Tem sido uma voz crítica e incómoda, muitas vezes para o Partido Socialista, onde milita. Diplomata, ex-deputada europeia e agora candidata à Presidência da República, Ana Gomes acredita que uma segunda volta nas eleições lhe dará mais certeza de vitória.

Garante que é a única candidata socialista na corrida - apesar de Marisa Matias - mas, ao contrário do PAN, que decidiu apontá-la como opção do partido, não tem o apoio declarado do Partido Socialista e de algumas das suas mais altas figuras.

Quer acabar com a extrema-direita quase tanto como pôr fim à corrupção e, de acordo com as sondagens, é com André Ventura que disputa taco-a-taco o número de votos. Se for eleita presidente da República promete pedir a reapreciação do Chega, um partido que considera "absolutamente anti-democrático, no programa e na prática".

Portugal tem um potencial extraordinário que desperdiça por falta de organização e por um défice democrático que persiste do tempo da ditadura

Disse que vai a todo o lado onde haja portugueses. No estrangeiro há muitos e não vão poder votar. Faz sentido?

Miseravelmente, a Assembleia da República não aprovou legislação para regular o voto por correspondência, que já estava previsto e que foi praticado nas legislativas. Isto aconteceu há cinco anos e voltou a acontecer agora. No fundo, frustram o direito dos nossos concidadãos de votar, o que é gravíssimo, ainda por cima porque há cinco anos eram 300 mil eleitores e agora são 1,5 milhões. É frustrante que, havendo meios tecnológicos que permitem às pessoas seguir o que se passa em Portugal, a Assembleia da República persista em não regular esse direito.

Houve também uma experiência de voto eletrónico em Évora. Conhece os resultados?

Não, mas gostaria que esse projeto-piloto tivesse sido desenvolvido e aplicado no contexto destas eleições. Sei que a Constituição da República prevê para quem vota no território de Portugal o voto presencial, mas poderia fazer-se uma interpretação do voto eletrónico como voto presencial, havendo garantia de fiabilidade e da segurança dos sistemas. Isto supunha investir, e houve dez meses para isso ser preparado, visto que a pandemia chegou em março do ano passado e há muito se sabia que as eleições seriam em janeiro de 2021. Não houve vontade política dos vários atores políticos, mas o principal responsável é presidente da República e quem acabou por se apresentar a um novo mandato.

Todos os partidos políticos têm uma quota parte da responsabilidade, mas os cidadãos é que votam os partidos

O que define a candidata Ana Gomes?

[Ri] Sou cidadã portuguesa e gosto muito de Portugal, que tem um potencial extraordinário que desperdiça por falta de organização e por um défice democrático que em muitos aspetos ainda persiste do tempo da ditadura. Persiste até nalguma apatia de muitos cidadãos e na forma como ainda se conformam, quando deviam exigir prestação de contas, boa governação, resposta aos problemas do país, não às autoridades nacionais, mas também às autoridades europeias. É por isso que digo aos jovens: reclamem o país, este país é vosso. Tenho a certeza de que se os jovens reclamarem o país e passarem a ser mais interventivos e exigentes, como a minha geração foi no tempo da ditadura, todos viverão melhor.

A sua geração tinha a ditadura para combater. Que motivos tem a nova geração para lutar?

Então não tem motivos? A política é a governação do país. Vamos conformar-nos com um país estagnado, que não passa da cepa-torta, não faz as reformas estruturais que deve fazer face aos grandes desafios que tem pela frente, e que não são apenas portugueses, são globais? Temos o desafio das alterações climáticas, que impõe mudanças no modo de produção, que impõe transformações, como a transformação energética e digital, que impõe uma transformação social, para que haja emprego de qualidade e para que os portugueses não continuem e emigrar. Emigrar, em muitos aspetos, é desistir do país, sobretudo quando estamos a falar de jovens altamente qualificados de que temos absoluta necessidade. E precisamos de uma reforma administrativa para governar melhor o país e para corrigir as assimetrias de desenvolvimento, voltar a repovoar o interior, que é muito mais central do que o litoral.

Se o PS tivesse apresentado um candidato próprio da sua área, eu não me teria apresentado

Desde o 25 de Abril já houve 22 governos, 14 liderados pelo Partido Socialista.

Sim, e depois? A questão é esta: não vale a pena culpar apenas os partidos políticos. Todos os partidos políticos têm uma quota parte da responsabilidade, mas os cidadãos é que votam os partidos. São os cidadãos que têm de se integrar nos partidos políticos e comandar os partidos políticos e fazê-los funcionar de acordo com  as necessidades do país em vez de os transformar em grupos fechados e em clubes de empregos e em agências de captura do Estado por interesses. Esta responsabilidade é coletiva, não é apenas dos que estão nos partidos políticos. É por isso que importa votar; escolher importa. Vamos escolher mais do mesmo ou vamos tentar fazer diferente? É por isso que me apresento às eleições presidenciais, porque acho que posso fazer diferente e ser diferente se for eleita presidente da República.

Se o PS tivesse apresentado um candidato credível e da sua área política nesta eleições, ter-se-ia candidatado?

Claro que não. Se o PS tivesse apresentado um candidato próprio da sua área - e não há falta de gente capaz, competente e com capacidade - naturalmente que eu não me teria apresentado. Não precisava de me apresentar, acabei de me aposentar da função pública, trabalhei muito estes anos todos - e não me queixo, gosto de trabalhar -, e se o PS não tivesse determinado a falta de comparência nestas eleições, eu não estaria aqui. Acredito que estas eleições são muito importantes, ainda mais quando a democracia está sob ataque, que não é apenas nacional, é organizado a nível internacional. Entendi que devia apresentar-me e estou aqui com muito gosto e preparada para dar a cara à luta e para trabalhar e fazer a Presidência da República de que os portugueses precisam para o país sair da cepa torta.

O que acha que levou António Costa a apoiar Marcelo a um segundo mandato?

Não sei bem quem António Costa apoia. De facto, na Autoeuropa ele sugeriu isso, mas depois também foi António Costa que dirigiu a reunião nos órgãos próprios do Partido Socialista em que o PS decidiu não ter posição e dar liberdade de voto. Hoje vejo algumas pessoas do inner circle a sugerir, por exemplo, a votação no candidato do Partido Comunista. Não sei, portanto, em quem é que vota António Costa, o que sei é que só há uma candidata socialista a concorrer: eu. Sempre me assumi como socialista e tenho muita honra de ser socialista do partido de Mário Soares, de Salgado Zenha, de António Guterres, de Manuel Alegre, de João Cravinho, de Jorge Sampaio. 

Que projeto tem para Portugal, quais são as suas causas?

São muitas, a prioritária é resolver a crise sanitária e impedir que a pandemia, nas suas consequências económicas e sociais de agravamento das desigualdades, cave mais o fosso entre portugueses. É fundamental que o Estado e a sociedade se mobilizem para apoiar aqueles que precisam absolutamente de especial apoio neste momento. Depois, quero fazer as mudanças estruturais que os desafios que o país enfrenta exigem: alterações climáticas, investimento público para ajudar a criar novas atividades económicas que criem emprego de qualidade, não o emprego que continua a apostar neste flagelo dos salários baixos e da precariedade. Precisamos de criar emprego de qualidade para não continuarmos a empurrar os nossos jovens para a emigração. E precisamos de operar a transformação energética e digital, respondendo às alterações climáticas. Não há transformação económica que ponha o país a crescer com sustentabilidade se não houver também sustentabilidade do ponto de vista ambiental e social. Isto implica uma reorganização administrativa do país, que não pode continuar a ser um país fortemente centralizado, pelo contrário, deve apostar na gestão de proximidade, que confia nas autoridades e nas instituições locais.

Como presidente da República tratarei de dar todas as condições para que este governo cumpra a legislatura

O presidente da República não tem poderes executivos. O que pode fazer nos diversos campos que mencionou?

O presidente da República tem imensa capacidade de influência exercendo apenas e só os poderes que a Constituição lhe confere, no total respeito pelos poderes de quem governa, que é o governo, e pelas instituições que legislam, que é a Assembleia da República, e pelas que administram a justiça. A interação permanente do presidente com essas outras instituições pode fazer a diferença toda, se for um presidente vigilante e inteligente na gestão dessa articulação, umas vezes em privado, outras vezes em público, convocando toda a sociedade civil para se mobilizar por causas que merecem e precisam do seu envolvimento para fazer mudanças estratégicas.

Uma das notícias do dia é a pandemia e a subida do número de mortos e infetados. A forma como está a ser conduzido o combate à pandemia está a revelar-se um fracasso. Isto, aliado a casos como o do SEF, Tancos e outros, é motivo para perder a confiança no governo, para fazer o governo cair?

Penso que não precisamos de acrescentar uma crise política a esta fase de crise sanitária terrível, com implicações económicas e sociais. Como presidente da República tratarei de dar todas as condições para que este governo cumpra a legislatura. Sendo eleita presidente da República a minha primeira atuação será conversar com o primeiro-ministro, saber da sua avaliação dos desafios prioritários que o país tem, e proporcionar ao governo todas as condições para que cumpra a legislatura. E mais: favorecer os entendimentos que deem respaldo ao governo para fazer as reformas de fundo de que o país necessita e que não podem continuar a ser adiadas. Todas as mudanças e agravamentos que a própria crise sanitária implica são um incentivo para que não se perca mais tempo, para que se avance nessas reformas estruturais, como a da justiça. A justiça bloqueada é um dos mais graves custos para o desenvolvimento do país e tem de ser rapidamente ultrapassada, sendo que a prioridade neste momento é a saúde e reforçar o Serviço Nacional de Saúde.

Existe alguma divisão sobre se as escolas devem manter-se abertas ou devem fechar. Tem uma opinião sobre este tema?

Olho para esta questão com muita apreensão. Tenho sete netos, com idades compreendidas entre os nove e os 18 anos, e todos aprenderam com o primeiro confinamento como é importante voltar à escola, querem muito o ensino presencial. Mas, sobretudo os que estão nas idades intermédias, percebem que o risco da escola fechar é mais devido ao comportamento dos mais velhos fora da escola do que dentro da escola, onde as regras são cumpridas. Isto é um problema que as autoridades sanitárias e escolares e o próprio governo têm de ponderar para que o contágio não continue a propagar-se a esta velocidade e para que a pressão brutal sobre os serviços de saúde diminua.

Julgo que seria de integrar a reforma do SEF numa reforma mais geral das nossas forças de segurança

A escola pública está hoje mais bem preparada do que em março do ano passado para enfrentar o ensino online?

Incomparavelmente. Mas não é apenas uma questão de aulas online, que nunca substituirão o ensino presencial, é que a escola não é apenas um local de aprendizagem, é também um espaço de inclusão. A escola é o grande elevador social e é também o grande cuidador; há muitas crianças e jovens que só comem se forem à escola, que sinalizam famílias desprotegidas e vulneráveis ou situações de violência doméstica, situações que deixaram de acontecer se se perder o contacto com a escola. Penso que esta é uma das razões por que o governo entendeu não fechar ainda as escolas, mas temo que com o agravar dos números venha a ser necessário fazê-lo. Imagino que isto venha a ser necessário, mas não tenho todos os dados, é ao governo e ao presidente da República que compete fazer essa avaliação.

Depois de ter acontecido a morte de um cidadão à guarda do Estado português tem-se falado na reorganização da PSP, GNR e SEF. Concorda com a reorganização das forças de segurança?

Essa é uma responsabilidade do governo. De qualquer maneira penso que o presidente não pode estar alheio às questões fundamentais da reorganização das forças de segurança, que, penso eu, estão extremamente pulverizadas no país e, até por uma questão de economia de recursos e favorecimento das sinergias, deviam ser reorganizadas - e mesmo para não se verificarem os episódios de rivalidade a que temos visto a assistir ou duplicação de funções. Nesse quadro, julgo que seria de integrar a reforma do SEF numa reforma mais geral das nossas forças de segurança e, desde logo, garantir os alertas da Europol e de outras instâncias nacionais são ouvido no que  toca às forças de segurança estarem a ser infiltradas por elementos da extrema-direita - uma questão muito descurada nos últimos anos, até pelo presidente da República. Tanto as Forças Armadas como as forças de segurança precisam de estar bem equipadas, bem instaladas, bem remuneradas, bem treinadas para estarem motivadas para cumprir as respetivas missões e para se lhes poder exigir um recrutamento que não ponha em causa a sua credibilidade e eficácia, que não seja pervertido por forças da extrema-direita que querem comprometer o Estado de direito.

Não elegemos por sufrágio direto universal o presidente da República para ele ser um verbo de encher, mas sim para que faça juízos políticos em momentos decisivos

Fala muitas vezes das agendas pouco democráticas, imagino que esteja a falar do Chega, um partido teve a aprovação do Tribunal Constitucional...

Pouco democráticas não, completamente anti-democráticas. Pedirei ao Ministério Público, que promoverá ou não, a reapreciação junto do Tribunal Constitucional do partido Chega, um partido que tem um programa que quer destruir a Constituição e uma prática reiterada de incitamento ao ódio, à violência, à segregação e que quer destruir as Nações Unidas, que acompanha partidos que querem destruir a União Europeia. Marcelo Rebelo de Sousa acusou-me de não o ter feito enquanto cidadã, mas falo-ei enquanto presidente, porque esta é também uma responsabilidade do presidente.

créditos: MÁRIO CRUZ/LUSA

Trabalhou com Ramalho Eanes, o presidente que foi a favor da legalização do Partido Comunista Português. Não é a mesma coisa?

Não ponho no mesmo plano, de maneira nenhuma, um partido como o PCP, que tem 45 anos de respeito pela Constituição - que foi até um dos autores da Constituição e sistematicamente tem zelado pelo seu cumprimento - e o Chega, que aparece não desgarrado de outras formações que aí estão com projetos autoritários e anti-democráticos que querem destruir a Constituição. Ao contrário do professor Marcelo Rebelo de Sousa, não considero que essa formação seja apenas mais uma corrente de opinião. O Tribunal Constitucional é a única entidade que pode reapreciar se o Chega está ou não a cumprir a legalidade - acredito que os requisitos para a legalização do partido não podem ser só os formais, também tem de se levar em conta o programa do partido e a prática reiterada do partido. Não elegemos por sufrágio direto universal o presidente da República para ele ser um verbo de encher, mas sim para que faça juízos políticos em momentos decisivos. 

Vejo a facilitação de um acordo como o dos Açores inserida numa estratégia para propiciar mudanças no partido de origem do professor Marcelo Rebelo de Sousa.

Marcelo Rebelo de Sousa também fez um juízo politico, só que diferente do seu.

Na minha opinião o professor Marcelo Rebelo de Sousa jamais deveria ter aceitado nos Açores uma formação parlamentar que dependesse do apoio do Chega, que não é uma formação como outra qualquer, é um perigo para a democracia. É por isso que noutros países há linhas vermelhas. Para mim este foi o ato mais grave do presidente da República, a desvalorização do que representa a ultra-direita e normalização nos Açores de uma acordo que admite que poderá ser replicado a nível nacional.

Em vez de combater o Chega a esquerda não devia estar a combater os problemas que de certa forma determinaram o aparecimento do partido?

Deixe-me dizer que não cometo a injúria de pensar que as pessoas que votam no Chega são equivalentes ao perigo que vejo na direção do partido. O meu objetivo é justamente reconquistar essas pessoas para  o campo democrático. Os apoiantes são pessoas que estão desiludidas com a democracia, que se sentem maltratadas, sem oportunidades e que acabam ir atrás de uma retórica altamente inflamatória. Compreendo essas pessoas. Estou aqui justamente pela regeneração da democracia, porque os democratas têm de pôr a mão na consciência e ver que se pessoas se afastaram da democracia foi porque a democracia, em muitos aspetos, falhou. Muitos democratas com responsabilidades políticas não cumpriram os objetivos da democracia: ajudar a solucionar os problemas das pessoas. Estou aqui para trabalhar pela regeneração dos próprios partidos políticos democráticos que, quantas vezes, se deixaram perverter e instrumentalizar por interesses contrários ao interesse público, que é o motivo por que há tanta gente desiludida e zangada com os políticos.

Afirmou que Marcelo Rebelo de Sousa já está a trabalhar para deixar no poder o seu partido, o PSD, mas que esse alguém não será Rui Rio. Pode concretizar?

É uma interpretação pessoal que faço conhecendo alguma coisa dos meandros das principais formações políticas portuguesas. Toda a gente sabe que o atual presidente da República nunca morreu de amores por Rui Rio e vejo a facilitação de um acordo como o dos Açores inserida numa estratégia para propiciar mudanças no partido de origem do professor Marcelo Rebelo de Sousa, que é bem conhecido por ter comprazimento pelos jogos políticos de bastidores. Ele é pelos bastidores, eu sou pela transparência. Mas não posso desconhecer que há aí movimentações, eu sei que há, e achei que era importante partilhar.

António Costa tem feito um bom trabalho enquanto primeiro-ministro?

O balanço que faço é globalmente positivo, e penso que neste momento, mais do que nunca, os portugueses não precisam de somar à crise sanitária uma crise política. Mais do que nunca é preciso ter governantes experientes - espero que não lhe falte coragem e discernimento para tomar as decisões que a crise sanitária e as sequelas económicas e sociais que aí vêm vão impor. 

Porque devem os portugueses acreditar em si?

Porque sou genuína, não engano ninguém, não tenho fingimentos e tenho um percurso de combate pela transparência, pela boa governação, pelos direitos humanos, pelo respeito pelo Estado de direito e pela justiça, que são compromissos que importam aos portugueses num momento tão dramático, em que o país está numa encruzilhada e precisa de fazer transformações estruturais na economia, na organização do Estado. Portugal precisa de uma presidente que mobilize os cidadãos, que os una e que faça o país avançar.

Viverei bem com os poderes que esta Constituição confere ao presidente da República, mas não terei nenhuma objeção se houver uma maioria qualificada de dois terços na Assembleia da República que entenda que há pontos que merecem ser revistos

Fala na justiça, um tema que lhe é particularmente benquisto...

É importante que os cidadãos vejam a justiça fazer-se em tempo útil - justiça demorada é justiça negada. Estou farta de ver a justiça em Portugal ser bloqueada ou obstruída - e não é por falta de operadores capazes e competentes, é por falta de meios, por falta de incentivo e por falta de coragem política. A criação de mega-processos segue, a meu ver, uma estratégia de pôr a justiça a trabalhar para a prescrição. Questiono como é possível este último decreto presidencial que impõe o confinamento obrigatório não incluir a suspensão da prescrição. Isto não serve a justiça, serve os criminosos que contam com o decurso do tempo para a prescrição ocorrer, para degradar as provas e para, eventualmente, eles próprios falecerem e o dinheiro poder passar branqueadinho para as suas famílias. Isto é indecoroso, não pode continuar. E é um dos principais fatores de atraso em Portugal, um entrave ao desenvolvimento e um dos custos de contexto mais citados, uma forma de desviar recursos do Estado para os patrimónios de privados e também uma forma de incentivar a alienação dos cidadãos relativamente à democracia. Outro dos grandes problemas é o das portas giratórias, pessoas que ora estão no privado, ora estão no público, ora estão no governo, ora estão em grandes empresas, são consultores das sociedades de advogados subcontratadas para fazer a lei e depois vão explorar os buracos da lei ao serviço de entidades públicas e privadas. Há uma promiscuidade típica de um sistema neoliberal, que foi o que vigorou nas últimas décadas e que minou tudo em Portugal, em particular os partidos do chamado arco da governação. É este tipo de bloqueio que dá armas e argumentos às forças da extrema-direita.

A Constituição portuguesa como está serve bem o país?

Temos uma excelente Constituição, naturalmente com muita ambição programática, com muitos direitos que são de realização progressiva e que nalguns casos têm até ficado no tinteiro e que frustraram muito os seus objetivos. Falo por exemplo em relação às propinas do ensino universitário, que devia ser tendencialmente gratuito. Mas é um documento notável. As constituições são documentos vivos, não estão escritas na pedra, por isso preveem mecanismos de revisão constitucional. Viverei bem com os poderes que esta Constituição confere ao presidente da República, mas não terei nenhuma objeção se houver uma maioria qualificada de dois terços na Assembleia da República que entenda que há pontos que merecem ser revistos e não deixarei de contribuir com as minhas perspetivas sobre o que pode ser mudado. Um dos pontos que favoreceria uma mudança, mas não penso que tenha de se fazer uma revisão constitucional por causa disso, seria equacionar a possibilidade de passar a haver um único mandato alargado de sete anos em vez de dois mandatos consecutivos de cinco anos. Isto evitaria um primeiro mandato menos interventivo na medida em que há a expectativa de uma reeleição.

Já pensou nos nomes que escolheria para o Conselho de Estado?

Não pensei de todo, mas pensei que teria uma preocupação de género clara, equilibrar no género a representação no Conselho de Estado - preocupação que, obviamente, o professor Marcelo Rebelo de Sousa não teve. Terei também a preocupação de ter jovens, ou um representante dos jovens portugueses, no Conselho de Estado. E, porque uma das principais razões para me ter candidato é fazer a diferença aos jovens do país, porque quero que o país tenha futuro, tratarei de reunir regularmente na Presidência da República com conselho de jovens que represente a pluralidade da sociedade portuguesa. A preocupação da paridade de género será estendida a todos os órgãos de nomeação presidencial.

Joaquim Ferreira do Amaral disse em 2001, num debate entre candidato à Presidência, que os políticos estavam num plano descendente. Esta afirmação é valida 20 anos depois?

Decidi suspender a minha atividade diplomática e dedicar-me à política em finais de 2002 por estar assustada com a imagem da política portuguesa que me era projetada através da RTP Internacional no meu gabinete em Jacarta e que era uma imagem em que preponderavam os debates sobre futebol. Isto não era, nem longe nem de perto, comparável com a importância ainda maior que têm hoje não só os debates sobre futebol mas tudo o que está ligado à industria dos interesses. Não tenho nada contra o futebol ou contra os clubes enquanto desporto, mas sim contra tudo o que diga respeito aos negócios do futebol e à sua imbricação com a política e com esquemas de captura do Estado por todo o tipo de atividades criminosas, do branqueamento de capitais à corrupção, passando pela fuga ao fisco. E devo dizer que a minha apreciação é que o plano descendente ainda tinha muito para descer. E desceu.

Boicotar a regionalização é boicotar uma parte do processo democrático, que é isso que o professor Marcelo tem feito. Esse controlo é indispensável para que o dinheiro dos fundos seja bem gasto

Marcelo Rebelo de Sousa é acusado de falar por tudo e por nada. Esta é uma acusação que também lhe é feita: atirar em todas as direções. Isto tira ou não credibilidade às acusações e denuncias que faz?

Não. Atiro para onde tenho fundamentos para atirar. Normalmente as acusações que faço são consubstanciadas em participações formais às autoridades. Tenho passado muitos dados às autoridades, tenho escrito muitas cartas a todo o tipo de autoridades - políticas, judiciais, europeias, nacionais - com dados concretos e dispondo-me sempre a colaborar com a justiça, o que tenho feito muitas vezes. Não falo para o ar. Agora, quem não gosta do que eu digo e se sente incomodado tem de tentar desqualificar-me; desde me chamarem justicialista a populista, tudo lhes serve. Continuo a fazer o que acho que importa porque não desisto deste país.

Esteve muitos anos no Parlamento Europeu. Portugal vai receber cerca de seis mil milhões de euros por ano até 2027, nunca recebemos tanto dinheiro. Tem receio que esses fundos sejam mal utilizados?

Isso preocupa-me e uma das razões por que me candidato é por achar que posso fazer a diferença também aí, trabalhando em articulação leal com o governo e com todas as instâncias, do poder politico e não só, para que esse dinheiro seja bem aplicado. Isto supõe que o Estado, nos diversos níveis, toma as decisões acertadas e que há transparência e controlo democrático: escrutínio e prestação de contas. E é exatamente por isso que defendo - e esta é uma grande diferença em relação os professor Marcelo - que o país precisa absolutamente de se reorganizar administrativamente, precisa de caminhar para a regionalização - prevista na Constituição. Porque a regionalização é uma gestão e proximidade e é também um controlo democrático de proximidade, que não se faz só ao nível central, tem de se fazer ao nível local e intermédio e exige a mobilização da sociedade civil. Boicotar a regionalização é boicotar uma parte do processo democrático, que é isso que o professor Marcelo tem feito. Esse controlo é indispensável para que o dinheiro dos fundos seja bem gasto.

Em 2010, ainda no tempo de José Sócrates, foi apresentado um plano de combate à corrupção. Em 2015 o governo de António Costa apresentou novo plano e, no final do ano passado, mais um. Vamos no terceiro e nem sabemos os resultados do primeiro. Parece-lhe normal?

É a prática habitual: fazer-se um plano para lançar areia para os olhos dos cidadãos e tudo ficar na mesma. É isso que combato. Lembro-me de o Dr. João Cravinho ter sido muito crítico em relação ao plano de combate à corrupção do tempo de José Sócrates e pontar falhas graves que mostravam que o plano não era para cumprir. Mas não vamos só falar nesses planos que, ciclicamente, são acenados sem que haja real vontade política de fazer a diferença. Há várias coisas que mostram que não se quis fazer a diferença, desde logo tudo o que diga respeito ao controlo efetivo das declarações de património e rendimento dos responsáveis políticos. Quando sabemos que a entidade que é suposto controlar isto não tem meios para o fazer, logo aí está tudo inquinado. Mas também podemos falar dos tempos da troika: a promessa de supervisão máxima, limpeza máxima de tudo o que eram práticas pouco transparente ou de corrupção ou de distorção da concorrência acabou por ser uma oportunidade para uma corrupção máxima, designadamente através dos esquemas de privatização de empresas públicas que davam lucro, como os CTT. Ou empresas que eram mal geridas de propósito para haver um pretexto para serem privatizadas, como os Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Ou contratos que justificaram a quase bancarrota que levou à intervenção da troika, como o dos submarinos, que foi pago em 2010 para não agravar mais o Orçamento do Estado e que foi ruinoso e corrupto, como se demonstrou através do processo na Alemanha. Na Alemanha houve corruptores condenados por terem corrompido quadros da administração pública e políticos em Portugal, não sabemos quem são os corrompidos porque não se quer saber.

O que seria para si um mau resultado nestas presidenciais?

Estou a concorrer para ganhar. Penso que é possível ir à segunda volta e, havendo segunda volta, tudo é possível.