Zaporijia tem sido uma das preocupações da comunidade internacional depois do assalto militar russo à central nuclear, deixando a Europa em suspenso pelo perigo de um desastre nuclear.
Construída em Enerhodar, ainda no tempo da antiga URSS (1980), a central de Zaporijia tem seis reatores de água pressurizada, é a maior da Europa e uma das dez maiores centrais nucleares do mundo.
A Ucrânia tem cinco centrais nucleares, incluindo Chernobyl, que está desativada desde o acidente de 25 de abril de 1986, num total de 15 reatores. Destes, quatro estão na central de Rivne, dois em Khmelnitski, três no sul da Ucrânia e os referidos seis em Zaporijia.
Desde a invasão da Rússia, em fevereiro de 2022, as centrais nucleares ucranianas têm sido uma preocupação tanto para as autoridades locais como para a comunidade internacional.
É que, apesar da convenção de Genebra dizer que, em caso de guerra, “centrais nucleares de produção de energia eléctrica, não serão objecto de ataques mesmo que constituam objetivos militares”, a Rússia ignorou por completo o referido artigo 56 e tomou de assalto o controle da central de Zaporijia, em março.
Chegou-se a temer o pior, já que os bombardeamentos chegaram a 150 metros de um dos reatores, provocando alguns incêndios nas imediações. No entanto, para os especialistas, um dos maiores perigos para a central é perder o sistema de arrefecimento dos reatores que evita a fusão do núcleo ou a fuga de radiação, e não os bombardeamentos, propriamente ditos.
“Na altura em que foi feito o primeiro ataque, em que se bombardeou a região com obuses, apenas o reator 4 estava operacional, a cerca de 60% da sua capacidade. O reator 1 estava em manutenção. Os reatores 2 e 3 estavam em modo de paragem. Os reatores 5 e 6 estavam no modo de reserva, a funcionar a baixa potência”, descreve Rui Curado Silva, professor de Instrumentação Nuclear na Universidade de Coimbra, em entrevista ao SAPO24.
Nas últimas semanas, a central só manteve um reator a funcionar, que foi desativado no sábado passado. “O que era perigoso era o reator que estava a funcionar em pleno ficar sem o fornecimento de energia elétrica. Não tendo a possibilidade de arrefecer o seu núcleo, poderia fundir e originar um acidente parecido com o que aconteceu em Fukushima”, compara o especialista.
“Em Fukushima, eles tinham geradores a gasóleo” para situações de emergência, “mas como estes ficaram inundados por causa do tsunami, não ativaram, dando-se a tal fusão do reator e o acidente que todos sabemos hoje”, recorda.
No caso de Zaporijia, para a central funcionar corretamente, precisa de corrente externa de fornecimento de energia elétrica (linhas de 750 volts), normalmente, têm mais que uma ligada para haver redundância
“O que aconteceu nas últimas semanas foi: primeiro a central foi cortada da rede elétrica, ficou sem alimentação externa e depois uma central térmica a carvão, que está logo ao lado e que fornece energia através de uma linha elétrica de socorro, ou seja, de emergência, também foi cortada”.
O que valeu para evitar o desastre foi um nível de segurança suplementar, que foi introduzido sobretudo depois de Fukushima: os tais geradores a gasóleo, que neste caso, “não foram inundados”. De acordo com o especialista, estando os geradores a funcionar, é possível arrefecer o núcleo dos reatores, das barras nucleares que estavam cheias de urânio e que precisam de mergulhar constantemente nas piscinas para arrefecer e manter a segurança da central.
“O problema é que estes geradores a gasóleo só asseguram energia por uns dias (+/- 7 dias)”, avisa o professor. “E depois podem voltar a ser reabastecidos, mas neste caso a questão que se coloca seria por quem? Pelos russos, pelos ucranianos?”, questiona.
O corte de energia em toda a zona de Enerhodar, deixou o único reator ativo em perigo e toda a comunidade internacional, incluindo a Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA, na sigla em Inglês), em alerta máximo de preocupação. “Sem energia não é possível manter o sistema de arrefecimento dos reatores e das piscinas, onde está a arrefecer o combustível usado, e sequer desligar o reator em segurança”.
Felizmente a energia foi restabelecida e foi possível desativar o último reator. No entanto, mesmo desativado em segurança, “o reator tem de ser constantemente arrefecido, tal como a água das piscinas de combustível usado que também precisa de energia elétrica, para evitar acidentes, que, contudo, seriam em menor risco. Todavia, permanece o risco de radioatividade”, lembra Curado da Silva.
De acordo com o professor de Instrumentação Nuclear da Universidade de Coimbra, “as barras de urânio do combustível usado têm que estar dentro dessas piscinas com água, porque a água também protege das radiações emitidas, sendo que esse combustível tem de estar submerso durante, pelo menos, oito anos até poder ser retirado e tratado”, explica.
O material dos reatores pode fundir se não for arrefecido, e esse é o pior cenário e foi o que aconteceu em Chernobyl e Fukushima.
“Outra situação também grave, que pode acontecer, é as piscinas deixarem de ter energia elétrica para o processo de arrefecimento. Ou, no caso de Zaporijia, um obus atingir uma das piscinas e elas perderem água”.
“Uma fuga dessa água altamente contaminada é muito perigosa para a região. Já houve várias fugas pequenas da água das piscinas. Por exemplo, na Inglaterra levaram anos para reparar esse tipo de fuga”, informa.
“Para além disso, há muito material altamente radioativo que já saiu das piscinas e está ali guardado na central e que, a haver um ataque, pode espalhar poeiras pela região”, alerta.
Então, os reatores precisam de estar em arrefecimento constante, mesmo desativados. “Na verdade eles não estão desligados, apenas não estão a produzir energia elétrica para a rede”, explica Curado da Silva. Estão em modo "baixo potência de funcionamento".
Sem energia para os manter, poderão surgir fugas e até evaporação, causando nuvens radioativas e, neste último caso, chegar a mais pontos da Europa. Daí se falar do tal risco de um acidente nuclear para toda a Europa.
Questionado se o risco neste momento é mínimo, o professor e investigador responde que “não é mínimo, apenas está controlado.” Tem havido altos e baixos, e neste momento, “não é o de maior perigo”.
“A situação, com o que tem acontecido nos últimos dias, tem estado melhor”, tranquiliza o professor e investigador do Laboratório de Instrumentação e Física das Partículas da Universidade de Coimbra.
Na segunda-feira, o diretor da IAEA disse que é urgente estabelecer um compromisso pela Rússia e pela Ucrânia para não atacar ou bombardear a fábrica.
"Tentamos mantê-lo simples, tentamos torná-lo prático, porque precisamos dele o mais rápido possível", disse Grossi, uma vez que os bombardeamentos próximo da central de Zaproijia não foram interrompidos.
Basta um erro de cálculo para que o alvo falhe e atinja a central. “Apesar dos cenários mais prováveis de acidente, daqueles que conseguimos imaginar tendo em conta o que terá acontecido no passado, aquilo que eu acho que será mais perigoso é uma dessas bombas atingir as piscinas e a água vaporizar”, diz o professor da Universidade de Coimbra.
“A água vaporiza-se, vai para a atmosfera e pode criar-se uma nuvem altamente contaminada, mas será um problema que não irá afetar Portugal e até países à volta. Será uma situação localizada. Mas podem sempre acontecer acidentes que nunca pensamos, situações imprevisíveis”, acrescenta.
“Em Chernobyl, curiosamente, surgiu uma situação que podia ser muito pior, caso acontecesse, e ninguém fala nisso, mas está registada”, lembra o investigador.
“Quando foi utilizada água para arrefecer a zona que explodiu do reator, este estava em plena fusão, formou-se uma piscina de água por baixo e a estrutura do reator estava a partir-se e a cair em cima dessa água por baixo do reator. Se o reator tivesse caído nessa água, ia provocar uma explosão brutal e fazer estragos num raio de 50 a 100 km e a Europa ia ficar completamente contaminada. A onda de poluição ia atingir zonas bem distantes deixando grandes partes da Europa sem possibilidade de habitar por causa da contaminação”, descreve Curado da Silva.
“Felizmente, o problema foi detectado a tempo e conseguiram tirar a água por intermédio de pessoas que se voluntariaram para o fazer. Quando o reator em fusão caiu já não estava lá a água e evitou-se a explosão. Ninguém tinha pensado nisso, aliás esse pormenor está representado na série Chernobyl, se quiserem ver para melhor perceber o que aconteceu”, sugere o especialista.
Questionado sobre o modo como está a acompanhar a situação na Central Nuclear, o professor reforça, “no caso de Zaporijia, o mais assustador é desligarem a central da rede elétrica”.
O professor lança, também, um alerta para a segurança dos técnicos que se encontram dentro da central, dizendo que é preciso assegurar aos engenheiros condições para continuarem o seu trabalho, porque, avisa, “os acidentes podem dar-se por erro humano. Pode não ser um obus ou uma operação militar, mas sim um erro humano”, reforça. “Por exemplo, muitos acidentes que aconteceram em centrais foram por falha humana”, relembra.
Para Rui Curado da Silva, a opção mais segura para a central nuclear de Zaporijia passa por seguir as indicações da Agência Atómica (IAEA) e manter a central no regime atual, “creio que é a opção mais correta, e não sair dali até que os soldados abandonem o local e que a situação se resolva”, conclui o professor da Universidade de Coimbra.
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