Capítulo 12 - 1973
O ano de 1973 abriu sob o signo da contestação, nos planos interno e internacional. A 30 de dezembro de 1972, vésperas do Dia Mundial da Paz, iniciou-se a vigília contra a guerra colonial na capela do Rato, mais uma manifestação das profundas cisões na Igreja Católica1. A vigília foi propagandeada na região de Lisboa por uma campanha de petardos lançados pelas Brigadas Revolucionárias. A cumplicidade entre o movimento católico e as Brigadas era um sinal evidente da radicalização dos movimentos de oposição ao regime e à guerra colonial.
Para dar voz e consistência ao ar do tempo, saiu a 6 de janeiro o primeiro número do jornal Expresso. O semanário, cujo tom fresco e iconoclástico parecia já prenunciar uma nova era democrática e europeia, tornou-se imediatamente de leitura obrigatória para as classes bem-pensantes. A 25 de janeiro, Sá Carneiro demitiu-se do seu lugar de deputado à Assembleia Nacional em rutura com Marcelo Caetano após a censura ter cortado o seu discurso de protesto contra a repressão da vigília do Rato pela PIDE/DGS. Miller Guerra, outro expoente da ala liberal, seguiu-o dias depois.
A oposição à guerra subia de tom. Longe iam os tempos do consenso em torno da defesa da pátria, que só o PCP se atrevia a contestar.
O assassinato de Amílcar Cabral
Amílcar Cabral foi assassinado em Conacri a 20 de janeiro por balas disparadas por um veterano do PAIGC, Inocêncio Cani, que Cabral afastara dos órgãos dirigentes do movimento em 1971. Embora o assassino e as circunstâncias do crime sejam conhecidos, a autoria moral não foi até hoje cabalmente esclarecida. Não é claro, também, se o assassinato foi um ato deliberado ou uma reação espontânea à resistência que o líder do PAIGC opôs à tentativa do comando que o intercetou à porta de sua casa nessa noite fatídica para o deter e manietar.
Alguns dados são, no entanto, incontroversos. O atentado não foi ato isolado; inscreveu-se numa mais vasta conspiração para afastar da liderança do PAIGC Amílcar Cabral e Aristides Pereira. O conluio visava todos os cabo-verdianos e mestiços do partido, que foram perseguidos em Conacri nessa noite antes de serem protegidos pelas forças de Sekou Touré2. O inquérito levado a cabo pela Guiné-Conacri estabeleceu que a conspiração era voz corrente entre os guineenses do PAIGC, ao passo que nenhum cabo-verdiano estava a par do que se tramava3. Segundo informações de várias fontes que chegaram a Lisboa, o crime teria sido um ato de vingança pela condenação à morte e execução de dois destacados militantes do PAIGC implicados numa tentativa de cisão do partido, com a criação de um novo movimento, denominado Frente Unida de Libertação da Guiné-Bissau, que visava precisamente excluir os cabo-verdianos da liderança4.
O ressentimento dos guinéus contra os cabo-verdianos tinha raízes históricas e alimentava-se do facto de os primeiros combaterem no mato, mandados pelos segundos a partir do exílio. As divisões entre os dois grupos dobravam-se de animosidades de classe: os cabo-verdianos eram oriundos da pequena burguesia ao passo que os guinéus eram essencialmente camponeses sem instrução. O PAIGC contava com cerca de 6000 guerrilheiros, quase todos guineenses. Cabo-verdianos seriam talvez uma centena, quase todos dirigentes. A clivagem vinha de longe. Já no início da década de 1960, antes de Amílcar Cabral ter imposto a hegemonia do PAIGC na luta pela libertação da Guiné, François Mendy, líder do grupo rival MLG, denunciava os cabo-verdianos como «lacaios» e «escravos» dos colonialistas portugueses5.
A quem aproveitavam essas divisões? Não há dúvida de que Spínola as estimulou com a sua campanha «Guiné para os guineenses» e com as insinuações de que Portugal estaria preparado para conceder a autonomia à Guiné, mas não ao arquipélago de Cabo Verde, alegadamente inegociável por razões geoestratégicas. No entanto, daí a imputar-lhe a autoria moral do crime, vai um passo de gigante, que nada permite dar.
Sabe-se também que Sekou Touré não tinha as melhores relações com Amílcar Cabral e é motivo de suspeitas para alguns que os assassinos se tenham imediatamente dirigido ao palácio presidencial depois de cometerem o ato. Estes indícios não chegam, porém, para implicar Sekou Touré, que aliás mandou de imediato prender os cabecilhas e protegeu os cabo-verdianos das perseguições de que foram alvo nessa noite. É possível que alguns elementos do seu regime estivessem implicados na conspiração, mas não parece plausível que a tenham dirigido a mando do líder guineense.
É sabido por fim que a morte de Cabral abriu caminho à ascensão de Nino Vieira à chefia do PAIGC e à rutura entre guinéus e cabo-verdianos que provocou. Tal facto não é suficiente por si só para implicar o comandante da guerrilha e futuro presidente da Guiné-Bissau na conspiração, mas há alguns indícios que apontam nesse sentido. Desde logo, as suspeitas que nunca deixaram de pairar sobre o envolvimento do seu primo direito, Osvaldo Vieira, um comandante mítico da guerrilha que estava publicamente desavindo com Cabral. Osvaldo Vieira foi posteriormente ilibado da participação no crime, mas não se livrou da fama de ter sido um dos seus inspiradores6.
Teria havido mão oculta da PIDE, manipulando à distância os conspiradores? A base para esta teoria é o facto de alguns dos principais cabecilhas da conspiração, como Momu Touré e Aristides Barbosa, terem sido libertados do cativeiro no Tarrafal, em 1969, por ordem da Spínola. Reintegrados em Bissau, escaparam depois para Conacri, onde, aureolados pelo prestígio de terem servido longas penas de prisão e, alguns deles, por serem heróis de guerra, fomentaram a conspiração. Nos arquivos da PIDE/DGS, porém, nunca foi encontrado o mínimo indício que substanciasse essas suspeitas. Pelo contrário, as notícias das divisões no PAIGC provocaram surpresa e a PIDE/DGS foi apanhada desprevenida pelo assassinato de Cabral7. Outro indício que parece afastar uma intervenção da polícia secreta é o facto de nenhum dos seus informadores em Conacri, altamente colocados no PAIGC, ter sido envolvido no crime ou ter sequer sabido da conspiração.
Tudo indica, assim, que o assassinato de Cabral resultou de tensões entre guinéus e cabo-verdianos no PAIGC, porventura com a cumplicidade de alguns elementos do regime de Conacri ou do próprio Sekou Touré. Na época, porém, era fácil apontar o dedo a Portugal e foi isso precisamente que aconteceu. Amílcar Cabral gozava de grande prestígio internacional. A sua morte causou comoção mundial. Levantou-se um coro de acusações raivosas contra Portugal, que o Ministério dos Negócios Estrangeiros declinou oficialmente desmentir, afirmando tratar-se de um acontecimento em país estrangeiro sobre o qual Portugal não tecia comentários.
A morte de Amílcar Cabral foi um desastre. De todos os líderes dos movimentos de independência que lutavam contra Portugal, Amílcar era o de maior estatura política, intelectual e moral. O seu desaparecimento privou Portugal, na hora da descolonização, de um interlocutor com autoridade e prestígio internacional. Para Spínola, significou o definitivo ruir por terra do seu projeto, contrariado por Caetano e já gravemente comprometido, para fazer a paz na Guiné.
Sem opções políticas, mas sempre um chefe determinado, Spínola lançara uma ofensiva no Sul que estava em curso quando lhe chegou a notícia do crime. O exército português procurou explorar em seu proveito a situação. No dia seguinte, helicópteros sobrevoaram a zona da fronteira com a Guiné-Conacri anunciando a morte de Cabral e o fim da guerra. Na verdade, o alto comando português receava precisamente o contrário: que o desaparecimento de Cabral provocasse um agravamento do conflito.
Tinha razão. Em Conacri, a liderança do PAIGC decidiu que era necessário reagir. As forças combatentes do movimento juraram vingança e mobilizaram-se para um novo esforço contra Portugal8. Todavia, o que verdadeiramente alterou o curso dos acontecimentos foi o aparecimento dos mísseis Strella no teatro das operações.
Descalabro na Guiné
Pouco mais de dois meses depois da morte de Amílcar Cabral, a 25 de março de 1973 um avião Fiat 91 foi abatido pela primeira vez por um míssil Strella. Nos dias seguintes, mais cinco aparelhos da força aérea tiveram igual sorte, causando a morte a quatro pilotos portugueses. Fora Cabral, munido de uma revista militar onde estavam descritos os Strella, quem convencera a URSS a fornecê-los ao PAIGC. Em dezembro de 1972, uma equipa do PAIGC seguiu para a Crimeia para ser treinada no seu uso9. Segundo informações transmitidas pela embaixada britânica em Lisboa ao MNE, meses antes da sua morte Amílcar Cabral vangloriava-se nos seus contactos internacionais de que Moscovo lhe prestava um apoio militar irrestrito10. Ninguém supunha que esse apoio consistiria neste tipo de míssil terra-ar, transportado ao ombro, manejado por uma equipa de duas pessoas, uma arma na altura sofisticadíssima e desconhecida que apanhou o exército português completamente desprevenido.
A irrupção dos Strella alterou profundamente o curso da guerra, tanto material como psicologicamente. O domínio do ar era o único trunfo ainda na posse das Forças Armadas portuguesas. A sua perda reduzia dramaticamente as possibilidades de conduzir operações ofensivas e comprometia seriamente a capacidade da força aérea para evacuar as baixas ocorridas em combate, deixando as tropas numa situação de grande vulnerabilidade psicológica. Os Strella galvanizaram a guerrilha e atingiram em cheio o moral da tropa portuguesa na Guiné, já muito afetada pelo cansaço e pela descrença.
O aparecimento dos mísseis foi o prelúdio de uma violentíssima ofensiva do PAIGC, mais própria de uma guerra convencional, lançada em maio com o apoio de oficiais cubanos, presentes na província desde 196611. O primeiro ataque foi desferido a 6 de maio contra o aquartelamento de Guidaje, na fronteira com o Senegal. Durante vários dias, Guidaje foi cercada e flagelada com bombardeamentos de artilharia pesada de longo alcance, com níveis elevados de precisão. As vias de acesso ao quartel foram minadas e as colunas enviadas para levantar o cerco foram vítimas de severas emboscadas. Ao longo de seis semanas de cerco, as várias colunas enviadas para socorrer o quartel sofreram 39 mortos e 122 feridos12.
Spínola improvisou um contra-ataque, a operação Ametista Real. Um destacamento comandado pelo major Almeida Bruno infiltrou-se no Senegal para atacar a partir do Norte a base de Cumbamori que apoiava o ataque do PAIGC, conseguindo desta forma aliviar a pressão sobre Guidaje e evitar a sua queda.
O capitão Salgueiro Maia, herói do 25 de abril, deixou o seguinte relato da sua participação na operação de evacuação de Guidaje:
Ao cair do dia, esgotados, chegámos a Guidaje pelas 19h00. Guidaje ao anoitecer tinha um certo aspeto irreal: o chão estava lavrado por granadas, as casas todas atingidas pareciam em ruínas, os homens viviam em buracos, luz e água não havia... Durante 40 dias, devido a só termos sido informados que iríamos efetuar uma operação por 6 dias, não tivemos outra roupa para além da que tínhamos no corpo, que, entretanto... começou a apodrecer nas virilhas e nas covas dos braços... A barba por fazer dava a todos o aspeto de salteadores ou de loucos, as micoses e outras erupções de pele eram gerais... Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo de artilharia onde havia 4 mortos e três feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro com retardamento; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, de cor castanha, com 2 a 3mm de espessura, rachada como barro seco; o sangue empastava os colchões e as paredes... No silêncio da noite e conforme o sentido do vento, ouvíamos o chiar das lagartas e o barulho dos motores dos blindados de origem russa que escoltavam as colunas do PAIGC... Quando chegámos a Bissau seguimos para o Combis onde ficámos fechados, pois ninguém se podia aproximar e ver o nosso estado13.
A 18 de maio, na outra extremidade do território, o PAIGC atacou o quartel de Guileje, estrategicamente situado a 5 quilómetros da fronteira na rota que ligava a Guiné-Conacri à Guiné-Bissau. Todas as reservas ao dispor do comandante-chefe estavam empenhadas a Norte, no levantamento do cerco a Guidaje. O quartel de Guileje ficou entregue a si próprio. Após quatro dias de incessantes bombardeamentos com o tiro ajustado, sem apoio aéreo, nem terrestre, e sem comunicações, o comandante da base, major Coutinho e Lima, retirou com a população para Gadamael, sem autorização de Spínola. Numa fúria, o comandante-chefe deu-lhe ordem de prisão e substituiu-o por um oficial de sua confiança, o capitão Manuel Monge14.
Gadamael era o ponto de apoio mais próximo de Guileje, mas dispunha de piores condições de defesa. Na primeira quinzena de junho, Gadamael esteve sob ataque incessante do PAIGC, causando 24 mortes e 147 feridos nas tropas portuguesas15. Otelo Saraiva de Carvalho recordou depois o cenário dantesco vivido no aquartelamento: «a flagelação constante da artilharia inimiga, o pânico entre as tropas portuguesas, dezenas ou centenas de mortos ou feridos, a ausência de apoio aéreo, a quase impossibilidade de receber reabastecimentos e promover evacuações de feridos»16. No quartel, permaneceram cerca de 40 militares portugueses, disparando rajadas de metralhadoras e a ocasional granada, para mostrarem que não tinham abandonado o local. Os restantes fugiram rio abaixo, onde acabaram por se deparar com Spínola em Cacine, que os cobriu de insultos. Spínola enviou reforços e deslocou-se ele próprio a Gadamael onde o seu helicóptero escapou à tangente de ser atingido pelas granadas do inimigo. Estes acontecimentos vibraram outro golpe profundo no moral das tropas portuguesas.
Sob o efeito da emoção da queda de Guileje, a 22 de maio Spínola avisou o ministro do Ultramar de que se aproximava, de forma inexorável, o «colapso militar» na Guiné. Costa Gomes deslocou-se de emergência a Bissau para avaliar a situação. O chefe do Estado-Maior das Forças Armadas propôs como única alternativa «a adoção de uma manobra visando o encurtamento da área efetivamente ocupada, evitando-se desse modo a contingência de aniquilamento das guarnições de fronteira». No plano militar, Spínola concordou com o diagnóstico, mas recusou pura e simplesmente aplicá-lo. A solução advogada por Costa Gomes implicava abandonar grande parte das populações ao controlo do PAIGC. Era a própria negação de tudo quanto fizera na Guiné: atraí-las e mostrar-lhes que as podia proteger.
A partir desse momento, Spínola não descansou enquanto não abandonou a Guiné. A 9 de junho escreveu a Silva Cunha:
Não poderei ser eu a abandonar áreas e as correspondentes populações em cuja proteção, justa administração e desenvolvimento socioeconómico me empenhei pessoalmente. A aceitação de tal manobra – que como Comandante-Chefe considero absolutamente necessária – lançaria o rótulo amargo de demagogia sobre a autenticidade do ideário nacional que prossegui, até agora, com isenção e fé17.
Silva Cunha ainda o tentou demover numa visita a Bissau no final de julho. Mas Spínola estava irredutível. Finalmente, a 6 de agosto, partiu de férias para Lisboa, preparado para mais altos voos e resolvido a nunca mais voltar ao território que o celebrizara.
Repercussões de Wiriamu
Em Moçambique, a tensão continuava também a aumentar. Abafar Wiriamu era missão impossível tal fora a dimensão da matança. No início de 1973, os relatos do massacre espalharam-se nos círculos da Igreja. Em janeiro, foram julgados os padres do Macutí, Joaquim Teles Sampaio e Fernando Marques Mendes, que estavam presos na cadeia da Machava. Os padres espanhóis testemunharam em seu abono, detalhando a ocorrência de massacres em Mucumbura. Nas audições, o bispo de Tete aludiu aos acontecimentos em Wiriamu falando de 300 ou 400 mortos18.
O ambiente na Beira estava incandescente. Os dois padres foram condenados, mas postos em liberdade com pena suspensa ou considerada cumprida. Quando regressaram à cidade, em fevereiro de 1973, foram recebidos com manifestações hostis organizadas por Jorge Jardim e lideradas pelas suas filhas, que percorreram a cidade acusando-os de traição.19 Joaquim Teles Sampaio foi forçado a regressar a Portugal. Os padres espanhóis estavam ansiosos por fazer chegar à Europa o seu relatório sobre Wiriamu. A 20 de fevereiro, aproveitaram a partida de dois correligionários, expulsos de Moçambique, para lhes entregar uma cópia. Apesar de revistados à partida pela PIDE durante hora e meia, o documento não foi encontrado.
A 31 de março, perante o silêncio das autoridades, a Conferência Episcopal de Moçambique escreveu ao governador-geral da colónia, lavrando «a mais veemente indignação e protesto» perante incidentes como o de Wiriamu, em que «centenas de pessoas, algumas das quais absolutamente inocentes, perderam a vida por ação das Forças Armadas»20. Em Lisboa o Núncio Apostólico fez uma diligência junto de Silva Cunha, que nunca tinha ouvido falar do assunto21. Em abril, abordou diretamente Marcelo Caetano, insistindo que estava na posse de informações concretas dos bispos moçambicanos denunciando atrocidades em Moçambique22.No dia seguinte, Marcelo Caetano pediu um inquérito. Kaúlza respondeu-lhe que estava já em curso. Com efeito, a 19 de março, o comandante-chefe, invocando «rumores» sobre o mau comportamento «das Nossas Tropas», mandara aprofundar as investigações sobre o sucedido. No essencial, os resultados ilibavam as tropas portuguesas. O número de mortes, estimado em 20 no relatório de ação, passou para 63. Não obstante, Kaúlza continuava a achar «a conduta das Nossas Tropas... absolutamente normal»23.A cultura do encobrimento permanecia intacta.
Ainda antes de serem conhecidos os resultados destas investigações, foi decidido afastar Kaúlza de Arriaga do comando-chefe em Moçambique. Os seus métodos eram fortemente contestados pelo chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o seu velho rival Costa Gomes. As suas relações com o ministro da Defesa, o general Sá Viana Rebelo, estavam em rutura. A PIDE considerava de interesse nacional substituí-lo quanto antes. A 31 de maio, Viana de Rebelo informou-o de que a sua comissão de serviço em Moçambique ia terminar24. Por uma dessas coincidências significativas, a demissão foi-lhe oficialmente comunicada por Marcelo Caetano numa carta sibilina datada de 9 de julho, véspera da publicação da notícia que revelou ao mundo o escândalo de Wiriamu. «Reconheço a vantagem, para si, para Moçambique, para todos nós, em outra pessoa rever os conceitos e as táticas da ação anti-subversiva em Moçambique», afirmava o Presidente do Conselho25.
A 10 de Julho, o artigo do padre Adrian Hastings foi publicado na primeira página do The Times causando imediata sensação. No dia seguinte a notícia fez manchete em toda a imprensa inglesa. No papel de acusador, Hastings tornou-se a personagem central de uma tempestade mediática. Marcelo Caetano pretextou surpresa e ignorância. Essa reação é pouco verosímil. Mesmo que nunca tivesse ouvido falar de Wiriamu, o que é mesmo assim de estranhar, o Presidente do Conselho não pode ter ficado surpreendido. Já no passado repreendera Kaúlza por violências em Moçambique. Acabara de o afastar do comando militar da província poucas semanas depois de ter sido pessoalmente avisado pelo Núncio Apostólico da ocorrência de novas atrocidades na província. A notícia do massacre, transmitida pelas autoridades eclesiásticas, circulava nas altas esferas governativas. Divulgada pela imprensa britânica, transformou-se num escândalo internacional que vibrou novo e profundo golpe no regime.
Notas:
- Depoimento de Carlos Antunes a Joaquim Furtado, ep. 28, minutos 36 a 40.
- José Pedro Castanheira, op. cit., p. 178.
- Ibid., p. 93.
- Rui Hortelão, op. cit., pp. 298-299.
- José Pedro Castanheira, op. cit., pp. 164-168.
- Ibid., p. 181.
- Ibid., p. 134.
- Joaquim Furtado, ep. 30.
- Idem.
- José Pedro Castanheira, op. cit., p. 214.
- Gleijeses, Piero. «The First Ambassadors: Cuba’s Contribution to Guinea-Bissau’s War of Independence», Journal of Latin American Studies, Vol. XXIX, n.o 1, Cambridge University Press, 1997, pp. 45-88.
- Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, Guerra Colonial, p. 411.
- Depoimento de Salgueiro Maia em História Contemporânea de Portugal, citado em João Paulo Guerra, Memória das Guerras Coloniais, p. 223.
- Luís Nuno Rodrigues, Spínola, p. 182.
- Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, Guerra Colonial, p. 414.
- Otelo Saraiva de Carvalho, citado em Luís Nuno Rodrigues, Spínola, p. 183.
- Spínola, op. cit., p. 61.
- Joaquim Furtado, ep. 28.
- Idem, ep. 27.
- Citado por João Paulo Guerra, Memória das Guerras Coloniais, p. 296.
- Depoimento de Silva Cunha a Joaquim Furtado, ep. 28.
- Marcelo Caetano, Depoimento, p. 182.
- Joaquim Furtado, ep. 28.
- Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, Guerra Colonial, p. 501.
- Idem, Os Anos da Guerra Colonial, p 733.
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