Há muitos livros sobre este período recente da nossa História, que alguns de nós (cada vez menos...) ainda vivemos, mas estes três são, sem dúvida, a forma mais abrangente e compacta de compreender os 42 anos da ditadura de “brandos costumes” e convicções ultrapassadas pela evolução da política internacional. A propósito do lançamento de “Orgulhosamente Sós” tivemos oportunidade de conversar com Futcher Pereira, atualmente colocado em Marrocos.
Um aspeto interessante deste último livro, mas que se aplica aos três, é que as fontes são basicamente diplomáticas, o que é original. Nunca tinha lido um livro de História baseado sobretudo nesse tipo de fontes. Acha que a História vista desse ponto de vista reflete de uma maneira certa a História em geral?
Acho que é uma faceta importante. Normalmente, as pessoas estão mais interessadas na política interna (do seu país) do que na política internacional, que é vista como um domínio um pouco mais “esotérico”. Eu, sendo diplomata, acho que a História diplomática também contribui para termos uma visão mais completa do que foram aqueles anos na História de Portugal.
Nestes três livros consideram-se três períodos extremamente importantes de política internacional: a Guerra Civil de Espanha, a II Guerra Mundial e toda a crise em torno das colónias. O que eu quis fazer foi essencialmente narrar como a diplomacia teve importância na política nacional. Isso não pode ser feito abstraindo completamente o que se passava no país, mas o foco está na parte internacional.
No que diz respeito às fontes, é claro que tive de recorrer às fontes diplomáticas, mas também é relevante considerar que o arquivo Salazar, que está na Torre do Tombo, já foi muito explorado e, portanto, dali vêm poucas novidades, ao passo que o Arquivo Histórico e Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros tem sido menos utilizado e ali se encontram informações inéditas.
E também usa fontes públicas, como os diários do Franco Nogueira, que, embora publicados, certamente não foram lidos por muita gente.
Sim, quis fazer uma obra de síntese e para isso foi preciso apoiar-me nas fontes secundárias – o que já está publicado – mas também acrescentar algo mais, daí ter consultado esses arquivos. No primeiro livro, “A diplomacia de Salazar”, a esmagadora maioria das fontes primárias estão publicadas. Há uma edição do MNE chamada “Dez anos de política externa” com documentos diplomáticos referentes ao período da guerra de Espanha, II Guerra Mundial e o pós-guerra, e também há a correspondência do Salazar com o Teotónio Pereira e com o Armindo Monteiro. Depois encontramos as fontes primárias que estão nos arquivos, e as fontes secundárias das pessoas que fizeram livros sobre estas matérias. Nem uma vida inteira chegava para fazer tudo a partir de fontes primárias.
A vantagem de fazer um resumo como o que fez, é que, mesmo as pessoas que se debruçam sobre o Estado Novo têm um interesse limitado. Hoje, já ninguém quer perder horas infindáveis a estudar todas fontes disponíveis e os seus livros conseguem compilar o desenvolvimento das situações de uma maneira compacta, porém suficientemente detalhada. Apesar da ênfase nas peripécias diplomáticas, há muita coisa nos livros que engloba a política geral, interna e externa.
Na vertente diplomática, uma coisa que me fascinou foi conhecer nomes completamente desconhecidos do grande público. Por exemplo, o Calvet de Magalhães, que cita em várias ocasiões importantes, e que praticamente desapareceu da História.
Também há casos sobre os quais eu não tinha – e penso que a maioria das pessoas não tem – uma compreensão completa do que foram. Por exemplo, o no caso da chamada Revolta de Beja, em 1961, julgava que tinha sido um ato quixotesco de duas ou três pessoas, e não, como afirma, um sinal do mau estar que havia no exército. Nessa época havia um “mau estar” nas forças armadas?
Havia, porque foi nesse ano que se deu a tentativa depronunciamento do general Botelho Moniz.
O Botelho Moniz foi um caso de ingenuidade quase impensável da parte de alguém que estava dentro da máquina do regime. Dizer ao Américo Thomaz que queria depor o Salazar, francamente...
Sim, foi um caso de ingenuidade. Por isso é que lhe chamo pronunciamento. Podia dizer-se que foi uma tentativa de golpe de estado, mas aquilo foi mais uma movimentação à moda da América Latina no século XIX, em que bastava que as forças armadas se pronunciassem para provocar uma alteração da situação política. A meio caminho entre a legalidade e a ilegalidade.
Agora, o Botelho Moniz não avançou sozinho. Ele tinha poder hierárquico (era Ministro da Defesa, na altura) e contava com apoios dentro do exército. Se aquilo tivesse vingado, as forças armadas teriam alinhado com ele.
O Craveiro Lopes também tentou demitir o Salazar, o que podia fazer constitucionalmente, sendo Presidente da República (entre 1951 e 58).
O Craveiro Lopes já não era presidente, mas estava em conluio com o Botelho Moniz. E possivelmente também o Marcelo Caetano, nos bastidores!
Voltando ao Golpe de Beja; acho que depois da tentativa falhada do Botelho Moniz, as pessoas que queriam mudar o Governo ficam numa situação mais débil. Mas a seguir à queda de Goa ainda há esta tentativa, patrocinada pelo General Humberto Delgado, que até veio a Portugal. Os apoios que esse golpe tivesse não seriam talvez muito expressivos, mas com certeza estavam envolvidas mais do que duas ou três pessoas, contudo acabou por morrer à nascença.
É já um golpe desesperado, porque a verdadeira tentativa foi a do Botelho Moniz.
Uma coisa que também me surpreendeu no livro foi saber que o Amílcar Cabral (Líder do PAIGC) era o mais eficaz dos nossos opositores, quem tinha uma melhor visão da situação.
Bem, ele era o mais prestigiado e, de todos os líderes dos movimentos de libertação, foi o que prestou mais atenção à dimensão internacional da luta. Tinha trânsito internacional, era o mais conhecido nas Nações Unidas. Era o mais respeitado dos três, se era o mais inteligente não posso dizer.
"Para Salazar a posse das colónias era um direito histórico"
Nunca se soube quem é que o matou (em 1973), não é?
O que digo no livro é que nunca se soube, mas todas as indicações apontam para um conflito entre os cabo-verdianos e os guineenses dentro do PAIGC. Teria sido uma fação guineense que o assassinou. Agora, se foi um crime premeditado ou um acidente, ninguém sabe. O que parece claro é que não foi a PIDE. Ao contrário do que sucedeu com o Eduardo Mondlane, em que há fortes suspeitas de que tenha sido a PIDE.
A PIDE tinha muita força no Ultramar, não é?
A PIDE foi ganhando força no Ultramar porque era um serviço de informações e de operações clandestinas. Aqui era apenas uma polícia política. Também era um serviço de informações, mas mais importante nas colónias porque operava numa realidade menos conhecida. Acabou por ter capacidade de efetuar operações clandestinas.
Até porque não tinha os limites éticos que a tropa regular teria.
Sim, era uma espécie de CIA.
Há um ponto interessante neste terceiro livro que é a “responsabilidade histórica” que o Salazar alegava e que os ingleses, que também a tinham, trocaram por um pragmatismo bem britânico. Eles decidiram muito cedo dar independência às colónias – como a Índia, em 1947 - porque lhes dava mais jeito manter uma relação económica benéfica com as colónias e não ter a despesa de as manter militarmente. A realidade histórica só interessa se for vantajosa. Isto vai absolutamente contra a opinião do Salazar.
O embaixador diz que a maior crise com o Reino Unido, desde o ultimato de 1890, foi em 1966.
"Sempre se soube que nós apoiávamos a independência unilateral da Rodésia; mas o que não se sabia tão claramente, até agora, é que a tínhamos instigado"
Isso foi por causa da Rodésia.
Exatamente. Porque os ingleses queriam dar a independência aos negros, não aos colonos brancos. Quanto ao nosso governo, mesmo os ousados, quando falavam numa possível autodeterminação – não uma independência, mas uma maior autonomia das colónias –, era sempre a pensar nos brancos a tomarem o poder.
Aí já são muitas coisas a considerar.
Primeiro, quanto à diferença entre a atitude do governo português, do regime do Salazar, relativamente aos ingleses. Há aqui no livro uma frase em que ele explica bem o fundamento da sua posição, numa carta que manda ao George Ball, o enviado de Kennedy, em 1963: “Para os atuais dirigentes americanos há um facto inelutável e parece que benéfico, no movimento nacionalista dos povos do continente africano com tendência a tornarem-se independentes. Um movimento desta envergadura tem de negar o direito pré-existente, tenta criar outro direito. E, sendo assim, os Estados Unidos consideram-se naturalmente desobrigados a defender aquele e a reconhecer este último. O caso, posto desta forma, dispensar-nos-ia afinal de mais discussões, sendo que do vosso lado se pretende legitimar um facto, e do nosso defender um direito. A nossa luta, ou argumentação, jamais se encontraria em qualquer linha de pensamento.”
Para o Salazar, nós temos um direito. A posse das colónias é um direito histórico, mesmo perante o direito internacional. Não há nada que o possa contrariar; não há realidade política que se possa contrapor a esse direito. Portanto, é isto. Os ingleses não têm com certeza menos direitos do que nós temos, embora nós possamos reclamar maior antiguidade, em Angola, por exemplo, mas eles adaptam-se à realidade do presente. Consideram que as coisas evoluem e, portanto, que não vale a pena estar a defender direitos que já ninguém reconhece como legítimos. Adaptam-se e optam por fazer uma descolonização pactável. O Salazar agarra-se ao direito histórico e defende-o com unhas e dentes, com o resultado que está à vista.
A questão da Rodésia é um pouco diferente. Há a Federação Centro-Africana, que é composta pelos países que atualmente são o Zimbabwe, a Zâmbia e o Malawi, e essa Federação vai ser dissolvida porque todos, à sua maneira, aspiram à sua independência. Os ingleses querem conduzir o processo com base num critério simples, que é o direito da maioria, o que significa que a minoria branca na Rodésia não ficará no poder. Os rodesianos, com um estatuto especial na federação, visto que gozavam das prerrogativas de autogoverno desde 1923, consideravam que não tinham de obedecer aos critérios do Reino Unido. Há uma negociação, que não chega a lado nenhum, entre Londres e Salisbúria (hoje Harare) para ver se se consegue algum compromisso, que nunca se alcança.
O que eu trago de novidade neste livro é que o governo português acha que eles devem declarar uma independência branca unilateral e instiga-os a fazer isso. Sempre se soube que nós apoiávamos a independência unilateral da Rodésia; mas o que não se sabia tão claramente, até agora, é que a tínhamos instigado. Isso, obviamente, cria um choque frontal com os ingleses, uma vez que eles não reconhecem essa independência.
É essa a crise a que se refere.
Essa mesmo, que depois continua em 1964, 65, por aí fora.
O livro não chega a dizer como acabou a Rodésia. Foi no fim da década de 70, já depois da independência das nossas colónias. Os brancos perderam.
Sim, houve os acordos de Lancaster House, dirigidos por Lord Carrington, em 1979. E a Rodésia passou a ser o Zimbabwe, com um primeiro-ministro negro.
Uma personagem que aparece muito no livro, e que dava para fazer uma biografia interessante, é o Jorge Jardim.
Já existe uma biografia, do Freire Antunes. Mas sim, o Jorge Jardim tem um papel determinante em todo este processo, porque é um homem das arábias, uma espécie de 007, um tipo com imensa energia e imaginação, recursos de todo o tipo. Tem a confiança total do Salazar e desempenha uma série de papéis. Estabelece-se na Beira e torna-se um potentado, tanto anda no mato como é destacado para missões diplomáticas, está nos negócios, está na comunicação social (dono de dois jornais), piloto de avião, está em todo o lado.
"[Marcelo Caetano] não foi um líder. Agora, não foi porque não quis, ou porque não foi capaz, ou porque não conseguiu – isso até hoje não se sabe"
O embaixador fala de três momentos em que o regime podia ter mudado, 1963, 1969 e 1972.
Eu não digo que o regime podia ter mudado. O que eu digo é que havia condições objetivas, favoráveis a uma tentativa de solução política, diplomática, daquela situação.
Agora, é preciso distinguir entre 1963, em que Salazar está no poder e, independentemente das condições serem favoráveis, ele não quer, e, portanto, não há nada a fazer. Efetivamente era um ditador e fazia-se aquilo que ele dizia. Depois, em 69 e 72, já no tempo do Marcelo Caetano, coloca-se a questão de porque é que Caetano não aproveitou essas condições.
O que digo no livro é que, até hoje, é difícil compreender. Será que ele não soube? Será que ele não quis? Será que hesitou? Essas perguntas não têm ainda uma resposta muito clara. Porque ele deu indicações ambíguas.
Contraditórias.
Contraditórias. Então, uma pessoa pode dizer que ele era um produto do regime e nunca quis mudar nada, foi só ilusionismo. Pode ser. Ou então ele tentou e não conseguiu, ou não teve coragem. Agora, é inegável que, tendo desaparecido o Salazar, havia ali uma margem de escolha que não foi aproveitada.
O embaixador escreve no livro que o Marcelo não se considerava um sucessor do Salazar, mas antes um elemento do regime. Ou seja, nunca pensou em substituir o poder do Salazar, portanto submeteu-se à constitucionalidade do regime, em que quem mandava era o Presidente da República.
Pois, eu digo isso, mas é uma maneira indireta de dizer que ele não foi um líder. Agora, não foi porque não quis, ou porque não foi capaz, ou porque não conseguiu – isso até hoje não se sabe.
Mas, nas suas memórias, o que diz ele? Queixa-se amargamente que não lhe deram oportunidade?
O problema é que o que as pessoas dizem nas memórias não corresponde exatamente àquilo que pensavam quando estavam no poder. As memórias são importantes, mas muitas vezes dizem coisas que não correspondem àquilo que os documentos do período mostram. Ou porque já não se lembram bem, ou porque têm uma interpretação, já olham para aquilo que aconteceu à luz do que aconteceu depois.
Há quem tenha dito que o Marcelo Caetano chegou ao poder com dez anos de atraso. Mas dez anos antes ele tinha proposto uma reforma constitucional muito arrojada. Porque é que não se manteve fiel àquilo que tinha defendido em 1962?
Sem conseguir responder a essa perplexidade sobre o quem era o Marcelo, o que ele queria, o que digo no livro é que ele não foi um líder. Podia ter aproveitado, mas não aproveitou.
Aliás, ele tentou à última da hora fazer acordos com os movimentos de libertação.
Tentou, mas isso já era uma coisa quase em desespero. Mas quando pode, não o fez.
A recondução do Américo Thomaz com presidente, em 72, foi fatal. Pelo menos para as nossas esperanças.
Evidentemente. Aí fecha-se completamente qualquer hipótese de evolução. Podia ter havido, se ele tivesse optado pelo Spínola.
Pois, o Spínola teria sido muito bem aceite pela tropa.
Eu penso que sim, que ele nessa altura tinha autoridade.
O Freitas do Amaral, que é uma pessoa insuspeita quanto a isto, escreve que o Salazar não era um fascista, era um “pré-Revolução Francesa”. O fascismo é uma ideologia moderna e o Salazar não era moderno, achava que os valores da Revolução Francesa estavam errados. Assim, pode dizer-se que agia como um rei absoluto.
Sim. Mas o que ele disse foi que gostaria de ser o primeiro-ministro de um rei absoluto. Concordo com essa visão do Freitas do Amaral. O Salazar era um homem do século XIX, com a visão de que a sociedade devia ser governada por métodos autoritários e que a igualdade era uma ilusão. Liberdade, Igualdade, Fraternidade, não era com ele!
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