As “culpas” desta mudança caótica, cheia de enganos e contradições, têm sido atribuídas a protagonistas definidos, conforme a ideologia de quem as atribui. O facto inegável é que os que passaram pelo pior foram aqueles que não tiveram escolha de opções e ficaram numa situação recorrente no mundo a que se costuma chamar “estar do lado errado da História.”

É universalmente reconhecido que a descolonização foi mal feita, as controvérsias residem apenas nas razões do desnorte. Foi uma questão de incompetência funcional, ou de antagonismos políticos?

Eu diria que houve um misto desses dois fatores. Incompetência, porque foi uma situação completamente nova - os decisores políticos e militares eram inexperientes, nunca tinham assumido funções governativas e estavam ao leme de um país em convulsão. A disputa entre o Partido Socialista e o Partido Comunista, com os seus protagonistas a degladiar-se no palco político, e os militares, que queriam chamar a si o protagonismo da revolução e conduzir o processo- entre eles, os spinolistas, a ala conservadora do General. No meio de tudo isto, o Partido Comunista assume uma grande preponderância com o governo do General Vasco Gonçalves e a descolonização é confiada ao Major Melo Antunes, Ministro sem pasta e encarregado do processo. 

Seria um exercício extraordinário avaliar a evolução do pensamento de Melo Antunes, porque de início está completamente ao lado dos movimentos de libertação, Frelimo e MPLA - o próprio diz que “nós, socialistas democráticos, devemos seguir em Angola o modelo aplicado em Moçambique (com a Frelimo) e entregar o poder a um só movimento, o MPLA”. Mas isso não era possível, iria originar uma guerra civil, como aliás aconteceu. Faz as reuniões secretas em Dar Es Salam com o Joaquim Chissano, porque o Samora Machel ainda está fora de Moçambique. Chissano era o decisor da parte da Frelimo. É também ele que reúne com Agostinho Neto em Argel, antes dos Acordos do Alvor. Nos dois processos, moçambicano e angolano, é sempre Melo Antunes.

Almeida Santos e Mário Soares só aparecem para legitimar a solução encontrada. Nos meus dois livros fiz questão de esclarecer essa questão. Quando Melo Antunes chega ao Bussaco, onde está Spínola “a águas” e lhe mostra a folha A4 com o modelo de transição em Moçambique, o General, em vez do ataque de fúria que o Major esperava, ficou atónito, sem palavras, congelado. Foi nesse momento que ele percebeu que se tratava da entrega da soberania aos movimentos armados que nos combateram, e que portanto a presença de Portugal e dos portugueses nas colónias ia ser muito difícil.

O Spínola, apesar daquela arrogância prussiana e pompa pessoal, era ingénuo. Tanto que, na evolução do processo político, cada vez que ele tentava impor a sua vontade, quem ganhava terreno eram os comunistas. Isso aconteceu duas vezes em particular.

Exatamente. E há um outro episódio delicioso. Quem conheceu Mário Soares sabia que tinha uma sagacidade e um humor que só alguns entendiam. Quando vai a Dar Es Salam, depois de feito o acordo secreto, e se apercebe que o essencial está negociado e só foi lá assinar como Ministro dos Negócios Estrangeiros, os jornalistas perguntam-lhe a razão da sua presença, e ele responde: “Vim comprar estatuetas Maconde!”

Isto é muito revelador, porque é a forma de Mário Soares dizer “não vim aqui fazer nada porque já foi tudo negociado nas minhas costas.” Anos mais tarde, Almeida Santos, creio que depois do falecimento de  Soares, acaba por confessar que foi tudo decidido sem a contribuição deles. Não quer dizer que não concordassem com a solução, mas foram os últimos a saber. No Alvor, o papel deles foi por o acordo, em bom português.

A descolonização "tratava-se da entrega da soberania aos movimentos armados que nos combateram, e que portanto a presença de Portugal e dos portugueses nas colónias ia ser muito difícil."

É evidente, nem é preciso ver à distância para perceber, que aqueles acordos não iam funcionar. Os casos de Angola e Moçambique são diferentes. E o da Guiné ainda mais, porque a Guiné era uma verdadeira exploração colonial, onde só tínhamos funcionários em comissão de serviço e capatazes cabo-verdianos, não havia colonos brancos.

Uma feitoria do século XX.

Exatamente. Mas em Angola era evidente que o MPLA, a FPLA e a UNITA não se iam entender. Não se esperava que logo no dia 26 de Abril começassem aos tiros, mas era uma questão de tempo.

Não foi imediatamente porque durante alguns meses ainda não se sabia muito bem para qual lado a balança ia pender. Mas começou logo a haver desconfiança, o desejo de retaliação e de tomar o poder rapidamente. As autoridades ainda eram portuguesas, como Soares Carneiro e o Franco Pinheiro. Eram todos militares de alta patente do tempo do Estado Novo e a situação estava mais ou menos controlada.

Com a queda em Portugal do Governo Palma Carlos e a chegada ao poder de Vasco Gonçalves, tudo muda. É no Verão de 1974, ainda com o General Silvino Silvério Marques, que é contestado sempre com manifestações e greves, que Luanda começa a paralisar. Quando chega Rosa Coutinho, em Outubro, aí sim, o MPLA é nitidamente privilegiado - o que é curioso, porque a UNITA foi o primeiro movimento a pedir tréguas.

"Almeida Santos, creio que depois do falecimento de  Soares, acaba por confessar que foi tudo [descolonização] decidido sem a contribuição deles. Não quer dizer que não concordassem com a solução, mas foram os últimos a saber."

Mas a UNITA estava feita com Portugal e os norte-americanos, não é?

A UNITA nessa altura ainda não tinha o apoio dos norte-americanos, que estavam a colocar as fichas no FPLA de Holden Roberto e no Mobutu, no Zaire. Porque eles tinham Cabinda, que era muito rica em petróleo. A FNLA não assinava as tréguas sem o MPLA assinar, e o MPLA não queria assinar. Portanto, só em Outubro é que Rosa Coutinho consegue que eles assinem, mas com a condição de que todos os homens armados dos movimentos podiam circular livremente em Angola e fixar-se em Luanda. Não no centro da cidade, no chamado “asfalto”, mas nos musseques, os bairros periféricos. Assim, os brancos ficaram cercados. Os movimentos entram em Novembro e começam logo as escaramuças e os bombardeamentos entre eles.

O MPLA era marxista-leninista, apoiado pela URSS, e portanto não lhe passava pela cabeça um governo com vários partidos.

Nem os outros. A FNLA faria uma ditadura tipo América Latina, no modelo Pinochet. O Holden Roberto era tenebroso. A UNITA não tinha apoios estrangeiros, mas também queria governar sozinha. Foi por isso que Melo Antunes, que ao princípio está muito a favor dos movimentos marxistas, Frelimo e MPLA, no Verão de 1975, quando Portugal está a caminhar para uma guerra civil e um modelo soviético, decide apoiar a UNITA, para impedir que o mesmo modelo acontecesse em Angola. É ele quem manda entregar armas portuguesas ao Savimbi, para eles não serem chacinados - já tinha havido o massacre do Pica-Pau. Ele percebe que o MPLA e a FNLA não vão respeitar os acordos e a UNITA vai ser dizimada se não conseguir defender-se.

Aliás, no Sul, muitos portugueses escaparam a ser chacinados porque a UNITA os protegeu. Nem sempre, mas em muitos casos.

"Melo Antunes, que ao princípio está muito a favor dos movimentos marxistas, Frelimo e MPLA, no Verão de 1975, quando Portugal está a caminhar para uma guerra civil e um modelo soviético, decide apoiar a UNITA, para impedir que o mesmo modelo acontecesse em Angola."

Os colonos portugueses, despolitizados, não tinham conhecimento do fim da era colonial, decidido na Conferência de Bandungue, em 1955, e aprovado por votação na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1960. O período em que os europeus tinham dominado os negros e outros povos tinha os dias contados. Os portugueses não foram tão violentos como os ingleses e, sobretudo, como os belgas (no Congo), mas também havia uma subjugação evidente dos negros pelos brancos.

Eu creio que falei nisso, e há frases que significam muito. Um dos meus professores, que é antropólogo, uma vez citou a Ruth Benedict: “A pobreza afasta mais do que a cor da pele.” E é verdade. Portanto, em Angola - não tanto como em Moçambique - havia angolanos que estudaram em universidades em Portugal, faziam parte da Administração, tinham até cargos e viviam em boas habitações, conviviam com as altas esferas. Iam aos bailes, aos banquetes, eram convidados para o palácio do Governo. Essa elite gostava de viver segundo o modelo ocidental e não havia atritos.

Nos subúrbios era diferente. É nos bairros, onde há pobreza e miséria e a injustiça é maior, que se dá a revolta contra o colono, o “vão para a vossa terra.”

"A FNLA faria uma ditadura tipo América Latina, no modelo Pinochet. O Holden Roberto era tenebroso. A UNITA não tinha apoios estrangeiros, mas também queria governar sozinha."

Os colonizados não iriam esquecer séculos de submissão e maus tratos - a convivência, mesmo difícil, só foi possível na África do Sul, na verdade.

Com o Mandela.

Com o Mandela. A África do Sul era diferente, com os boers, uma espécie de “pós-nativos”, que tinham lutado contra e os ingleses - é outra história. Mas é impossível pensar que seria possível em Angola fazer uma república com brancos e negros - enfim, uma república parlamentarista no modelo europeu - que o Spínola achava viável e os colonos provavelmente também achavam. Porque havia muitos brancos que queriam ficar porque tinham nascido lá, alguns até os pais tinham nascido lá, mas tinham um Bilhete de Identidade diferente, eram portugueses de segunda, portanto consideravam-se efetivamente angolanos. Para eles era natural a esperança de que, qualquer que fosse a solução, mesmo que não tivessem o poder porque os negros teriam maiorias parlamentares, eles não seriam excluídos.

Tenho algum pudor em criticar os decisores do passado… Assim como Spínola achava que poderia ser possível, os Estados Unidos também acharam que no Irão, no Iraque e no Afeganistão, poderiam mudar os líderes e criar um regime parlamentarista.

Isso é outra conversa, porque não havia uma questão racial a impedir a formação de tal regime. O que havia era uma falta de tradição democrática das populações autóctones. 

Exatamente. Mas nas nossas colónias seria uma forma de perpetuar a presença dos brancos. Até para que a economia não colapsasse. Mas depois chega-se um certo ponto em que o Vasco Viera de Almeida e a esquerda socialista vêem que vai ser um caos, não há economia nem criação de riqueza. Os negros também vão sofrer.

"É nos bairros, onde há pobreza e miséria e a injustiça é maior, que se dá a revolta contra o colono, o “vão para a vossa terra.”"

Há um aspeto importante: não havia informação nenhuma nem em Portugal, nem em Angola. Em Angola muito menos. Ou seja, aqueles colonos não faziam a mínima ideia do que se passava no mundo, nem sabiam que existia um movimento de descolonização mundial. Porque, se formos ver, os ingleses, que sempre foram uns mandões e achavam-se uma classe superior, abandonaram as colónias deles porque viram que era impossível mantê-las, mesmo tendo uma capacidade poder militar muito superior à nossa. 

Aliás, quando os ingleses questionam a possibilidade da Índia conseguir a independência, Ghandi diz-lhes: “Vocês são cem mil, nós somos mil milhões, não precisamos de fazer guerra contra vocês. Basta que nos recusemos a cooperar.” E os ingleses perceberam e saíram, aliás em condições muito melhores do que nós. O Salazar não tinha essa perceção - não sei se ele acreditava realmente na eternidade do Império; como era pré-Revolução Francesa, achava a Idade Contemporânea uma aberração - portanto achava que essa nova ordem mundial era aberrante. Aliás, isso viu-se precisamente na Índia, em 1961. Os ingleses abandonaram a Índia; como é que nós, com o fraco poder que tínhamos, podíamos pretender segurar aqueles três micro-territórios? E a insanidade de Salazar, ao ordenar ao Vassalo e Silva que se defendesse até à morte. Ou seja, ele preferia que morressem os quatro mil soldados que lá estavam do que entregar os territórios, por uma questão de manter uma “Honra Imperial”. 

Por isso eu vejo-o sempre como o grande responsável pela balbúrdia toda que foi a descolonização.

Em Moçambique, o que se pretendia evitar, e isso está nos relatórios militares, é exatamente uma segunda Índia. O que eles dizem é que vai ser uma vergonha, porque em Moçambique os soldados a partir do 25 de Abril recusam-se a lutar e entregam as armas.

Em Angola não aconteceu o mesmo? 

Não, em Angola é um pouco diferente porque a situação estava praticamente controlada. Havia uns ataques da FNLA no Norte, a partir de Cabinda e do Zaire, e o resto estava pacífico. Os soldados continuaram a obedecer às autoridades, ao Governador e depois ao Presidente da Junta Governativa.

Deixar África, Alexandra Marques
Deixar África, Alexandra Marques créditos: MadreMedia

A tradição militar da cadeia de comando.

A cadeia de comando, exatamente. Obedeciam mas, obviamente, não punham a vida em risco. Cumpriam as tarefas de transporte e demais atividades logísticas, mas entrar em combate, nem pensar. 

Agora, o que é realmente um facto é que, mal são assinados os acordos de Alvor, os movimentos começam a receber massivamente armas que entram por terra e mar, chegam os cubanos, chegam os sul-africanos, portanto Angola já está a ser retalhada. A guerra passa a ser entre os movimentos e os portugueses estão no meio. Os nossos militares deixaram de ser alvos, embora tenha havido casos pontuais em que foram atacados. Mas eram os que se opunham aos assaltos e aos saques. A maioria não queria arriscar a vida, uma vez que a guerra tinha acabado.

"Em Moçambique os soldados a partir do 25 de Abril recusam-se a lutar e entregam as armas."

Havia, e sempre houve, duas posições diferentes. A posição dos portugueses da metrópole era que nos estávamos a sacrificar por pessoas com quem não nos identificávamos - tinham ido para África por vontade própria e tinham de ser eles a resolver os problemas com os negros. E os colonos achavam que nós tínhamos obrigação de ir lá defendê-los. 

O que diziam é que eram portugueses, estavam em Portugal, porque Angola e Moçambique eram Portugal e a obrigação dos militares é defender os cidadãos. Essa contradição entre o que Salazar pretendia, que as colónias eram o mesmo que a metrópole, e a realidade cada vez mais óbvia de que eram países diferentes é que gerava essa contradição. Mesmo assim, se não houve grandes massacres foi porque os militares fizeram colunas de proteção e zonas seguras. Senão teria sido muito mais calamitoso, sobretudo em Angola.

Em Moçambique, a Frelimo toma o poder, não está preparada, obviamente, e o objectivo é a vingança, daí os “campos de reeducação”.

Mas em Moçambique os colonos revoltaram-se contra os nossos militares, não foi?

Sim, até antes do 25 de Abril. Porque consideram que os militares não os defendem, não os protegem das emboscadas. O que a Frelimo fazia era atos de sabotagem - destruir pontes, matar gado, entrar numa fazenda e matar o capataz. E a revolta deles é porque não se sentiam protegidos. 

Em Angola, não. Em Luanda ninguém se apercebia da guerra. São duas situações diferentes.

Agora, em Moçambique há nitidamente uma vingança porque não há guerra civil - para a Frelimo o alvo a abater são os brancos com posses. Não são os brancos pobres, porque vivem como eles, e muitos até ficaram.

[Em Moçambique] havia "uma segregação que não tem a ver com a cor da pele. Os portugueses pobres, nascidos na metrópole, adotaram hábitos africanos e vivem como os africanos."

Aliás há uma palavra para definir os brancos que vivem como os negros e se misturam com eles, que é a cafrealização. É um palavra horrorosa, mas muito própria da colonização portuguesa, que é constituição de família entre os brancos e as negras.

Aliás, achei muito interessante o relatório que é produzido, por coincidência, na altura do 25 de Abril, sobre a sociedade colonial em Moçambique - até coloquei no livro. O relatório diz que os portugueses mais pobres, que vinham de Trás-os-Montes, das beiras, que tinham uma vida duríssima, descalços e a passar fome, em Moçambique tinham uma vida semelhante aos negros. E têm hábitos iguais ou muito parecidos com os africanos, comem com as mãos, não têm casa-de-banho, não têm água canalizada, têm filhos filhos de mulheres negras - nem sequer há casamento, juntam-se, e são considerados uns “selvagens”. Os brancos de Lourenço Marques ou da Beira não se dão com essa gente. Há uma segregação que não tem a ver com a cor da pele. Os portugueses pobres, nascidos na metrópole, adotaram hábitos africanos e vivem como os africanos.

Aí está: cafrealizados.

E depois a visão… Porque é que ainda hoje, 50 anos depois do 25 de Abril, ainda ouvimos jovenzinhos, miúdos, a dizer “monhé” e “chinoca”? Esse preconceito que temos em relação às outras “raças” vem desse tempo.

Bem, o racismo é universal e faz parte da espécie humana.

Sim, sim, tem a ver com o facto de cada etnia se achar superior às outras. Até entre europeus.

Claro. Eu lembro-me que, em Nova Iorque, os italianos e os polacos se detestavam, embora fossem ambos brancos e católicos.

Como se vê no filme do Scorcese, “Gangues de Nova Iorque”, em que os descendentes dos ingleses acham que são os verdadeiros americanos, contra os irlandeses e os italianos.

"Porque é que ainda hoje, 50 anos depois do 25 de Abril, ainda ouvimos jovenzinhos, miúdos, a dizer “monhé” e “chinoca”? Esse preconceito que temos em relação às outras “raças” vem desse tempo."

Esta universalidade do racismo é mais uma razão para pensar que seria impossível criar uma sociedade etnicamente igualitária nas nossas colónias. Aliás, a ideia de “Império” é relativamente recente, porque nós nunca formamos um império. Tínhamos feitorias e provocávamos guerras entre os locais que viviam nesses territórios.

Dividir para reinar.

Nós nunca ocupamos grandes extensões de território. A exceção é o Brasil, com as capitanias, que penetravam no interior à procura de ouro.

Em Angola e Moçambique a preocupação de ocupar território só surge com a questão do Mapa Cor de Rosa, contra os ingleses.

"Como o luso-tropicalismo, que muitos defendem. Era mais brando, não havia uma segregação tipo apartheid, mas era na base do rendimento e da cor da pele."

Exatamente, é uma situação do século XIX. Mas quem mandávamos para África eram os degredados. Uma pena de morte a prazo, porque se esperava que as doenças acabassem por os liquidar. Como os ingleses os mandavam para a Austrália. Então, essa teoria de tivemos um Império com 500 anos é uma lenda. Tivemos uma rede global de pequenas feitorias, isso sim.

Como o luso-tropicalismo, que muitos defendem. Era mais brando, não havia uma segregação tipo apartheid, mas era na base do rendimento e da cor da pele. Como no mundo contemporâneo, em que o racismo não é a cor da pele, é o rendimento. Um angolano, ou outro africano, que entre numa loja da Avenida da Liberdade, a mostrar as notas de 500 euros que o português não tem, é tratado como um príncipe.

Uma coisa interessante é que atualmente trabalham em Angola 100.000 portugueses. É bom para eles e bom para o país. Se a descolonização tivesse sido feita na altura certa, logo no princípio da década de 1960, quando os movimentos queriam negociar, muitos portugueses teriam continuado nas ex-colónias sem termos de passar por aqueles anos de sangue. 

O que se percebe pelos relatórios militares, é que realmente o capitalista, o que investiu, era acionista do Banco de Angola, ou da Diamang, não vivia lá. Ou ia uma ou duas vezes por ano e a sua fortuna estava assegurada. Hoje há as off-shores, mas nessa época havia outras formas de colocar esse dinheiro fora de Angola, ou de Portugal. De quem Angola precisava era dos técnicos, do engenheiro, o agricultor, o padeiro, o condutor do autocarro - os trabalhadores, que não saqueavam a riqueza do país nem maltratavam os negros. Enquanto que em Angola não havia um problema de racismo, os movimentos não atacavam os brancos por racismo. Em Moçambique era diferente, porque havia uma segregação mais acentuada.

Isso é porque os brancos de Moçambique seguiam o modelo da África do Sul. Muitos “britânicos” na segregação, digamos assim.

Exatamente, eram como os “patos bravos” portugueses, têm dinheiro mas não têm cultura. É um processo mimético. Vão às caçadas, mas nunca tinham caçado, fazem bailes, jogam canasta, têm clubes que lhes dão estatuto. Eram uma elite e uma minoria. Tal como em Portugal ainda hoje, os muito ricos vivem numa bolha, não andam de metro, não enfrentam as dificuldades do quotidiano. Em Moçambique havia espaços reservados aos brancos, nos cinemas, nos autocarros…

"Em Angola não havia um problema de racismo, os movimentos não atacavam os brancos por racismo. Em Moçambique era diferente, porque havia uma segregação mais acentuada."

Havia apartheid, no fundo.

E durou até aos anos 60. Portanto, quando se dá o 25 de Abril e a Frelimo vai para o governo de transição, os brancos queriam uma maioria portuguesa 60/40 ou 70/30 e a Frelimo diz que não, deve ser 75/25 a favor dos africanos. E mesmo os nossos governantes que estavam nesse governo de transição eram completamente favoráveis e assinavam de cruz tudo o que os brancos queriam.

Em Moçambique não houve o mesmo êxodo que em Angola?

Houve, mas não foi duma vez só. Enquanto em Angola se deu uma enxurrada nos meses quentes da guerra (civil entre MPLA e FNLA) até ao ponto do Costa Gomes pedir ajuda aos Estados Unidos para os tirar de lá, coisa que evitou até à última. Os americanos - o Kissinger - respondeu que, ou corríamos com o Vasco Gonçalves, ou não havia voos americanos para ninguém sair de Angola. Não foi dito assim tão cruamente, foi mais “não somos uma instituição de caridade”. Porque se os portugueses não morressem nos bombardeamentos, era de fome e doenças, tal como vem no relatório do Capitão Azevedo Martins.

Em Moçambique foi aos poucos. Fogem para a África do Sul quando se assina o acordo de Lusaca, depois alguns ainda voltam, a seguir há os que saem antes, ou depois da independência. Muitos até ficaram como cooperantes, mas depois perceberam que estavam a ser tratados como tinham tratado os negros. Já eram os africanos que tinham prioridade no médico, nas escolas o programa era da Frelimo, ensinavam cultura revolucionária. Em termos remuneratórios também não compensava.

Moçambique não era um país muito rico, aliás é dos mais pobres do mundo, com uma dívida brutal.

Aliás, a situação dos funcionários públicos nas ex-colónias também foi um inferno, porque o Governo em Lisboa mudou várias vezes a situação deles. Primeiro, declarou que deviam ficar em Angola a cumprir as suas funções como se nada tivesse acontecido, depois decidiu que podiam optar por voltar, com certas compensações e continuariam a carreira aqui, finalmente, que vinham como quisessem e perdiam o posto.

O que eu noto - sempre foi, quem estuda História sabe isso - Portugal sempre foi um país onde o Estado se protege a si próprio e, portanto, as instituições que fazem parte do aparelho do Estado e os funcionários públicos em Angola tiveram um tratamento mais privilegiado do que os cidadãos. Puderam trazer as suas coisas, inclusive o carro, sem pagar o frete, o salário foi automaticamente transferido. As famílias vieram logo a seguir ao 25 de Abril com condições muito favoráveis, o que já não aconteceu um ano depois.

"Muitos [brancos] até ficaram como cooperantes [em Moçambique], mas depois perceberam que estavam a ser tratados como tinham tratado os negros."

Porque nós aqui também não tínhamos capacidade de absorver tantos funcionários públicos.

Os primeiros, que eram poucos, foram trabalhar para os ministérios, direções gerais, etc., mas os privados não tinham nenhuma garantia desse tipo. Proprietários de cafés, cantinas, oficinas, padarias, as PMEs, não tiveram compensação, evidentemente. Mesmo no tempo do Salazar os funcionários públicos tinham um direito especial, a licença graciosa, em que podiam acumular três meses de férias anuais, e ao fim de quatro anos podiam vir um ano a Portugal. Era uma benesse por estar a trabalhar tão longe numa colónia.

Alguns tinham salários tão bons que compraram casas em Portugal, isso eu testemunhei - à espera de se reformarem aqui.

É como hoje em dia, que quem tem muito capital e investe no imobiliário tem acesso a informação que os assalariados não têm. O exercício que eu fiz para a tese, ainda longe de ser contactada pela Dom Quixote para o livro - foi o Professor Luis Salgado Matos que me recomendou: “Como é que tu reagirias se te acontecesse? Se tivesse que deixar os meus lugar de pertença?” O meu próximo livro vai ser sobre isso. Há uma carta brutal de um senhor que diz “Eu tenho a minha família enterrada em dois continentes. O meu irmão mais velho e a minha mãe em Angola, o meu pai em Portugal. Nunca mais pude por flores no túmulo da minha mãe.” 

"Porque se os sindicalistas e os líderes dos movimentos de libertação têm todo o direito que se saiba como foi a vida deles, estes portugueses [retornados] merecem que se mostre o que sentiram."

Uma das minhas alunas do curso de Escrita Criativa escreveu a história do pai dela, chama-se “O Africano”. O senhor foi a salto quando era miúdo, escondido no porão dum navio, no princípio do século, fez uma fortuna em Angola, tanto que compraram propriedades aqui, que foi o que valeu à família, e que morreu antes do pior. Ele dizia que nunca sairia de Angola e eu compreendo que quem começa do nada e constrói um pequeno império, porque é que vai perder tudo para os negros? Eu percebo perfeitamente essa indignação.

E ainda ouvir comentários do género “mas defende esta gente?”, “eles vieram roubar-nos os lugares na administração pública!”. E eu fico a pensar que o terceiro livro se justifica porque ainda hoje há um preconceito contra eles.

Aliás, isso aconteceu em França com os pieds noirs, e foi muito violento.

Pois, e tiveram de engolir. Eu não estou a defender ninguém, quero é dar-lhes voz. Porque se os sindicalistas e os líderes dos movimentos de libertação têm todo o direito que se saiba como foi a vida deles, estes portugueses merecem que se mostre o que sentiram. A tal indignação, a dor. Porque se fosse connosco, se calhar ainda éramos mais revoltados. Temos de nos por na pele deles.

"Nas cartas (dos retornados) o que eu encontro muitas vezes - e não está neste livro mas estará no próximo - é que os governantes que culpabilizam não foram só os do pós-25 de Abril. Também se consideram enganados pelos governantes anteriores, pelo Américo Tomás."

Eu também compreendo isso, acho legítimo. O que eu não subscrevo é a acusação de que foram os vencedores do 25 de Abril os responsáveis pela desgraça. Foram os executantes, mas também não tinham conhecimentos políticos, porque a norma do Salazar era “não se meta em política” e, portanto, de repente estavam no poder e não tinham experiência nenhuma de poder.

Nas cartas (dos retornados) o que eu encontro muitas vezes - e não está neste livro mas estará no próximo - é que os governantes que culpabilizam não foram só os do pós-25 de Abril. Também se consideram enganados pelos governantes anteriores, pelo Américo Tomás. Não eram reacionários, como se dizia. Nós em democracia temos muitos direitos; agora, num regime ditatorial, o Estado Novo, em que há tão poucos direitos, de reunião, de associação, etc., o único direito é o de propriedade. Há um relatório de um militar de Moçambique que diz isso: “O português gosta de ser dono do seu pedaço.” No Estado Novo, a ambição de qualquer português era ter algo de seu. Ter uma vida boa, criar os filhos, comida na mesa. E isso lá era possível. Em Portugal não era.

Durante muitos anos esses portugueses pobres emigravam para o Brasil, depois a partir dos anos 20-30 começaram a emigrar para as colónias. E Salazar fomentou isso, com a tal promessa de ser proprietário, ter uma vida melhor. No seu livro contabiliza que foram mais de cem mil entre 1960 e 1970, quando já era evidente que não tinham futuro.

E assim conseguiram ter o seu sonho. Aquilo era muito mais a terra deles do que a que tinham deixado.

Com os portugueses pobres que foram para França aconteceu mais ou menos a mesma coisa. Foram sem nada e construiram uma vida. Agora há um fenómeno interessante, é que são quase todos anti-imigrantes, votam na Marine le Pen. Há muitos que até são presidentes de Câmara pelo partido dela.

Isso é um fenómeno incrível. Os imigrantes dos países lusófonos que estão em Portugal há mais anos são contra a entrada dos imigrantes mais recentes.

É um fenómeno mundial. Os imigrantes mais antigos não querem que entrem novos imigrantes. Isso verifica-se nos Estados Unidos, em França, na Alemanha, em toda a parte. É inacreditável.

Já vi isso nas feiras, a comunidade cigana contra os chineses. Vieram roubar-lhes o negócio.

"No Estado Novo, a ambição de qualquer português era ter algo de seu. Ter uma vida boa, criar os filhos, comida na mesa. E isso lá [nas Colónias] era possível. Em Portugal não era."

Mas esses são de etnias diferentes. O absurdo é quando são da mesma nacionalidade.

Pois, lá está, continuamos a falar de um tipo de racismo. Eu, que já cá estou, tenho direitos que tu não deves ter, senão não chega para todos.

O único país que conheço onde o racismo não é étnico é o Brasil. Lá há um "racismo económico"; é a pobreza que é objecto de discriminação.. Tem imigrantes de toda a parte, árabes e judeus, cristãos e japoneses, e dão-se todos bem.

Isso também se falou que poderia ter acontecido em Angola e Moçambique.

"Os imigrantes mais antigos não querem que entrem novos imigrantes. Isso verifica-se nos Estados Unidos, em França, na Alemanha, em toda a parte. É inacreditável."

Não aconteceu porque tiveram a independência tarde demais. Se tivesse acontecido antes, talvez até à Primeira República.

Na colonização, como na descolonização, como em tudo, nunca planeamos com antecedência. Somos os mestres do improviso.