Bem-vindo!
“Bem-vindo” aparece no dicionário como “interjeição para saudar ou cumprimentar hóspedes e visitantes, como forma de manifestar satisfação”.
Embora seja pouca ou nenhuma a satisfação de chegar à Casa Acreditar com um filho no colo, esta foi a melhor palavra que lhe podiam ter dito, garante Elias Capella, pai de um bebé que esteve a ser acompanhado no IPO de Lisboa.
Bem-vindo! Naquelas oito letras cabiam o alívio de ter ali uma solução de alojamento — o orçamento familiar não ia dar para pagar quarto, casa ou hotel —, a alegria de poder ficar com a mulher, o filho e a sogra, o descanso de, não podendo estar na própria casa, ter um teto de conforto.
Elias Capella e Mayra dos Santos, a sua mulher — os dois venezuelanos, ela lusodescendente —, chegaram a Lisboa, vindos da Madeira, quatro dias depois do nascimento do filho. Diretamente da maternidade no Funchal, onde vivem desde junho de 2018, mãe e bebé viajaram de avião com o apoio de uma enfermeira “para o caso de haver algum problema de oxigénio”. Mas não houve. “Tudo correu bem”, conta Mayra, de 33 anos.
Assim que chegaram à capital, Mayra ficou na pediatria do IPO com o bebé. “E eu vim com as malas e tudo para aqui”, lembra Elias, da mesma idade, que descreve os primeiríssimos momentos na Casa Acreditar.
“A porta abriu-se sozinha”, começa por dizer. Elias estava à frente do número 73 da rua Professor Lima Basto. É aqui, mesmo do outro lado da estrada em relação ao IPO, que foi construída há 16 anos a Casa Acreditar de Lisboa.
“A primeira pessoa que vi foi a senhora Ansfriede”, conta, referindo-se à gestora da Casa. Foi aí que ouviu a palavra mágica: “Bem-vindo”!
“Depois de tanta coisa, essa palavra foi de tranquilidade”, explica Elias.
Enquanto isso, no hospital, Mayra acompanhava o filho, uma das 450 crianças que são diagnosticadas com cancro todos os anos em Portugal. Para além do IPO de Lisboa, há mais quatro hospitais no país onde as crianças podem ser acompanhadas: o IPO do Porto, o hospital de São João (também no Porto; esta semana foi anunciada a transferência de oito crianças com cancro dos contentores onde estavam internadas para o edifício principal do hospital), o hospital pediátrico de Coimbra e o hospital Dr. Nélio Mendonça, na Madeira.
Embora tenha nascido no Funchal, uma das cidades com oncologia pediátrica, o filho de Mayra e Elias, precisou de ser transportado para Lisboa, “porque lá não tinham toda a preparação”, explica Mayra, que já sabia que algo se passava com o filho mesmo durante a gravidez.
A história de luta do bebé-recorde começou na barriga da mãe. “Nas consultas, o ginecologista disse que o bebé tinha um problema no rim e que possivelmente era para tirar”, recorda Mayra.
“No dia em que nasceu, depois de uma ressonância, disseram que tinha de ser transportado para Lisboa. Ele nasceu num sábado e viemos na quarta para aqui”, conta a mãe.
Primeiro recorde: andar de avião com quatro dias [não será com certeza um recorde oficial, mas para estes pais o sucesso de cada passo foi significando o ultrapassar de limites — limites de dor, de coragem, de resiliência].
Quando chegaram à capital, voltaram a fazer uma ressonância. A notícia que não queriam ouvir chegou: era uma “massinha”.
O diminutivo parece inevitável no discurso da mãe — “massinha”, “tumorzito”. Como se de uma transferência de dimensões se tratasse: a um bebé pequeno e vulnerável não pode senão corresponder uma doença menor e frágil.
“Era uma massinha, mas não tinham a certeza se era no rim ou na glândula supra-renal. De qualquer forma, tinha de se fazer a cirurgia para tirar”, continua Mayra.
Oito dias depois, já a cirurgia tinha sido feita, os pontos tirados e uma nova ecografia indicava que tudo tinha corrido bem.
Novo recorde alcançado.
Agora o bebé leva consigo um corte na barriga. “Um corte muito grande”, diz a mãe, para quem sorriem os outros moradores da casa enquanto a contrariam com carinho — diz quem lá estava que o corte quase não se via.
De qualquer forma, não foi preciso tirar o rim. “Foi só a massa. O rim estava bom”, diz Mayra num tom aliviado.
Aprender o que é a doença e aprender a viver sem ela
Nesta fase, já Mayra e Elias falavam com alguma serenidade sobre todo o processo. Mas ao início, Mayra recorda que foi tudo muito confuso, em particular quando não lhes era dada informação no hospital, na Madeira, sobre o que se iria passar depois do nascimento. “Só diziam: ‘Têm de ir para Lisboa’. Porquê? Porque é que não pode ser aqui na Madeira?”, questionava-se.
Este é, na realidade, um aspeto que faz muita diferença. A falta de informação “é um grande ponto de fragilidade”, para quem passa pela doença, afirma Patrícia Luz, coordenadora do núcleo sul da Acreditar. “Se a vida já transporta as pessoas para um terreno onde muitas vezes o que sentem é que o chão lhes sai dos pés, se não têm informação sobre o que lhes está a acontecer e o que vai ser dali para a frente, essa sensação ainda é maior”, continua.
Nos primeiros dias depois de receberem o diagnóstico, "os pais ainda estão a adaptar-se ao que lhes está a acontecer”. Mas, logo a seguir, a Acreditar aproxima-se deles, olha, cuida, abraça, respeita os silêncios, os choros, e “explica que existe, que é uma associação de pais, que está cá para acompanhar em todo o percurso da doença e em tudo o que possa vir a ser necessário”, descreve Patrícia.
Este primeiro contacto é feito a pares: com alguém da equipa técnica, vai também um pai, uma mãe ou um jovem que já tenha passado pela doença. A presença destas figuras traz uma “mensagem muito fortalecedora naquele momento”, defende a coordenadora, porque à frente deles está a visão de um futuro que tinha deixado de existir.
Para que as famílias se orientem, as equipas médicas vão estabelecendo pequenas metas. "Agora esta semana é isto, depois para a semana é aquilo, daqui a seis meses vamos estar noutro ponto…”.
E assim vão, de etapa em etapa, detalha Patrícia: primeiro, é comunicada a confirmação do diagnóstico; nessa altura, é imediatamente atribuído o médico de referência para a criança; muitas vezes é necessário fazer exames complementares, para perceber em que ponto está a doença; depois define-se o tratamento; chega então a hora de iniciar os tratamentos, com diferentes crianças a terem protocolos diferentes; sendo a maioria das vezes prolongados no tempo e bastante invasivos, é preciso aguentar os efeitos secundários; quando os médicos consideram que o tratamento chega ao fim… “muitas vezes, a família sente-se tão perdida” quanto no início. Como assim?
"Repare bem: durante dois, três anos, por mais que a família não o desejasse, aquela era a rotina. E de repente dizem: ‘Terminou. Pode ir à sua vida’. Tanto a criança como os pais perguntam: ‘Ir a que vida?’”. “Já não sabem o que era a vida”: o cuidador muitas vezes perdeu o trabalho e está cansado. A família teve de se reestruturar a muitos níveis. "É uma nova vida. Têm de aprender o que é a vida normal depois de tudo aquilo por que passaram”, vai contando empaticamente Patrícia.
Esta é a realidade de muitas famílias. Não foi a de Elias, Mayra e filho. Afinal, estamos perante um bebé-recorde. No dia em que conversámos, aguardavam o resultado de uma ecografia para confirmar se estava tudo bem. Nessa altura, já o bebé estava “muito grande e gordinho”, volta Mayra à carga com os diminutivos. Uma semana depois já estavam de novo na Madeira. Foi pouco mais de um mês para nascer, voar, operar, recuperar e voltar.
Mesmo tendo estado tão pouco tempo na Casa Acreditar de Lisboa (tão pouco que no dia em que fizemos a sessão fotográfica já lá não estavam), esta família deixou boas memórias. A ponto de as crianças terem memória para desenharem os retratos dos dois.
Com as outras famílias ainda hoje trocam mensagens. “Não são 12 famílias. É só uma”, corrige Elias, para explicar “que no dia-a-dia convivem uns com os outros para fazer esquecer a preocupação”.
“Estou muito agradecido por tudo”, diz Elias várias vezes durante a conversa. A sua perspetiva é de que no futuro possa “ajudar de alguma maneira”. Ainda não sabe se como voluntário ou economicamente, mas o pai do bebé-recorde — que entretanto já fez dois meses e meio e está bem de saúde — está seguro de que quer “compensar” tudo o que a Acreditar lhe deu.
Fazer voluntariado na Casa Acreditar de Lisboa foi “a melhor coisa que aconteceu nos últimos tempos” na vida de uma outra personagem da nossa história. Clique aqui para descobrir quem é e o que faz na Casa.
Comentários