Estranhamente, o conceito de “BRIC” (acrónimo de Brasil, Rússia, Índia e China) foi inventado no país com que integrantes pretendem competir, os Estados Unidos. Em 2001, o economista-chefe da Goldman Sachs, Jim O’Oneil, fez uma análise dos meios económicos, financeiros, empresariais, académicos e de comunicação dos quatro países e chegou à conclusão (entre outras) que representavam 65% da expansão do PIB mundial. A paridade do poder de compra avançava rapidamente para superar o bloco económico mais forte do mundo, constituído pelos Estados Unidos e União Europeia (a que vou chamar, para simplificar, Bloco Ocidental). E, realmente, em 2003 os BRIC produziam 9% do PIB mundial e, em 2009, 14%.
Este estudo de O’Oneil levou a que os quatro países dissessem “Olha, que boa ideia!” e se agrupassem formalmente, em 2006, associando-se em várias áreas em que podiam competir com o Bloco Ocidental, considerando que até aí não lhes tinha sido dada a devida importância - e vantagens - no complexo sistema de transações internacionais, a começar pelo monopólio do dólar.
Mas comparando, a reunião de 2006 equivale à de Bandungue, em 1955, quando se formou o conceito de países do “terceiro mundo” e se exigiu que lhes fosse dada a devida importância. (Bandungue marca também o uso do termo “descolonização” e a obrigação dos países europeus darem independência às suas colónias).
Em 2011, na terceira conferência, a África do Sul juntou-se ao grupo e foi adotada a denominação BRICS. O conjunto dos cinco países representava então 25% da economia mundial. Nessa conferência articulou-se também uma forma de trabalharem em conjunto, para benefício mútuo - ou seja, para constituir um bloco com coesão suficiente para enfrentar o bloco ocidental “concorrente”.
Os BRICS não tem um documento constitutivo, órgãos coletivos nem orçamento comum - ou seja, não são uma organização institucionalizada. Mas têm aumentado consideravelmente a sua articulação comum. A partir de 2012, em Nova Deli, o agrupamento passou a contar com a presença dos chefes de Estado dos “associados”. Também há reuniões entre ministros das Finanças, diretores dos bancos centrais e responsáveis de segurança agrícola, energética e científica.
Até aqui, os BRICS constituíam um bloco “civil”, ou seja, sem implicações militares e estratégicas. O que fazia sentido, dada a disparidade de interesses nessas áreas; o Brasil e a África do Sul não têm intenções expansionistas, a Índia e a China são inimigos, com combates de baixa intensidade, mas constantes na sua fronteira comum, e a Rússia é um país agressor com sonhos imperiais.
Tudo mudou este Outubro, com a reunião de cúpula organizada pela Rússia em Kazan. Primeiro, o facto de ser na Rússia, com Vladimir Putin a presidir. O ditador russo, isolado pelo Mundo Ocidental e criticado por meio mundo (literalmente) por causa da invasão da Ucrânia, precisava urgentemente de mostrar a toda a gente que ainda tem estatuto. Os encontros, que ocorreram entre os dias 22 e 24, decorreram propositadamente com grande aparato, instalações sumptuosas a grande cobertura noticiosa. Houve até quem notasse que os salões e o clima eram do mesmo estilo que nas Nações Unidas. E até o Secretário Geral das ditas esteve presente, outra vitória de Putin que custou a Guterres muitas críticas, quanto a mim justificadas, uma vez que validou o estatuto do encontro, sem obter nenhuma vantagem em particular para a ONU.
Depois, foram admitidos novos membros, com os respetivos líderes presentes: Egito, Etiópia, Irão, Arábia Saudita e Emirados Árabes. A Venezuela - sim, a Venezuela! - também queria entrar, mas o Brasil votou contra. O que não impediu Nicolas Maduro de estar presente como “observador”, com direito a fazer um discurso à assembleia. E considerou-se a candidatura de mais treze países: Argélia, Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Indonésia, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda, Uzebequistão e Vietname. A única coisa que estes países têm em comum é não pertencerem ao Mundo Ocidental e terem bastantes queixas contra os Estados Unidos, por variadíssimas razões, antigas e novas.
O tema oficial foi “O reforço do multilateralismo para um desenvolvimento e segurança globais”. Por “multilateralismo” entenda-se que os BRICS consideram que passa a haver dois lados: o Mundo Ocidental e eles. Por “desenvolvimento” leia-se uma tentativa de acabar com o monopólio do dólar nas transações internacionais, o que convém particularmente à China, à Rússia e ao Irão, por esta ordem. Por enquanto não existem condições para implementar tal coisa, mas a semente está lançada. Por “segurança” não se sabe muito bem o que pode significar, uma vez que os membros estão geograficamente distribuídos por áreas muito diferentes do globo e estão em situações de segurança muito diferentes; o Brasil, por exemplo, não ameaça nem é ameaçado por ninguém, a Rússia e o Irão ameaçam toda a gente, a Arábia Saudita e o Irão são inimigos e a Etiópia tem problemas securitários internos e externos. Pelo menos houve uma decisão de segurança concreta: a China e a Índia comprometeram-se a acabar com as hostilidades fronteiriças.
Politicamente, foi assumido um compromisso de reformar as Nações Unidas e o Conselho de Segurança, de admitir a Palestina como membro da ONU e de promover a solução de “dois estados” para os palestinianos. Em termos de comparação, certamente que a importância da China nos BRICS é o equivalente à importância dos Estados Unidos no Mundo Ocidental
Pode perguntar-se a que nível poderão ajudar-se países tão diferentes, tanto em peso económico como em ideologia, como ainda em distância física. Como se poderão ajudar a Bielorrússia e a Bolívia, por exemplo? Ou que entendimento pode haver entre teocracia iraniana e a comunista Cuba? Mas, pesem todas as contradições, o facto é que a partir de agora o mundo conta com mais um protagonista global.
Se isto se traduzirá em alguma coisa de concreto, a ver vamos, como diz o cego.
Este texto está escrito segundo o antigo Acordo Ortográfico
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