‘Tem corrido bem?’
“Veja por si. Está à vontade”.
Chegámos ao quartel dos Bombeiros Voluntários de Lisboa por volta das 11 horas manhã de segunda-feira para acompanhar um camião TIR que faria ali a sua primeira paragem na recolha dos alimentos e mantimentos que nestes dias foram chegando aos quartéis de bombeiros pelas mãos de populares e empresas para que fossem, depois, levados até Pedrógão Grande.
O itinerário começava aqui, no Largo do Barão de Quintela, em Lisboa, junto ao Chiado. Seguiria depois para Campo de Ourique, Cabo Ruivo e, por fim, para Pombal, de onde, posteriormente, os donativos - roupas, comida, águas, produtos de higiene e saúde - serão levados até aos quartéis dos concelhos afetados pelos incêndios, assim como aos contingentes no terreno.
Porquê este itinerário? Era impossível levar tudo, diretamente, para Pedrógão Grande, onde nos quartéis reina o cansaço e a falta de meios.
À chegada aos bombeiros de Lisboa, o comandante Hugo Simões autorizou-nos a dar uma volta pelos corredores e ver, com os nossos próprios olhos, o resultado do que ali chegava, sem parar. Sofia Silva guiou-nos. Não era fácil. Nos corredores, as paletes de águas, bebidas energéticas, bolachas e barras erguiam-se como segundas paredes, estreitando o espaço de passagem de quem ali trabalha todos os dias. As salas, essas eram inundadas de sacos com comida, roupa e produtos de higiene e saúde. Tudo devidamente separado.
‘Quanto é que reuniram?’, perguntamos.
“Em quantidade, em peso? Não fazemos ideia”, respondeu-nos Sofia.
É incalculável.
Entretanto, à porta iam chegando mais donativos. Pessoas a pé, de carro, sacos e paletes acumulavam-se à entrada à espera de serem colocados nos respetivos lugares.
“Batista, anda aqui receber”, ouvia-se gritar lá de dentro. Outras vezes, pessoas passavam só para perguntar o que era preciso, depois de terem ouvido, no domingo, o apelo da ministra da Administração Interna, que pediu, quer por falta de logística, quer por falta de necessidade, que se parassem com as doações.
Os pedidos passaram assim a reduzir-se e a centrarem-se mais em água e produtos de higiene e de saúde - compressas, pomadas, cremes hidratantes. Mas a pulsão para ajudar era impossível de controlar. Continuava a chegar de tudo, as pessoas queriam ajudar com tudo e tudo tinha de ser enviado.
“O que vale é que os portugueses têm bom coração”, dizia uma senhora, empregada de limpeza, por cima do ombro da mulher de um casal que acabava de deixar um par de sacos e ficavam a comentar a terrível tragédia que se vive em Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos. A esta altura eram 62 as vítimas mortais do incêndio, mal sabíamos nós, mal sabiam eles, que ao fim do dia o número subiria para 64, depois de confirmada a morte de mais um civil e de um bombeiro.
O camião frigorífico chegou pouco tempo depois do SAPO24. E virou logo o jogo de cabeça aos polícias e aos bombeiros que ali o esperavam: era demasiado grande para estacionar. Não cabia na Rua das Flores, à porta do quartel. Teve, por isso, de parar na Rua do Alecrim que passou a funcionar numa só faixa.
No quartel, os bombeiros começavam a olhar, preocupados, e a comentar entre si o impensável que seria transportar tamanha quantidade de sacos e paletes às mãos, e a pé. Nessa altura, o sol estava alto, o céu limpo e os termómetros marcavam os 35º Celsius.
Mas a ajuda estava ali ao lado, na obra de construção de um hotel, coordenada pelo Grupo Casais. O empreiteiro, abordado por Hugo Simões não teve meias medidas, disponibilizou vários dos seus trabalhores para ajudar nos carregamentos, os contentores de entulho e a grua.
O plano passou então a ser o seguinte: a grua colocava o contentor à porta do quartel, os bombeiros e trabalhadores enchiam-nos, catalogavam-no, a grua levava o contentor para junto do camião, sobrevoando o jardim, onde outro grupo de bombeiros tratava de encher e organizar o interior do TIR.
A viatura de transporte de alimentos cedida pela Expresso Frigo tinha a capacidade para cerca de 23 toneladas. “Esperamos encher metade aqui no Chiado”, diz-nos João Borges, COO da empresa.
Ivan Rodrigues, dentro do camião a receber as águas, diz-nos que nunca tinha visto uma quantidade de doações em tão pouco tempo. “O ano passado tinha sido muito bom, mas nunca tinha visto tanta coisa em dois dias”. “Dois dias!”, realça.
Do lado oposto do jardim que separava as equipas, ligadas apenas pela grua, Débora Alves desdobra-se em esforços para conseguir contar tudo. Ali as quantidades chovem, os ‘packs’ são de dimensões diferentes, começa tudo a ficar confuso. Sem meias medidas, a bombeira pergunta a alguém quanto é que leva cada contentor. “Quatro metros cúbicos”, responde alguém da obra. E assim haveria de ficar no papel: sete contentores, de quatro metros cúbicos cada um, cheios de alimentos. De Lisboa para Pedrógão.
Os corredores esvaziavam-se, a pouco e pouco, com toda a exigência e logística a que a utilização de uma grua obriga. Faltam voluntários. Até ao camião arrancar, apenas uma rapariga tinha chegado para fazer a sua doação e ficar a ajudar.
O camião começava a ficar composto. Junto ao contentor, o SAPO24 conheceu uma ajuda extra, o bombeiro Artur. Ainda não o tínhamos visto por aqui, mas depressa ele fez saber que a sua presença seria sol de pouca dura. Dali a pouco tempo iria para cima, para Pedrógão, ajudar mas de outra forma. Quando lhe perguntámos o que esperava encontrar, o bombeiro, que passava paletas de água e de bebidas energéticas aos seus colegas à beira do camião, respondeu em silêncio, abanando a cabeça negativamente.
Após um compasso de espera, levantou o rosto e disse: “Não faço ideia”.
Todos os donativos só ficariam dentro do camião TIR mais de cinco horas depois. Com muito esforço e o sentimento de dever cumprido.
Paulo Raposo, o camionista, que nos levaria até Pombal, fez-nos sinal para subir, já o relógio marcava para lá das 17 horas. Diz-nos que já não vamos parar em Cabo Ruivo, que lá outro camião irá recolher as doações, e que vamos só parar em Campo de Ourique antes de seguirmos para o destino final. Já do alto da cabine do camião, com tudo carregado nas nossas costas vimos ainda pessoas chegarem com donativos.
Do Chiado a Campo de Ourique pareceu um instante. Guiados por batedores, nem parecia que já transportávamos cerca de seis toneladas de roupa, comida e bebida na carga.
O camião chegou à Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique por volta as 18 horas com um cenário completamente diferente. Havia vários voluntários e a mesma alegria de um quartel completamente cheio de donativos.
Desta vez a visita guiada é feita por José Armando, Chefe do Quadro de Honra. José é bombeiro há uma vida, aos 14 anos começou a colaborar, ali, em Campo de Ourique, e dali não mais sairia. Hoje tem 64 anos de idade e a alegria de ver a também os seus filhos e netos, como bombeiros e como voluntários. “Isto aqui faz-se muito das famílias”, diz-nos.
“É incrível a solidariedade das pessoas”, conta José à medida que nos guia pelos corredores e salas do quartel. “Não há dúvida nenhuma de que a população é fundamental. Ajudam muito, já ontem escoámos através dos Bombeiros Lisbonenses parte disto com uma carrinha de madrugada”.
No entanto, aqui sente-se também outra preocupação. Em Pedrógão Grande está uma equipa de seis homens com uma viatura de combate aos incêndios urbanos na Proteção de Aldeias, e a distância entre estes e os que ficam sente-se. A missão é de 48 a 72 horas, e eles já lá estão há mais de 24.
“Esta senhora é esposa de um senhor que está em combate. O marido está lá em cima e ela e a filha estão aqui a ajudar. É esta solidariedade de que falo”, aponta José. Lá ao fundo, Telma está em lágrimas, tinha falado com o marido há um bocadinho. Estava tudo bem, mas o peso das horas que faltavam contar até à sua chegada ainda se sentiam. Na altura, não quis falar connosco. Ficaria para mais tarde.
“A tragédia que aconteceu vai ficar para sempre marcada [na memória], mesmo de todas aquelas pessoas que ‘só se lembram de Santa Bárbara quando faz trovões’, essas pessoas têm sido solidárias. Nunca mais ninguém se vai esquecer de uma tragédia destas”, continua José realçando que “a procissão ainda vai no adro” e que ainda não começou o verão”.
“Deus queira que não haja mais, mas a gente já sabe que vai acontecer”, despede-se de nós José antes de ir ajudar os outros a carregar o camião.
“Lá em cima” é uma expressão que vamos ouvir muito no tempo que passamos neste quartel. Tirámos a prova dos nove quando conhecemos a dona Elia Sousa, de 63 anos, que estava já com 24 horas em cima das pernas. Roubou dias ao trabalho para estar aqui e diz que se pudesse “ia lá para cima” ajudar. Algo que passava de possibilidade a certeza, caso a sua filha, que é bombeira, tivesse ido combater o incêndio, confidencia-nos.
Ao fundo do quartel, Hugo Simões e Paulo Alfar, comandante dos Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique conversam. A solidariedade foi muito bem vinda, mas sentiram que não tiveram o apoio devido dos serviços municipais de Proteção Civil.
“Os bombeiros podem ser um ponto de receção, mas depois tem de haver alguém que faça escoar os produtos”, desabafa Hugo Simões.
No final, “o balanço é positivo”, e esta segunda-feira “só não houve tanta gente porque tivemos [Bombeiros de Campo de Ourique] de começar a dizer às pessoas para não virem”, conta-nos Paulo Alfar. “Não é que não quiséssemos, mas o que temos já chegava”, sublinha.
No final, o que ambos queriam dizer, e concordam em dizer, é que “estas coisas já têm de estar planeadas antes para se poder escoar com maior rapidez”.
“Para termos este camião aqui, houve uma empresa que teve de perder dinheiro para fazer isto, porque nós não temos capacidade”, sublinha o comandante Simões.
Uma voluntária interrompe a conversa para perguntar aos comandantes, sem distinção, o que fazer com os bolos e com tanto leite. “Esses produtos vão-se estragar”, diz um deles.
Aqui “há artigos que vamos optar por não enviar, porque lá vão-se estragar. Vamos doá-los ainda hoje a uma empresa de re-food, que fará a distribuição da comida por Lisboa”, conta-nos o comandante Alfar.
Lá fora, já se batiam palmas pelo esforço. As doações estavam todas despachadas, o camião estava completamente cheio em largura, e a meia altura. Ali não se faziam contas aos números, era incontável a quantidade de doações, mas pela informação que nos foi dada era certo que estavam 12 a 13 toneladas.
O abraço deu-se entre todos. Missão cumprida na segunda paragem e a a partir de ali só nos aguardava o destino final: Pombal. Camião a trabalhar, batedores alinhados, e todas as doações seguiam a caminho do distrito de Leiria.
No caminho fomos conversando com Paulo. Nenhum de nós sabia o que esperar quando lá chegássemos. Ele dizia para nos prepararmos para uma noite longa.
A viagem fez-se tranquilamente. À saída da Autoestrada número 1, um carro da polícia de Pombal esperava-nos. Guiaram-nos até às instalações dos Bombeiros Voluntários de Pombal.
À chegada, o cenário prometia realmente de uma noite longa. Fomos recebidos pela professora Adelaide e pelo Jorge, ambos da Cruz Vermelha de Pombal. Eram eles que estavam a coordenar as ações, mas, à primeira vista, não parecia haver muito para coordernar.
Eram poucas as pessoas, que por vezes mal se viam, perdidas a trabalhar a organizar os mantimentos que ali chegavam, para depois serem devidamente expedidos para as zonas de catástrofe.
De entre as centenas de águas, salienta-se um corredor só de caixas de cartão. Nesse corredor, Cristiana, 25 anos, não pára. Já é o segundo dia que vem de Tomar para Pombal para ajudar. Esta segunda-feira teve mesmo de meter folga do trabalho. “Falei com a minha patroa e ela aceitou. Disse para eu vir”, sorri.
“Não conseguia vir para aqui e ficar parada, então pus-me a organizar a roupa toda”, conta-nos. Os caixotes selados eram já uma montanha, mas os montes de roupa faziam prever que o número de caixas duplicasse, triplicasse, quadruplicasse.
Perguntámos à Cristiana se fazia ideia de quantas caixas de mantimentos sairiam para o terreno. Ela não fazia ideia, mas apontou-nos para os seus ‘riscos’. Lá estava, uma a uma, cada caixa. “Homem”, “mulher”, “criança e jovem”, “toalhas” e por aí adiante. Eram demasiadas unidades, mas saltava à vista o facto de a roupa de criança e jovem ser, de longe, a que mais tem sido escoada.
Nestes poucos minutos de conversa, durante os quais a voluntária de Tomar não deu um segundo de descanso à fita-cola e às caixas, chegaram dois sacos enormes de roupa para a montanha.
Junto ao camião discutia-se, ainda, a melhor estratégia para esvaziar um camião TIR cheio de alimentos.
Numa volta rápida pelo quartel apanhamos as conversas cruzadas de quem veio "lá de cima". É impressionante. Um bombeiro, para explicar ao outro a velocidade a que o fogo se alastrou, conta que depois de combater as chamas em Pedrógão foi comer, e nesse curto espaço de tempo fez-se noite com as cinzas em Figueiró [dos Vinhos].
“O fogo só vai parar quando quiser”, ouvimos a o outro bombeiro.
De regresso ao camião, a ordem já estava imposta. A professora Adelaide tinha pedido a uma voluntária que colocasse uma publicação no Facebook da Cruz Vermelha de Pombal a pedir voluntários para ajudar e já começava a chegar ajuda. Fizeram-se duas filas para descarregar as águas, à mão, colocaram-se carrinhos das compras vazios ao lado para colocar os restantes produtos e ensacá-los, antes de os levar para as salas.
Duas pessoas subiram para dentro do camião e começaram a passar as coisas cá para baixo. Eram 22h40 quando começaram e o número de voluntários não chegava a 20. De forma impressionante, as garagens dos bombeiros encheram-se de pessoas que saíram já tarde de suas casas para vir ajudar. Pouco tempo depois o número de pessoas que ali estavam para ajudar ultrapassava as 50 e o camião, aquele que demorou cerca de sete horas a ser carregado foi escoado, à mão, em uma hora e dez minutos.
Depois de carregamentos do Algarve, de Braga, da Parede, foi a vez de Lisboa deixar o seu contributo em Pombal que foi, ao longo destes dias, crescendo como centro de recolha de alimentos e mantimentos devido quer à posição central no mapa, quer à capacidade de mobilização de voluntários. “É incrível, não é?”, diz-nos Adelaide.
Estão todos de parabéns, mas sobretudo cansados. Depois de abraços, alguns começam a abandonar as instalações dos bombeiros, outros vão comer ou beber uma água, outros continuam a encaixotar, outros vão descansar. Alguns já estão há demasiadas horas aqui.
É no tempo que dura a pausa de um cigarro que ouvimos as palavras dos que no dia anterior, no domingo, e naquele dia, segunda-feira, tinham ido ao terreno (Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande e Castanheira de Pêra) levar mantimentos.
“Ver na televisão é uma coisa, ver ao vivo é completamente diferente”, diz a professora Adelaide, que apaga o cigarro e é a primeira a abandonar o grupo.
Ficamos com Mário Martins e Fábio Gonçalves, dois dos responsáveis por finalizarem todo este processo que começou com uma grua a atravessar um jardim em Lisboa e que terminou com um pequeno mar de voluntários ao virar do dia.
O cansaço é notório e recordar o que se vê não é fácil. “Passei na estrada da morte. Não vi os corpos, mas vi os carros. Vi a destruição…”, diz-nos Mário. Em Castanheira de Pera, o retrato que Mário traz é de um quartel exausto, de pânico, de dor.
Não é preciso fazer perguntas. O testemunho continua como se fosse a confirmação do terror que vimos nas televisões e nas fotografias e em que só acreditamos realmente quando estamos com alguém que esteve mesmo lá.
Fábio traz consigo a história de uma senhora, idosa, de 80 anos que se recusou a sair de casa. “Lutou sozinha para manter a casa em pé, só teve a ajuda de dois populares. Os bombeiros nem chegaram a ir lá”, conta-nos. “Ela é viúva, os filhos não estão cá, ela não tem nada a perder. Se a casa arder ela arde com ela. Foi isto que ela nos disse”, recorda Fábio.
Ambos de Pombal, por entre relatos de gado morto, aldeias consumidas, bombeiros exaustos e faltas de meios, concordam numa coisa, que dizem, que só pode perceber quem conhece mesmo bem a região: “Os bombeiros estão a ser muito criticados, mas quem lá está, quem lá esteve, sabe que eles fizeram tudo o que podiam. Podiam lá estar 10 mil homens, o cenário era igual”, diz Mário, ao mesmo tempo que Fábio acena que sim com a cabeça.
Amanhã, depois de amanhã, e quem sabe, também nos dias a seguir alguém, ou talvez de novo o Mário, o Fábio e a Adelaide, terão de voltar ao terreno para levar as toneladas de mantimentos armazenadas nas garagens dos Bombeiros Voluntários de Pombal, que foram chegando através uma onda de solidariedade a que ninguém ficou indiferente. Alguém terá de reviver estes cenários, este inferno, de chamas, de terror e de dor, para cumprir a última parte desta viagem: levar o que for preciso para manter os bombeiros, os heróis, de que todos nós precisamos, aptos, saudáveis, seguros e capazes de lutar contra o incêndio que fez todo um país arder.
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