“Uma vez que a escravatura foi formalmente abolida em 1878, acreditamos que estes serão os últimos registos oficias de escravos no país” explica José Maria Borges.
O livro está embrulhado, tal como o resto do conteúdo das quatro caixas, na sede do arquivo, na Praia.
Nas folhas acastanhadas e com marcas que revelam o peso dos anos, as tabelas manuscritas a tinta são totalmente legíveis: ao lado dos nomes mais compridos dos “senhores”, os proprietários, surgem os respetivos escravos, registados com um ou dois nomes, no máximo.
Marianne, da ilha Brava, Ginvefa, de Bissau, José Correa, da ilha do Fogo, cada qual caracterizado ao detalhe, “com a idade estimada, marcas étnicas, cor de cabelo e dos olhos”, tudo o que ajudasse aos seus senhores a identificá-los.
A candidatura inclui 12 livros destes e 72 folhas de documentos avulsos relativos à constituição e atividade da Comissão Mista Luso-Britânica para a abolição da escravatura, estabelecida em 1842 na ilha da Boavista, para travar o tráfico.
“Nós temos outra documentação relativa à escravatura, noutros fundos. Optámos por esta, por ter informações pertinentes”, explica José Maria Borges, enquanto separa os cordéis que permitem abrir alguns dos outros embrulhos com os documentos avulsos da comissão.
“Cabo Verde, pela sua situação geográfica”, no meio do Atlântico, “era confrontado com barcos piratas”, pelo que as coroas britânica e portuguesa criaram uma força conjunta que pode ter sido uma forma “embrionária da vigilância marítima” que hoje existe.
Entre os documentos relativos a esta comissão, estão regulamentos e descrições de apreensão de embarcações, julgamentos de casos intercetados, informação sobre libertação de escravos e “instruções para navios da marinha de guerra que faziam o controle”.
As quatro caixas são uma amostra de toda a informação que ainda pode ser investigada no arquivo cabo-verdiano.
“Um historiador, filho de descendentes cabo-verdianos nos EUA, está agora no arquivo a fazer uma pesquisa sobre escravatura. Há boa informação que poderá ser tratada por todos aqueles que se interessam por esta temática e não só: dá pistas sobre a constituição da própria sociedade cabo-verdiana”, acrescenta.
Segundo José Maria Borges, “o país foi parte importante na história da humanidade, pela sua localização e pela importância que o tráfico negreiro tinha”, considerando que é importante Cabo Verde conhecer o seu próprio “percurso enquanto povo, que surgiu da mistura entre duas grandes realidades, europeia e africana”.
“É bom conhecermos todo o percurso, até chegarmos onde estamos: não foi sempre fácil, mas é algo que faz parte da nossa história, não temos de escondê-la ou negá-la, é preciso conhecê-la. Até para se conviver melhor com o nosso dia-a-dia”, disse.
José Maria Borges encontra paralelos entre o contexto da escravatura e “os problemas de difícil convivência entre povos” da atualidade, que têm levado a guerras na Europa e Médio Oriente.
“Os problemas são recorrentes, o passado tem estado a acompanhar-nos e, tal como na altura se soube dar resposta”, com uma comissão mista, disse, manifestando a esperança de que “também que as lideranças globais vão conseguir dar resposta e criar pontes para responder às salvaguardas das pessoas” e dos direitos humanos no presente.
A documentação que vai ser candidatada faz parte do fundo documental da Secretaria Geral do Governo cabo-verdiano, o mais consultado do arquivo, e a candidatura à UNESCO levou um ano a ser preparada.
O trabalho decorreu no âmbito da Comissão Nacional de Memória do Mundo — de que o Arquivo Nacional faz parte –, que está também a terminar a candidatura de escritos de Amílcar Cabral, propostos pela Fundação com o mesmo nome do líder histórico das independências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.
*Luís Fonseca (texto), e Elton Monteiro (fotos), da agência Lusa
Comentários