“O país avança quando as suas instituições se fortalecem, quando aumenta a competência dos seus quadros e a sua nomeação e ascensão tem por base o mérito. E também quando a gestão da coisa pública é feita com transparência. Pretendemos assim que o país dê um importante salto qualitativo, melhorando o desempenho dos servidores públicos depois das eleições”. Quem fala é José Eduardo dos Santos, presidente angolano desde 1979.
“Este sinal deve ser dado agora que estamos a escolher os nossos candidatos, para infundir confiança no povo e para que este reafirme a sua confiança no MPLA”, prossegue o líder do partido desde sempre no poder, momentos antes de anunciar quem lhe sucede no palácio cor de rosa.
João Lourenço, é este o nome. Foi aprovado pelo Comité Central do MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola – no início de dezembro do ano passado. O Bureau Político tratou do resto da lista, pondo José Eduardo dos Santos num elegível terceiro lugar, porém, o líder angolano (e do MPLA), anunciou, em março último, que quer abandonar a vida política em 2018.
“Com a aprovação da lista completa dos candidatos, o MPLA tem as condições criadas para começar a mobilizar o povo, de Cabinda ao Cunene, e para apresentar no momento certo os seus candidatos ao Tribunal Constitucional”, disse José Eduardo.
O que procura, então, um país, de Cabinda ao Cunene, que anda há mais de quarenta anos a tentar encontrar-se? A história de Angola, desde que Portugal a entregou à própria sorte, veste-se de intrigas, conflitos, petróleo, que contrastam com as vibrantes samacacas que dão cor às ruas de Luanda, uma cidade que não ficaria deslocada no planalto europeu ou na planície norte-americana.
A vinte anos de Angola pisar a terra da independência, João Manuel Gonçalves Lourenço nascia no Lobito a 5 de março de 1954. No mesmo ano em que Vergílio Ferreira publicava Manhã Submersa, onde conta a história no seminário do Fundão de um seu alter-ego, António Lopes, o Borralho. O seminarista de Vergílio não chega “a ministro de Deus”, como era ambição de Dona Estefânia, que o apadrinhava. Em Angola, porém, João Lourenço, depois de estagiar no partido, chega a ministro da Defesa de José Eduardo dos Santos e prepara-se agora para lhe suceder na Colina Alta.
O que faz um romance de Vergílio Ferreira num perfil sobre o futuro presidente angolano? Faz de chave. Porque se no livro temos um adolescente que tudo faz para se esconder do futuro que lhe traçam, na realidade de Angola temos um ex-presidente que tudo tenta para traçar um futuro do qual querem que desapareça. Uma analogia por inversão, portanto: o protagonista de Vergílio Ferreira quer sair e não o deixam; o Zedu quer sair mas ficar e não sabe se consegue.
Não é a primeira vez que Eduardo dos Santos, há mais de três décadas sentado na cadeira mais alta de Angola, anuncia que se vai retirar. Desta vez, porém, a debilidade que o atira para viagens a Barcelona, onde recebe tratamentos, é por demais evidente. Os rumores da morte de José Eduardo vão povoando as ladainhas sibiladas nas sombras de Luanda, porém, ei-lo, hirto, a sair pelo próprio pé.
Na cadeira o mais provável é que se sente João Lourenço, aprovado como cabeça de lista do MPLA a 2 de dezembro. Só em fevereiro, porém, foi confirmado por Eduardo dos Santos como o candidato escolhido pelo partido para o substituir no palácio presidencial. De ministro da Defesa, João Lourenço passa agora a garante da defesa de um Estado dependente dos empréstimos da China para se reconstruir e reinventar, reinterpretando a própria ambição.
A escolha não foi a mais óbvia. Houve quem estivesse à espera de uma sucessão mais dinástica que aquela que a escolha de Lourenço deixa antever. Nos corredores do poder angolano, Fernando Dias dos Santos, que ocupou todos os lugares importantes, desde primeiro-ministro a presidente do Parlamento, perfilava-se como o nome mais óbvio. Porém, de coisas óbvias se não faz a política, tanto que nem Nandó, como lhe chamam, nem Manuel Vicente, atual vice de José Eduardo, acabaram na sala de espera ao trono angolano.
Ainda assim, diz o surpreendido Washington Post, João Lourenço é “o candidato da continuidade”. Pode-se pensar que seja o candidato da “evolução na continuidade”, no preâmbulo de uma hipotética “primavera Lourencista”, se nos apetecer afundar pelas referências à transição do Salazar, debilitado, para o Marcello Caetano, cujas ideias de abertura esbarraram nos dinossauros do regime português.
Lourenço, porém, não é Caetano. Nem Angola é Portugal. “É um desafio grande que embora difícil não é impossível”, diz João Lourenço. E diz também que está “preparado a assumir este desafio, que quer o camarada Presidente José Eduardo dos Santos, quer o partido, colocam na [sua] mão [sic]”, disse João Lourenço, citado pelo ‘Jornal de Angola', de quatro de fevereiro.
Apesar de relativamente desconhecido, não vê grandeza nas eventuais dúvidas em torno da popularidade, como lhe chama o ‘Jornal de Angola’. “Penso não ser um eterno desconhecido”, disse Lourenço citado pelo jornal angolano. “Sou quadro do partido há muitos anos e desempenhei muitas funções. Já fui secretário-geral do partido e nessa condição andei muito pelo país. Penso que o meu rosto é conhecido e sete meses são suficientes”.
Um membro de um dos partidos na oposição, ouvido pelo ‘Rede Angola’ diz que “para além de o MPLA ser, atualmente, um partido cheio de divisões – facto que pode ser um obstáculo para João Lourenço – nós sabemos que a sua imagem ainda precisa de ser divulgada junto da população. Ele tem pouco apoio das bases do partido e, ao mesmo tempo, precisa de trabalhar fortemente nas zonas peri-urbanas e rurais porque as pessoas não o conhecem bem”.
É certo: até aqui chegar, esteve presente nalguns dos mais importantes momentos da história angolana recente. Nasceu no Lobito, como se disse, a 5 de março de 1954. A mãe, Josefa Gonçalves Cipriano Lourenço, era costureira e o pai, Sequeira João Lourenço, era enfermeiro. Foi mais ou menos por essa altura, meados dos anos 1950, que se encontrou petróleo numa Angola ainda província de Portugal.
Os primeiros estudos foram no Bié, província onde o pai “se encontrava na situação de residência vigiada por 10 anos, após ter estado preso por três anos na prisão de São Paulo, em Luanda, pelo exercício de atividade política clandestina enquanto enfermeiro do Porto de Lobito”, escreve o candidato no curriculum vitæ com que se apresenta na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Depois, seguiu para o Instituto Industrial de Luanda.
Na turma de Lourenço estavam também alguns dos notáveis da vida política e militar angolana: Arlindo Pena, antigo chefe do Estado-Maior das tropas da UNITA (partido da oposição), Georgina Palalo, ex-deputada do Movimento de Jonas Savimbi, Jorge Dombolo, atual secretário da organização do MPLA, entre outras personagens de topo dos partidos que se digladiaram após a independência, em 1975, como explica Gustavo Costa, correspondente do ‘Expresso’ em Luanda, num artigo sobre o candidato na revista daquele semanário português.
Depois, Portugal liberta-se do fascismo e África de Portugal. E em Angola, João Lourenço, “na companhia de outros jovens”, bate-se pela libertação nacional em Ponta Negra, no verão de 1974, no Centro de Instrução Revolucionária de Kalunga, no Congo, tendo feito parte, diz também no documento da CPLP, que integrou “o primeiro grupo de combatentes que entraram em território [angolano] via Miconge-Belize-Buco Zau-Dinge-Cabinda”.
Formado em artilharia pesada, exerceu funções de comissário político em diversos escalões, como o próprio explica. “Desde pelotão, companhia, batalhão, brigada e comissário da 2.ª Região Político-Militar Cabinda, entre 1977 e 78”, pode ler-se no currículo do candidato entregue na CPLP.
Foi enviado, então, para a União Soviética (Rússia e alguns estados satélite), onde esteve a receber formação militar e a fazer o mestrado em Ciências Históricas na Academia Superior Lenine. Esteve lá de 1978 a 1982, quando regressa a Angola. É nesse ano que vai participar nas operações militares em Kwanza Sul, Huambo e Bié, no centro do país, com posto de comando no Huambo.
Sucedem-se os cargos na estrutura partidária e ou do Estado angolano. De 1989 a 1990, vai para o lugar do general Francisco Magalhães Paiva N’Vunda, chefe da direção política nacional das FAPLA – Forças Armadas Populares de Libertação de Angola –, entretanto nomeado ministro do Interior.
Pouco depois está de novo em mudanças e fica durante sete anos, de 1991 a 1998, como secretário do Bureau Político, órgão de direção do partido. Ocupou as pastas da informação, da esfera económica, “por um curto período”, diz o candidato. E foi ainda chefe da bancada parlamentar.
No preâmbulo da viragem do milénio, em 1998, vai desempenhar as funções de secretário geral do MPLA e de presidente da Comissão Constitucional. Sai em 2003 para ser primeiro vice presidente da Assembleia Nacional angolana, onde ficou até 2014, quando subiu para ser ministro da Defesa de José Eduardo dos Santos. No ano passado passou a ser também vice-presidente do MPLA.
General de três estrelas na reserva, João Lourenço é casado com Ana Afonso Dias Lourenço, deputada do MPLA e antiga ministra do Planeamento. É ainda pai de seis filhos. Fala inglês, russo e espanhol, para além, claro, do português. Como passatempo, diz, gosta da leitura, do xadrez, da equitação.
Para além das ligações de Ana Lourenço à banca, o próprio candidato a presidente é acionista do Banco Sol, o que, diz o jornal português ‘Público’, o liga a António Mosquito, “um dos maiores investidores angolanos em Portugal”, escreve o diário.
Lourenço é, assim, um dos dez investidores deste banco (detém 5,42%), tal como Ana Paula dos Santos, mulher do atual presidente angolano, e Mosquito, dono da portuguesa Soares da Costa e acionista da Global Media, a dona dos portugueses ‘Diário de Notícias’, TSF e ‘Jornal de Notícias’, entre outros.
Governação transparente
A promessa é de João Lourenço. Governação “transparente” e “menos burocrática”, nomeadamente com a agilização da concessão de vistos, já que, diz o candidato, há uma necessidade de “coabitação e complementaridade entre investidores nacionais e externos”.
Em julho a agência de informação financeira Bloomberg dava conta, porém, de um travão na continuidade. Os legisladores angolanos aprovaram um documento que impede os futuros presidentes de demitir as chefias militares, policiais e dos serviços secretos. A medida alarga ainda o período destas chefias no poder – de seis para até oito anos.
A oposição critica-a. Diz que é uma mudança pensada para permitir a José Eduardo dos Santos continuar a conduzir os destinos de Angola, mesmo estando longe da cadeira presidencial. José Eduardo dos Santos “não tem intenção de desistir do poder”, diz Gary van Staden, analista da NKC African Economics, consultora sul-africana, à Bloomberg. E acrescenta: o objetivo é “manter bem colocadas as alavancas que garantem o poder, assegurando-se de que os seus amigos das forças de segurança ficam nos seus postos e que ele fica protegido”.
Todavia, para além de uma eventual oposição das engrenagens internas do poder – partidário e militar – João Lourenço tem também pela frente a oposição parlamentar, ainda que o MPLA tenha 175 dos 220 lugares. A UNITA, o maior partido da oposição angolana, considera que José Eduardo dos Santos “decidiu sair sem sair” ao anunciar João Lourenço como o candidato às eleições gerais.
“Sobre a pseudo-sucessão de José Eduardo dos Santos por João Lourenço, a nossa posição é clara: o senhor presidente do MPLA decidiu sair sem sair. Continua a dirigir o MPLA na sua lógica de que é o partido que inspira a ação do Governo”, disse Franco Marcolino Nhany, secretário-geral do partido. “O senhor presidente do MPLA continua a impor, a todo o custo, a sua vontade ao MPLA, mas quem executa a sua vontade passa a ser uma outra pessoa”, acrescentou.
A Constituição angolana, aprovada em 2010, prevê eleições gerais a cada cinco anos, elegendo 130 deputados pelo círculo nacional e mais cinco deputados pelos círculos pelos círculos de cada uma das 18 províncias (num total de 220 deputados).
O cabeça de lista pelo círculo nacional do partido ou coligação de partidos mais votado é automaticamente eleito presidente da República e chefe do Executivo, conforme define a Constituição, moldes em que já decorreram as eleições de 2012. Uma sondagem citada pela Bloomberg dá 61% dos votos a João Lourenço.
A primeira dama
Se no Portugal de Salazar estávamos órfãos de primeira dama presidencial (tal como no Portugal de Marcelo), em Angola a mulher do presidente ocupa um papel importante na vida política e social (e económica) do país – com, aliás, muitos dos membros da família dos Santos.
Ana Paula dos Santos, que como Lourenço tem uma participação no angolano Banco Sol, é uma figura visível em Angola, participando com o marido em eventos no Palácio Presidencial, por exemplo. Mas se a influência da mulher do presidente angolano se notava no reinado de José Eduardo dos Santos, esse efeito só tenderá a aumentar com a chegada de João Lourenço e da mulher, Ana Dias Lourenço.
Preveem os bardos que Ana Lourenço poderá estar sempre no periastro da administração do marido. Depois de desempenhar importantes papéis no MPLA e nos governos de José Eduardo dos Santos, Ana foi para os Estados Unidos da América ocupar altos cargos no Banco Mundial.
José Eduardo dos Santos pode estar de saída, trinta e oito anos depois de ter chegado ao poder. Mas o MPLA, de que continua a ser presidente, esse, vai continuar a decidir o futuro de angola, quarenta e dois anos depois de Portugal lhe ter entregue o país.
Angola, dizem os analistas ouvidos pelo SAPO24, desespera por reformas, tanto da economia como do sistema político. A questão que surge é se João Lourenço terá espaço de manobra e vontade suficientes para deixar de lado o império da família dos Santos e refundar o país.
Voltando a Vergílio Ferreira e à sua manhã submersa, António Lopes, o Borralho, deixa explodir na mão um foguete da Páscoa, que o mutila e impede de continuar no seminário. A vida de seminarista, percebemos, está cheia de perigos, interesses e desdém dos que veem de fora. A João Lourenço está reservado um caminho minado entre os crivos do MPLA, a família dos Santos e um país que vai mergulhando em crises económicas, políticas e sociais.
No romance de 1954, as personagens digladiam-se entre saírem pelos seus meios ou serem expulsas do seminário do Fundão. A primeira é sinal de coragem, bravura. A segunda toma o aspeto de uma sentença vitalícia. José Eduardo dos Santos, débil, como mostram as sucessivas idas a Espanha para tratamentos, escolhe sair antes de ser expulso. Não rebentou foguetes na mão, está só a sair do palco. A dúvida é se ficará nos bastidores a puxar os fios, ou se, antes, serão os filhos do rei a encenar a peça.
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