“Poucos meses depois de terminar o meu mandato, ganhei a convicção de que o primeiro-ministro, com a cumplicidade do PCP e do BE, era mestre em gerir a conjuntura política, em capitalizar a aparência de ‘paz social’ e em empurrar para a frente os problemas de fundo da economia portuguesa: a não ser que algo de muito extraordinário acontecesse, o seu Governo completaria a legislatura”, escreve Cavaco Silva no segundo volume do livro “Quintas-feiras e outros dias”.
No livro, que será apresentado publicamente na quarta-feira, em Lisboa, Cavaco Silva fala da formação da geringonça e dos primeiros meses do Governo liderado por António Costa, depois da vitória minoritária da coligação PSD/CDS-PP nas eleições de 04 de outubro de 2015.
“Na sexta-feira, 09 de outubro, de 2015, fiquei convicto de que António Costa estava a negociar com o PCP e o BE a formação de um Governo por ele presidido”, refere o antigo chefe de Estado.
Nas semanas seguintes multiplicaram-se os encontros, reuniões e audiências em Belém, com o líder do PSD, Passos Coelho, a propor ao PS que integrasse um executivo de coligação PSD/PS/CDS-PP.
O consenso, contudo, nunca foi alcançado e Cavaco Silva deu posse ao governo minoritário liderado por Passos Coelho, que ‘cairia’ em 10 de novembro, depois do ‘chumbo’ do programa do Governo no parlamento.
Nesse mesmo dia, em “cerimónias algo clandestinas, envergonhadas, sem a presença de comunicação social e sem dignidade”, António Costa assinou com os líderes do PCP, BE e Os Verdes, os “partidos da esquerda radical”, três documentos bilaterais para a viabilização de um Governo do PS.
No dia 24 de novembro de 2015, depois de ter exigido a António Costa a clarificação formal e por escrito de algumas questões que estavam omissas nos documentos subscritos com PCP, BE e Os Verdes, Cavaco Silva comunicou ao secretário-geral socialista que iria indicá-lo para primeiro-ministro.
“No final da reunião, com ar satisfeito e descontraído, António Costa disse que se sentia honrado por receber a incumbência de formar Governo. Tinha conseguido o seu objetivo”, escreve Cavaco Silva.
Sobre os nomes apresentados por António Costa para integrar o Governo, o antigo Presidente da República confessa ter tido reservas em relação ao novo ministro da Defesa, Azeredo Lopes, já que tinha informações que o apontavam como “uma pessoa difícil, desagradável no trato e de linguagem um pouco agressiva”, o que o levava a recear “dificuldades nas suas relações com as chefias militares e em reconhecer devidamente a especificidade da condição militar”.
Em 26 de novembro chegou “ao fim o parto de um Governo de rutura com a tradição de quarenta anos de democracia”, diz Cavaco Silva, que exerceu o cargo de Presidente da República entre 2006 e 2016.
“Estava, e estou, absolutamente convencido de que, como Presidente da República segui os procedimentos que melhor defendiam, naquele tempo e no futuro, o superior interesse nacional”, garante o antigo chefe de Estado.
Sobre os 105 dias em que ‘coabitou’ com o Governo da geringonça, Cavaco Silva confessa ter sido um tempo demasiado curto para ficar com um bom conhecimento da personalidade de António Costa.
“Retive a ideia de que era um homem pessoalmente simpático e bem-disposto, de sorriso fácil. Um hábil profissional da política, um artista da arte de nunca dizer não aos pedidos que lhe eram apresentados. Uma habilidade patente na sua política de equilíbrio entre a satisfação dos interesses do PCP e do BE e as exigências de disciplina orçamental da Comissão Europeia”, escreve.
António Costa, continua, perante os problemas complexos e graves mantém “uma atitude descontraída, sem revelar grande preocupação, como se tudo fossem meras trivialidades”.
“Os problemas acabariam por se resolver com o passar do tempo e não perturbavam o gosto que sentia em ser primeiro-ministro”, acrescenta, confessando que em relação à ação do Governo tinha em 2016 “sérias preocupações quanto ao futuro do país”.
Contudo, ao longo do ano a situação do país foi melhorando, com o Governo a ter uma “aceitação cordata” às mudanças impostas pela Comissão Europeia à política orçamental.
A essa “rendição da ideologia perante a realidade” juntou-se a perceção de que o PCP, “para consolar os militantes, poderia criticar em público a política económica e financeira do Governo, mas não poria em causa a estabilidade governativa, neutralizando, assim, a ação dos sindicatos” e “o BE, por seu turno, estava deliciado com o usufruto do naco de poder que lhe cabia”.
“A ostensiva retórica do ‘virar a página da austeridade’ permitiu iludir durante algum tempo, mas não todo”, argumenta Cavaco Silva, notando a ausência de investimento público, o crescimento da carga fiscal ou o recurso às cativações.
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