhos e areia e mantido no lugar por um gatilho. Instalam as armadilhas nas aberturas das barreiras que construíram em redor do local de descanso do antílope e guiam o animal para o sítio mortal por um carreiro que o antílope tem de percorrer. Ou atraem uma avestruz para uma armadilha ao verem os seus rastos sob uma acácia (cujas vagens são uma iguaria para a avestruz), deixando um osso-visível demasiado grande para a avestruz engolir, o que atrai a sua atenção para um osso mais pequeno, mas ainda não engolível, que conduz a um osso ainda mais pequeno, o isco da armadilha.

No entanto, apesar de toda a eficácia mortífera da tecnologia deste povo, os San sobreviveram num deserto impiedoso durante mais de cem mil anos sem exterminarem os animais de que dependiam. Durante uma seca, pensavam no que aconteceria se matassem a última planta ou o último animal da sua espécie, e poupavam os membros das espécies ameaçadas. Ajustam os seus planos às diferentes vulnerabilidades das plantas, que não podem migrar, mas recuperam depressa quando a chuva regressa, e dos animais, que podem sobreviver a uma seca, mas cuja recuperação em número é lenta. E impõem estes esforços de conservação contra a tentação constante da caça ilegal (já que qualquer pessoa pode pensar que deve explorar as espécies raras, porque, se não for ela a fazê-lo, serão os outros) com uma extensão das normas de reciprocidade e de bem-estar coletivo que regem todos os seus recursos. Para um caçador sã, é impensável não partilhar carne com um camarada sem meios ou excluir um grupo vizinho que teve de deixar o seu território assolado pela seca, pois sabem que as memórias são longas e que, um dia, as fortunas podem inverter-se.

Racionalidade
créditos: Editorial Presença

Livro: “Racionalidade”

Autor: Steven Pinker

Editora: Editorial Presença

Data de lançamento: 20 de outubro

Preço: 17,91€

A sapiência dos San acentua o paradoxo da racionalidade humana. Apesar da nossa antiga capacidade da razão, somos hoje inundados de exemplos de falácias e tolices dos nossos concidadãos. As pessoas jogam e apostam na lotaria, onde perderão de certeza, mas não investem nas suas reformas, onde ganhariam de certeza. Três quartos dos norte-americanos acreditam em pelo menos um fenómeno que desafia as leis da ciência, incluindo a cura espiritual (55 por cento), a perceção extrassensorial (41 por cento), casas assombradas (37 por cento) e fantasmas (32 por cento) — o que também significa que algumas pessoas acreditam em casas assombradas por fantasmas sem acreditarem em fantasmas. Nas redes sociais, notícias falsas (como «Joe Biden chama aos apoiantes de Trump “a escória da sociedade”» e «Homem da Flórida detido por drogar e violar jacarés nos Everglades») são difundidas cada vez em maior quantidade e mais rapidamente do que a verdade, e é provável que os humanos as disseminem mais do que os robôs.

Está a tornar-se um lugar-comum concluir que os humanos são simplesmente irracionais — mais do tipo de Homer Simpson do que do Mr. Spock; mais Alfred E. Neuman do que John von Neumann. E, continuam os cínicos, que mais se poderia esperar de descendentes de caçadores-recoletores cujas mentes foram selecionadas para evitarem ser comidos pelos leopardos? No entanto, os psicólogos evolucionistas, conscientes do engenho dos povos caçadores-recoletores, insistem que os humanos evoluíram para ocupar o «nicho cognitivo»: a capacidade de superar a natureza com linguagem, sociabilidade e saber técnico. Se os humanos contemporâneos parecem irracionais, não devemos culpar os caçadores-recoletores.

Assim, como entender esta coisa chamada racionalidade que parece ser o nosso direito inato, mas que é ignorada de forma tão frequente e flagrante? O ponto de partida é perceber que a racionalidade não é um poder que um agente tenha ou não tenha, como a visão de raios x do Super-Homem. É um conjunto de ferramentas cognitivas que pode alcançar objetivos particulares em mundos particulares. Para compreendermos o que é a racionalidade, porque parece rara e porque importa, temos de começar com as verdades básicas da própria racionalidade: as formas como um agente inteligente deve raciocinar, tendo em conta os seus objetivos no mundo onde vive. Estes modelos «normativos» decorrem da lógica, da filosofia, da matemática e da inteligência artificial, e constituem a nossa melhor compreensão da solução «correta» para um problema e de como encontrá-la. Servem de inspiração para quem quer ser racional, o que deveria significar toda a gente. Um dos principais objetivos deste livro é explicar os instrumentos normativos geralmente mais aplicados pela razão; estes são os temas dos capítulos 3 a 9.

Os modelos normativos também servem de referências pelas quais podemos avaliar como os idiotas raciocinam, um tema da psicologia e das outras ciências comportamentais. Os muitos modos como as pessoas comuns ficam aquém destas referências tornaram-se famosos graças à investigação nobelizada de Daniel Kahneman, Amos Tversky e outros psicólogos e economistas comportamentais. Quando os juízos das pessoas se desviam de um modelo normativo, tal como o fazem muitas vezes, temos um problema para resolver. Em certos casos, a disparidade revela uma verdadeira irracionalidade: o cérebro humano não é capaz de lidar com a complexidade de um problema ou está preso num defeito que o conduz uma e outra vez à resposta errada.

No entanto, em muitos casos, há um método para a loucura das pessoas. Um problema pode ter-lhes sido apresentado num formato enganador e, quando é traduzido numa forma mais amiga da mente, conseguem resolvê-lo. Ou o modelo normativo pode ser correto apenas num ambiente particular e as pessoas sentem fortemente que não estão nesse ambiente e, assim, o modelo não se aplica. Ou o modelo pode ser concebido para criar um certo fim e, para melhor ou pior, as pessoas procuram um fim diferente. Nos próximos capítulos, veremos exemplos de todas estas circunstâncias atenuantes. O penúltimo capítulo mostrará como algumas das atuais explosões floridas de irracionalidade podem ser entendidas como a procura racional de objetivos e não como uma compreensão objetiva do mundo.

Embora as explicações da irracionalidade possam absolver as pessoas da acusação de estupidez total, compreender não é desculpar. Por vezes, podemos impor normas mais elevadas às pessoas. Podem ser ensinadas a identificar um problema profundo nas suas formas superficiais. Podem ser incitadas a aplicar os seus melhores hábitos de pensamento fora das suas zonas de conforto. E podem ser inspiradas a visar objetivos mais elevados do que os autodestrutivos ou coletivamente destrutivos. Estas também são algumas das aspirações deste livro.

Dado que um resultado recorrente do estudo do juízo e da tomada de decisões é que os humanos se tornam mais racionais quando a informação com que lidam é mais intensa e relevante, permitam-me recorrer a alguns exemplos: de aritmética, de lógica, de probabilidade e de previsão. Cada um destes clássicos expõe um trejeito no nosso raciocínio e servirá de antevisão dos padrões normativos da racionalidade (e das maneiras como as pessoas se desviam deles) nos capítulos seguintes.

Três problemas simples de matemática

Todos recordamos ter sido atormentados na escola secundária por problemas de álgebra sobre onde o comboio que partiu de Eastford, viajando a 112 quilómetros à hora, se cruzará com o comboio que partiu de Westford, a 418 quilómetros de distância, viajando a 96,5 quilómetros à hora. Estes três são mais simples; podemos até resolvê-los mentalmente:

— Um smartphone e uma capa custam 110 dólares no total. O telefone custa mais 100 dólares do que a capa. Quanto custa a capa?

— Oito impressoras precisam de 8 minutos para imprimir 8 brochuras. Quanto tempo seria necessário para que 24 impressoras imprimissem 24 brochuras?

— Num campo, há uma porção de ervas. Todos os dias, a porção duplica de tamanho. São precisos 30 dias para que a mancha cubra todo o campo. Quanto tempo foi preciso para que a mancha cobrisse metade do campo?

A resposta ao primeiro problema é 5 dólares. Se for como a maioria das pessoas, terá pensado 10 dólares. Mas, se isto estivesse certo, o telefone custaria 110 dólares (mais 100 dólares do que a capa) e o total do par seria 120 dólares.

A resposta à segunda questão é 8 minutos. Uma impressora precisa de 8 minutos para imprimir uma brochura; assim, desde que haja tantas impressoras quantas as brochuras, e se trabalharem em simultâneo, o tempo para imprimir as brochuras é o mesmo.

A resposta ao terceiro problema é 29 dias. Se a mancha de erva duplica a cada dia, então, trabalhando para trás quando o campo estava totalmente coberto, estaria metade coberto no dia anterior.

O economista Shane Frederick apresentou estas questões (com exemplos diferentes) a milhares de estudantes universitários e concluiu que cinco em cada seis errava pelo menos uma delas, enquanto um em cada três errava todas. No entanto, cada questão tem uma resposta simples que quase toda a gente entende depois de lhe ter sido explicada. O problema é que os cérebros humanos estão concentrados em elementos superficiais do problema, que pensam erradamente serem relevantes para a resposta, como os números redondos «100» e «10» no primeiro problema e o facto de o número de impressoras ser o mesmo que o número de minutos no segundo problema.

Fredrick chama à sua bateria de baixa tecnologia Teste de Reflexão Cognitiva, e sugere que isto expõe uma clivagem entre dois sistemas cognitivos, mais tarde tornados famosos por Kahneman (seu coautor) no livro "Thinking Fast and Slow", bestseller de 2011. O Sistema 1 opera de forma rápida e sem esforço, e seduz-nos com as respostas erradas; o Sistema 2 requer concentração, motivação e aplicação das regras aprendidas, e permite-nos chegar às respostas certas. Ninguém pensa que sejam dois sistemas literalmente anatómicos no cérebro; são antes dois modos de operação que se estendem por muitas estruturas cerebrais. O Sistema 1 significa juízos rápidos; o Sistema 2 significa pensar duas vezes.

A lição do Teste de Reflexão Cognitiva é que os erros de raciocínio podem decorrer mais da falta de reflexão do que da inaptidão. Até os estudantes do Massachusetts Institute of Technology, tão orgulhosos na matemática, tiveram uma média de apenas duas respostas corretas em cada três. O desempenho está relacionado com a aptidão matemática, como seria de esperar, mas também se relaciona com a paciência. Aqueles que se descrevem como não impulsivos, e que prefeririam esperar por um pagamento maior num mês a receber um menor de imediato, têm menos probabilidade de cair nas armadilhas.

As duas primeiras questões parecem traiçoeiras. Isso acontece porque nos são dados pormenores que, no decorrer de uma conversa, seriam relevantes para quem pergunta, mas, nestes exemplos, estão concebidos para desorientar o ouvinte. (As pessoas têm melhores resultados quando o smartphone custa, por exemplo, 73 dólares mais do que a capa e a combinação custa 89 dólares.) Mas é claro que a vida real também está pejada de caminhos de jardim e canções de sereias que nos desviam das boas decisões, e resistir-lhes faz parte de ser racional. As pessoas que caem nas respostas sedutoras, mas erradas, do Teste de Reflexão Cognitiva parecem ser menos racionais noutros aspetos, como rejeitar ofertas lucrativas que exigem alguma paciência ou algum risco.

E o terceiro problema, o da mancha de ervas, não é uma questão enganadora, mas identifica uma verdadeira debilidade cognitiva. A intuição humana não apreende o crescimento exponencial (geométrico), nomeadamente algo que aumenta a uma taxa de crescimento proporcional ao tamanho que já tem, como um juro composto, o crescimento económico e a disseminação de uma doença contagiosa. As pessoas confundem-no com um movimento estável ou uma ligeira aceleração, e a sua imaginação não acompanha a duplicação constante. Se depositar 400 dólares por mês numa conta poupança para a reforma que oferece 10 por cento ao ano, quanto terá ao fim de 40 anos? Muitas pessoas calculam que serão cerca de 200 mil dólares, que é o que dá multiplicando 400 por 12 por 110 por cento por 40. Algumas sabem que isto não pode estar correto e ajustam o cálculo por cima, mas nunca o suficiente. Quase ninguém dá a resposta certa: 2,5 milhões de dólares. As pessoas com menos compreensão do crescimento exponencial costumam poupar menos para a reforma e gerar mais dívida com cartões de crédito, dois caminhos para a penúria.

O fracasso em visualizar o crescimento exponencial também pode enganar os especialistas — até os especialistas em vieses cognitivos. Quando a covid-19 chegou aos Estados Unidos e à Europa em fevereiro de 2020, vários cientistas sociais (incluindo dois heróis deste livro, nenhum deles era Kahneman) disseram que as pessoas sentiam um pânico irracional porque haviam lido sobre um ou dois casos terríveis e deixaram-se levar pelo «viés da disponibilidade» e pela «negligência da probabilidade». Nessa altura, o risco objetivo, observavam eles, era menor do que o da gripe ou da faringite estreptocócica, que toda a gente aceita com serenidade. A falácia dos críticos da falácia era subestimar a taxa de aceleração da propagação de uma doença tão contagiosa como a covid-19, em que cada paciente não só infetava outros, como também os tornava agentes de infeção. A primeira morte norte-americana confirmada em 1 de março aumentou nas semanas seguintes para 2, 6, 40, 264, 901 e 1729 mortes por dia, totalizando mais de 100 mil mortes em 1 de junho, tornando a doença na mais mortal do país depois das doenças cardiovasculares, do cancro e da demência. É claro que os autores destes obscuros artigos de opinião não podem ser responsabilizados pela despreocupação que conduziu tantos líderes e cidadãos para uma complacência perigosa, mas os seus comentários mostram como os vieses cognitivos podem estar profundamente enraizados.

Porque é que as pessoas mitigam erradamente o crescimento exponencial, como George W. Bush o diria? Na grande tradição do médico da peça de Molière, que explicava que o ópio torna as pessoas sonolentas por causa do seu «poder dormitivo», os cientistas sociais atribuem os erros a um «viés de crescimento exponencial». De forma menos circular, podemos apontar para processos exponenciais em ambientes naturais (anteriores a inovações históricas como o crescimento económico e o juro composto). Aquilo que não pode existir para sempre deixara de existir, e os organismos só podem multiplicar-se até ao ponto em que esgotam, poluem ou saturam os seus ambientes, dobrando a curva exponencial num S. Isto inclui as pandemias, que desaparecem quando anfitriões suficientes do rebanho são mortos ou adquirem imunidade.

Um problema simples de lógica

Se há alguma coisa que está no cerne da racionalidade, é certamente a lógica. O protótipo de uma inferência racional é o silogismo «Se P então Q. P, logo Q». Consideremos um exemplo simples.

Suponhamos que uma moeda de um país exibe um dos seus eminentes soberanos numa face e, na outra, um retrato da sua magnífica fauna. Agora, consideremos uma regra hipotética: «Se uma moeda tem um rei numa das suas faces, então tem de ter uma ave na outra.» Temos aqui quatro moedas, que exibem um rei, uma rainha, um alce e um pato. Que moeda teremos de virar para saber se a regra foi violada?

Racionalidade
créditos: Editorial Presença

Se o leitor for como a maioria das pessoas, terá respondido «o rei» ou «o rei e o pato». A resposta certa é: «o rei e o alce». Porquê? Todos concordam que é preciso virar o rei, porque se não tiver uma ave no reverso violará totalmente a regra. Muitas pessoas sabem que não tem sentido virar a rainha, pois a regra diz «Se rei, então ave»; nada diz sobre moedas com uma rainha. Muitos dizem que devemos virar o pato, mas, quando pensamos nisto, essa moeda é irrelevante. A regra é «Se rei, então ave», e não «Se ave, então rei»: se o pato partilhasse a moeda com uma rainha, não haveria nada de errado. Mas consideremos o alce. Se virarmos esta moeda e encontrarmos um rei na outra face, a regra «Se rei, então ave» terá sido violada. A resposta, portanto, é «o rei e o alce». Em média, só 10 por cento das pessoas fazem estas escolhas.

A tarefa de seleção Wason (assim chamada com o nome do seu inventor, o psicólogo cognitivo Peter Wason) tem sido administrada com várias regras «Se P então Q» durante 65 anos. (A versão original usava cartas com uma letra num lado e um número no outro lado, e uma regra como «Se há um D num lado, há um 3 no outro». Com muita frequência, as pessoas viravam o P ou o P e o Q, mas não viravam o não Q. Não é que sejam incapazes de compreender a resposta correta. Tal como no Teste de Reflexão Cognitiva, quando isso lhes é explicado, dão uma palmada na testa e aceitam-no. No entanto, entregues a si mesmas, não é assim que a sua intuição funciona.

Que nos diz isto sobre a racionalidade humana? Uma explicação comum é que revela o nosso viés de confirmação: o mau hábito de procurar evidência que ratifique uma crença e de não ter cuidado com evidências que a podem falsificar. Assim, as pessoas pensam que os sonhos são prenúncios porque recordam a ocasião em que sonharam com um acidente de um familiar mas esquecem-se de todas as ocasiões em que um familiar estava bem e não sonharam que sofreu um acidente. Ou pensam que os imigrantes cometem muitos crimes porque leram nas notícias sobre um imigrante que assaltou uma loja, mas não pensam no maior número de lojas assaltadas por cidadãos nativos.

O viés de confirmação é um diagnóstico comum para a insensatez humana e um alvo para reforçar a racionalidade. Francis Bacon (1561-1626), geralmente reconhecido por ter desenvolvido o método científico, escreveu sobre um homem que foi levado para uma igreja, onde lhe mostraram uma pintura de marinheiros sobreviventes a um naufrágio graças aos seus votos sagrados. «Sim», observou o homem, «mas onde estão pintados os que se afogaram após os seus votos?» Bacon comentou: «É assim que funcionam todas as superstições, seja a astrologia, os sonhos, os prenúncios, os juízos divinos, ou outros; onde os homens, tendo prazer nessas futilidades, marcam os acontecimentos quando se realizam, mas quando não se realizam, embora isto tenha acontecido com muito mais frequência, ignoram-nos e passam ao lado deles.» Fazendo eco do famoso argumento do filósofo Karl Popper, a maioria dos cientistas insiste hoje que a linha divisória entre a ciência e a pseudociência é quando os defensores de uma hipótese procuram deliberadamente provas de que podem falsificá-la e só aceitam a hipótese se esta sobreviver.

Como podem os humanos ultrapassar uma incapacidade de aplicar a regra mais elementar da lógica? Parte da resposta é que a tarefa de seleção é um desafio peculiar. Não pede às pessoas que apliquem o silogismo para fazerem uma dedução útil («Está aqui uma moeda com o rei; o que está no outro lado?») ou que testem a regra em geral («É verdadeira a regra da moeda do país?»). Pergunta se a regra se aplica especificamente a cada um dos itens que estão à sua frente na mesa. A outra parte da resposta é que as pessoas aplicam a lógica quando a regra envolve os deveres e os não deveres da vida humana em vez de símbolos arbitrários e moedas.

Suponhamos que os correios vendem selos de 50 cêntimos para correio normal, mas requerem selos de 10 dólares para o correio expresso. Ou seja, o correio corretamente endereçado tem de seguir a regra «Se uma carta tiver a etiqueta de correio expresso, tem de ter um selo de 10 dólares». Suponhamos que a etiqueta do endereço e o selo não cabem no mesmo lado do envelope e, por isso, o funcionário dos correios tem de virar cada envelope para ver se o remetente seguiu a regra. Temos aqui quatro envelopes. Imagine que é um funcionário dos correios. Que envelopes terá de virar?

A resposta correta é, mais uma vez, P e não Q, ou seja, o envelope Expresso e o que tem o selo de 50 cêntimos. Ainda que o problema seja logicamente equivalente ao problema das quatro moedas, desta vez quase toda a gente acerta. O conteúdo de um problema lógico importa. Quando uma regra se então implementa um contrato que envolve permissões e deveres — «Se queres um benefício, tens de pagar um custo» —, uma violação da regra (ter o benefício, não pagar o custo) equivale a aldrabar, e as pessoas sabem intuitivamente como apanhar um aldrabão. Não procuram aqueles que não têm o benefício, nem os que pagaram um custo, pois nenhuma destas poderia estar a tentar aldrabar.

Os psicólogos cognitivos debatem exatamente sobre que tipos de conteúdos podem tornar temporariamente os indivíduos em lógicos. Não pode ser qualquer tipo de cenários concretos, mas têm de incorporar os tipos de desafios lógicos a que nos habituámos quando nos tornámos adultos e, talvez, quando evoluímos para humanos. Monitorizar um privilégio ou um dever é um desses temas de desbloqueamento da lógica; monitorizar o perigo é outro. As pessoas sabem que, para verificar a obediência ao aviso «se andares de bicicleta, tens de usar um capacete», têm de apurar que uma criança numa bicicleta está a usar um capacete e que uma criança sem capacete não anda de bicicleta.

Ora, uma mente capaz de falsificar uma regra condicional quando as violações equivalem a aldrabar ou a um perigo não é exatamente uma mente lógica. A lógica, por definição, tem que ver com a forma das proposições e não com o seu conteúdo; como os Pês e os Quês estão ligados por SE, ENTÃO, E, OU, NÃO, ALGUNS e TODOS, independentemente do conteúdo dos Pês e Quês. A lógica é uma conquista culminante do conhecimento humano. Organiza o nosso raciocínio com matérias não familiares ou abstratas, como as leis do governo e a ciência, e, quando implementada em silício, torna matéria inerte em máquinas que pensam. Mas aquilo que a mente humana não instruída comanda não é uma ferramenta de propósito geral e sem conteúdo, com fórmulas como «[SE P ENTÃO Q] é equivalente a NÃO-[P E NÃO Q]», às quais qualquer P e Q podem ser ligados. Comanda um conjunto de instrumentos mais especializados que junta ao conteúdo relevante para o problema as regras da lógica (sem as quais os instrumentos não funcionariam). Para as pessoas, não é fácil extrair as regras e aplicá-las a problemas novos, abstratos e aparentemente sem sentido. É para isso que servem a educação e outras instituições de reforço da racionalidade. Aumentam a racionalidade ecológica com que nascemos e crescemos — o nosso bom senso, a nossa destreza —, através dos instrumentos de maior espectro e mais potentes do raciocínio aperfeiçoados pelos nossos melhores pensadores desde há um milénio.

Um problema simples de probabilidade

Um dos programas de jogos de televisão mais famosos dos tempos áureos do género, dos anos 1950 aos anos 1980, era Let’s Make a Deal. O seu apresentador, Monty Hall, adquiriu outro tipo de fama quando um dilema da teoria da probabilidade, mais ou menos baseado no programa, foi batizado com o seu nome. São apresentadas três portas a um concorrente. Atrás de uma delas está um automóvel novo e lustroso. Atrás das outras duas estão cabras. O concorrente escolhe uma porta, dizendo Porta 1. Para criar suspense, Monty abre uma das outras duas portas e diz Porta 3, que revela uma cabra. Para aumentar o suspense, dá aos concorrentes a oportunidade de manterem a escolha original ou de mudarem para a porta fechada, a Porta 2. O leitor é o concorrente. Que faria?

Quase toda a gente mantém a primeira escolha. Pensam que, como o automóvel foi colocado aleatoriamente atrás de uma das três portas, e a Porta 3 foi eliminada, há agora uma hipótese de 50/50 de o automóvel estar atrás da Porta 1 ou da Porta 2. Embora não haja dano na mudança, pensam que também não há benefício. Assim, mantêm a primeira escolha, por inércia, orgulho ou antecipação de que o seu arrependimento após uma mudança azarada seja mais intenso do que a felicidade depois de uma mudança afortunada.

O dilema Monty Hall tornou-se famoso em 1990 quando foi apresentado na coluna «Ask Marilyn» na Parade, uma revista inserida na edição dominical de centenas de jornais norte-americanos. A colunista era Marilyn vos Savant, conhecida na altura como «a mulher mais inteligente do mundo» por ter entrado no Livro Guinness dos Recordes Mundiais ao obter o resultado mais elevado num teste de inteligência. Vos Savant escreveu que devíamos mudar de escolha: as hipóteses de o carro estar na Porta 2 são duas em três, comparadas com uma em três para a Porta 1. A coluna recebeu 10 mil cartas, um milhar delas de doutorados, especialmente em matemática e estatística, com a maioria a dizer que ela estava errada. Eis alguns exemplos.

Errou, e errou em grande! Como parece ter dificuldade em perceber o princípio básico em causa, vou explicar-lhe. Depois de o apresentador ter revelado uma cabra, temos agora uma hipótese em duas de estar certos. Mudemos ou não a escolha, as hipóteses são as mesmas. Já há demasiada iliteracia matemática neste país e não precisamos de que o QI mais alto do mundo a propague ainda mais. Vergonhoso!

— Scott Smith, PhD, Universidade da Flórida.

Estou certo de que receberá muitas cartas sobre este tema de estudantes do secundário e da universidade. Talvez deva guardar alguns endereços para a ajudarem em colunas futuras.

— W. Robert Smith, PhD, Universidade Estatal da Geórgia.

Talvez as mulheres olhem para os problemas de matemática de uma maneira diferente dos homens.

— Don Edwards, Sunriver, Oregon.

Entre os objetores estava Paul Erdös (1913-1996), o famoso matemático que era tão prolífico que muitos académicos se gabavam do seu Número Erdös, o comprimento da cadeia mais curta de coautorias que os ligavam ao grande teórico.

No entanto, os matemáticos paternalistas estavam errados e a mulher mais inteligente do mundo estava certa. Não é difícil perceber porquê. Há três possibilidades onde o automóvel pode ter sido colocado. Consideremos cada uma das portas e contemos o número de vezes, das três, que ganharíamos com cada estratégia. Escolheu a Porta 1, mas, obviamente, é só uma etiqueta; desde que Monty siga a regra «Abra uma porta não escolhida com uma cabra; se ambas têm cabras, escolha uma ao acaso», as hipóteses são as mesmas seja qual for a que escolhamos.

Suponha que a sua estratégia é «Manter» (coluna esquerda da ilustração). Se o automóvel estiver atrás da Porta 1 (ao cimo, à esquerda), ganhará. (Não importa qual das outras portas foi aberta por Monty, pois não mudou para nenhuma.) Se o automóvel estiver atrás da Porta 2 (no meio, à esquerda), perderá. Se o automóvel estiver atrás da Porta 3 (no fundo, à esquerda), perderá. Assim, as hipóteses de ganhar com a estratégia de «Manter» são de uma em três.