Na Cidade Universitária de Lisboa, a poucos minutos do encerramento das urnas, só existiam dois edifícios iluminados. A Reitoria da Universidade, com as portas ainda abertas para aqueles que queriam exercer o direito de voto, respeitando-se a distância social, e a Faculdade de Direito, cercada por carrinhas de diretos e carros de reportagem, com tanta azáfama quanto a permitida pelas restrições da pandemia.
Ali, no lugar que Marcelo Rebelo de Sousa descreveu, no discurso de 2016, depois de ser eleito Presidente da República, como "casa da liberdade, de pluralismo, de abertura de espírito (...) [que] primeiro como aluno e depois como professor fez de mim muito daquilo que sou”, dezenas de jornalistas voltavam a aguardar Marcelo, desta feita, recandidato à Presidência da República.
Se o lugar e o político são os mesmos, já os tempos parecem outros. Toda a moldura humana é composta por jornalistas. Não há apoiantes e a comitiva da campanha resume-se a um punhado de jovens que gerem a acreditação da comunicação social. Aquela chegada apoteótica e o salão cheio de 2016 eram imagens de outra vida.
Marcelo Rebelo de Sousa só chegaria àquele ponto da capital lisboeta dali a muitas horas. Até então, Marcelo acompanhou as projeções a partir de casa, lugar que serviu na noite de domingo de quartel-general. Foi aí que falou duas vezes aos jornalistas, a primeira para comentar as projeções da abstenção, a segunda para avisar que só iria de Cascais para Lisboa quando as urnas fechassem, já depois da divulgação das sondagens à boca das urnas. Para o recandidato ainda era cedo “para dizer qual era o resultado final”, mas a vitória à primeira volta já não parecia fugir-lhe e todas as atenções recaíam agora sobre a luta do segundo lugar entre André Ventura e Ana Gomes.
Com o discurso empurrado para o final da noite, na Alameda da Cidade Universitária sobrava a calma e o silêncio, somente interrompido pelos diretos das televisões, as conversas entre jornalistas, pelos poucos aviões que descolavam e levantavam voo do Aeroporto Humberto Delgado e pelos autocarros da Carris sem passageiros que cumpriam as rotas. Se num ato de magia alguém estalasse os dedos e fizesse desaparecer as carrinhas de diretos, quem por ali passasse dificilmente podia prever que dali a umas horas iria falar o vencedor das eleições presidenciais.
Só quando o relógio bateu as oito horas da noite e os noticiários, todos, sem exceção, apontaram para uma vitória tranquila de Marcelo à primeira volta, é que este cenário se alterou. Aí, o pequeno grupo de jovens apoiantes e integrantes da comitiva da campanha, soltou um tímido festejo que mal se ouviu cá fora.
À exceção do exercício do direito de voto, o dia era para ficar casa, realidade a que regressámos desde que na semana passada o Governo decretou um confinamento geral idêntico ao de março de 2020, na sequência da entrada da pandemia provocada pelo novo coronavírus em Portugal. Assim, por volta das 20h30, três carros da Polícia de Segurança Pública chegaram à Cidade Universitária e estacionaram à porta da Faculdade de Letras de faróis postos na entrada da Faculdade de Direito, mesmo em frente. Os agentes afirmaram estar ali por ordens superiores. Nada mais. Nem uma palavra sobre o que se passava a poucas dezenas de metros de distância, para o lugar onde fixavam o olhar e onde, por aquela hora, há cinco anos, acorriam tantas pessoas em festa. Mas do outro lado da estrada não estava 2016, não havia um mar de gente a gritar o nome de um homem que viria a liderar Portugal, não havia bandeiras, não havia buzinas, não havia barulho. Do outro lado da estrada estava a pandemia, na forma de todas as restrições que impediam que esta fosse uma noite eleitoral como as outras. A pandemia, um dos maiores pesos que Marcelo carregou num mandato que esteve longe de ser um passeio à beira-mar, marcado pelos incêndios de junho e outubro de 2017, o caso do assalto a Tancos ou a morte de um cidadão ucraniano à mãos do SEF.
Formalmente reeleito, o discurso do Presidente de Portugal para os próximos cinco anos não podia ter começado de outra forma.
"A 2 de novembro, dia da evocação das vítimas da pandemia no Palácio de Belém, havia 2.590 mortos. São agora 10.469. Para eles, assim como para os mortos não covid, destes quase 11 meses de provação, vai o meu primeiro emocionado pensamento, para eles e para as suas famílias".
"São, com os demais que sofreram e sofrem e lutam dia após dia pela vida e pela saúde, o retrato do Portugal em que decorreu esta eleição, em plena pandemia agravada em janeiro, com estado de emergência e confinamento inevitável, com crise económica e social, queda de crescimento e projeção na pobreza e das desigualdades", continuou.
“Para eles vai o meu e o nosso pensamento”, afirmou, relembrando também as famílias afetadas pela covid-19.
Mas se em 2016 não poderíamos imaginar que um vírus iria alterar profundamente a nossa forma de viver, também estaríamos longe de poder projetar o crescimento de um movimento que à data tinha pouca expressão: a direita radical. Por essa altura, André Ventura ainda era militante do Partido Social Democrata e estava a mais de um ano de liderar a candidatura do mesmo partido de Marcelo Rebelo de Sousa à Câmara Municipal de Loures, que ficaria marcada por uma campanha polémica em torno das considerações do candidato sobre a comunidade cigana daquele concelho.
Em 2019, Ventura fundou o Chega e conseguiu ser eleito deputado da Assembleia da República depois de uma primeira participação eleitoral nas eleições europeias que não deram fruto. O partido cresceu, ganhou expressão e André Ventura anunciou que estaria na corrida a Belém, desta feita com um novo peso, uma vez que para além da representação parlamentar tinha conseguido eleger dois deputados nas eleições regionais dos Açores, ganhando força para criar um governo à direita naquela região autónoma. Na sexta-feira, as sondagens colocavam o candidato apoiado pelo Chega na luta pelo segundo lugar - um cenário que se confirmou, mesmo que este tenha acabado por ficar em terceiro lugar.
A expressão da incursão desta direita na campanha eleitoral, também estaria ali à porta da Faculdade de Direito. Quando Marcelo Rebelo de Sousa saiu do carro e se dirigia para a entrada do edifício, um homem de etnia cigana furou entre o grupo de jornalistas para pedir ao Presidente reeleito que fizesse André Ventura cumprir a promessa de se demitir. Uma promessa feita pelo líder do Chega e candidato presidencial caso tivesse menos votos que Ana Gomes - o que aconteceu.
O pedido ficou sem resposta, mas foi bem audível por todos. Assim, à porta da Faculdade estava o reflexo de uma pandemia e do resultado da ascensão de um discurso populista. Lá dentro, também não seria esquecido.
Prometendo "continuar a ser um Presidente de todos e de cada um dos portugueses, um Presidente próximo, um Presidente que estabilize, um Presidente que una, que não seja de uns, os bons, contra os outros, os maus, que não seja um Presidente de fação, um Presidente que respeite o pluralismo e a diferença, um Presidente que nunca desista da justiça social", Marcelo repetia por outras palavras aquilo que ali tinha dito em 2016 quando disse que iria “servir todos os portugueses por igual sem descriminações e distinções”, agora com todo um outro significado.
Segundo Marcelo Rebelo de Sousa, o voto dos portugueses respondeu "à pergunta crucial acerca do que não querem e do que querem para Portugal nos próximos cinco anos", e não querem, entre outras coisas, "uma radicalização e um extremismo nas pessoas, nas atitudes, na vida social e política".
"Não querem uma pandemia infindável, uma crise económica sem termo à vista, um empobrecimento agravado, um recuo na comparação com outras sociedades, desde logo europeias, um sistema político lento a perceber a mudança", considerou.
Os portugueses "querem combate à pobreza, à desigualdade e à exclusão, querem sistema político estável, com governação forte, sustentada e credível, e alternativa também forte, para que a sensação de vazio não convide a desesperos e a aventuras", afirmou, em tom de advertência.
O discurso de 17 minutos feito no átrio da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa terminou pouco depois da meia-noite com um “Viva Portugal”. Ao contrário de há cinco anos, Marcelo chegou sozinho e partiu sozinho. Sem gritos e aplausos que o abraçassem. Mas com mais votos e maior percentagem do que em 2016, o que apontou como sinal de que os portugueses "querem mais e melhor em proximidade, em convergência, em estabilidade, em construção de pontes, em exigência, em justiça social, e de modo mais urgente em gestão da pandemia".
Marcelo Rebelo de Sousa disse que se recusa a ver esta reeleição como “um cheque em branco”. Nem podia, muito menos quando duas das maiores batalhas, herdadas de si para si, do último mandato, estavam ali mesmo à porta.
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