As ruínas de uma Lisboa devastada pelo sismo de 1755, qualquer coisa entre 8,7 e 9 na escala de Richter, seguido de réplicas, um maremoto e incêndios diversos, foram a metáfora perfeita para falar do momento que o país atravessa e dos problemas que os portugueses enfrentam. Calcula-se que o abanão tenha demorado entre três e nove minutos, o tempo da conversa entre o SAPO24 e o patriarca de Lisboa, D. Rui Valério.
Disse que queria ser um patriarca de proximidade. Tem andado pelas ruas de Lisboa e do país, como sente os portugueses?
Não é fácil responder a essa pergunta. Por alguma razão, nós, portugueses, somos tendencialmente levados a um certo pessimismo. Repare, não somos conhecidos pelo povo do folclore, da exuberância, somos conhecidos pelo povo do fado.
Isto acontece por motivos culturais, mas também muito porque a nossa história, desde os primórdios, foi uma história marcada pela pobreza do solo; não temos minas de ouro, também não temos petróleo, o povo português foi um povo que se fez a partir do negativo, a partir da ausência, a partir da falta.
Repare, lançámo-nos na aventura dos Descobrimentos para suplantar a pobreza que existia. Mais recentemente, é nos momentos de crise que surgem os grandes génios. E foi no contexto do terramoto de 1755 que surgiram os grandes génios da arquitectura, por exemplo, e até um líder, o Marquês de Pombal.
Portugal traz no seu coração e na sua alma a marca de que só em contextos de carência, de crise, é que se reergue, se reencontra, se anima. Até lá, somos este povo pacato.
Este é ou não um desses momentos de crise, a vários níveis? E se sim, vê alguém animar-se, vê surgir algum génio ou um líder?
Exactamente por haver esta situação de crise, que é global, na medida em que devemos aplicar a palavra crise às diversas dimensões da nossa vida — há uma crise económica, uma crise social, uma crise política, uma crise ética, uma crise histórica, uma crise da memória, é uma crise verdadeiramente transversal —, é que consigo ver as pessoas a animarem-se.
Onde vejo este alento e este ânimo dos portugueses? Talvez não seja na exuberância das suas expressões artísticas, literárias, científicas ou até políticas a reerguerem-se, mas no facto de os portugueses continuarem a lutar. Os portugueses, não obstante as dificuldades que atravessam, continuam ainda a acreditar no país. Às vezes é uma fé de Abraão, que esperou contra toda a esperança e acreditou contra toda a evidência. Nós temos um pouco isso neste momento.
Onde vê essa esperança, nos 60 mil que emigraram em 2022?
É verdade que uma elevadíssima percentagem de jovens está novamente a emigrar, ficamos sem palavras, mas também há quem continue. Talvez eu não seja a pessoa mais indicada para aprofundar este tema, mas quando vejo que, apesar de todas as dificuldades, há jovens que continuam a enveredar por carreiras que à primeira vista não são muito atractivas, como as Forças Armadas, as forças de segurança, os bombeiros, é porque continua a existir um alento, um ânimo.
Agora, deveria haver da parte dos responsáveis uma atenção para vir ao encontro desta esperança, ou desta confiança, que ainda existe e que ainda não abandonou totalmente os portugueses. Ainda existe uma réstia de esperança, uma réstia de vida, uma réstia de luz. E os responsáveis, em todos os níveis, deviam fazer tudo para que ela crescesse, fosse maximizada, para que se desenvolvesse.
À noite, qual a primeira coisa por que reza?
A primeira coisa que digo quando me ajoelho em frente ao Santíssimo Sacramento é "obrigado, meu Deus, por me trazeres à tua presença. Porque assim podes ouvir o que tenho para dizer". A partir daí, tantas vezes, descarrego sobre ele.
O que descarrega?
Olhe, uma das coisas que ultimamente me tem ocupado muito, muito, o pensamento é a situação de pessoas frágeis, vulneráveis. Falo em crianças, em jovens, em gente de todas as faixas etárias. Isso, verdadeiramente, tem-me tocado. Tem-me tocado, por exemplo, saber que pessoas mal ganham uma reforma suficiente para pagar os medicamentos, isso dói-me. Ou não conseguem uma consulta, um médico para as atender. Também me dói quando passo por Lisboa, sobretudo a altas horas, e vejo este crescendo de pessoas, de jovens sem-abrigo.
E penso muito numa pessoa que não sei quem é, ainda não tive a coragem de a abordar, mas com quem me cruzo todas as manhãs por volta das 6:45, 7:00, quando vou correr, quando estou a chegar ao Tejo, junto ao Parque das Nações. Tem todo o ar de ser alguém que vive numa tenda durante a noite, vem de mochila às costas. Ainda não tive coragem de o abordar.
Todas estas pessoas tenho presentes na minha oração. E, naturalmente, a questão da paz e a guerra que deflagra na Ucrânia e no Médio Oriente. Mas, por norma, a minha oração é muito focalizada em pessoas concretas, em rostos, em histórias que me contam. Recebo tantas mensagens... Tudo isso faço presente na minha oração.
Tem falado com políticos sobre o que vê?
Acredito muito no segredo profissional, mas creio que não cometo nenhuma inconfidência se disser que, pelos encontros que tenho com os políticos, pode acreditar que se dependesse unicamente deles, soluções para o país não faltam e vontade de as resolver também não.
Se têm o poder, a vontade e as soluções, então por que motivo não resolvem os problemas?
Provavelmente porque estamos perante questões que já nos superam. Ultrapassam-nos, no sentido de serem revestidas de alguma complexidade. O país terá de fazer uma grande reforma, uma grande mudança. Uma das coisas que a mim me toca particularmente — e não é de agora, porque sou filho de camionista, o meu avô era ferroviário, a minha mãe era doméstica, mas trabalhava na agricultura —, é o nível de salários que os nossos trabalhadores auferem ao fim do mês. Quem me dera que um trabalhador, pelo facto de ter um trabalho digno, tivesse um salário suficiente para ter uma vida digna e poder dar uma educação digna aos seus filhos, não ter de chegar ao dia 18 e começar a apertar o cinto. Como se vai resolver isso? Sei lá, não chega emanar um decreto em que se diga os vencimentos vão aumentar, é preciso criar toda uma estrutura económica.
Uma visita ao Quake e o encontro com um antigo professor
Os portugueses, disse a certa altura D. Rui Valério, sempre souberam transformar escombros e ruínas em algo maior. E é isso que é possível testemunhar ao longo da hora e meia que dura a visita ao Quake - Museu do Terramoto de Lisboa, "um projecto marcante", nas palavras do patriarca de Lisboa, que ontem visitou o local depois de uma reunião com os bispos da região Centro, Ilhas e Forças Armadas.
Entre os convidados, o padre António Martins Pereira, da diocese de Santarém, antigo professor de D. Rui Valério e, de certa forma, responsável pelo seu percurso: "Foi meu aluno e fui eu que o mandei para a Bélgica", por exemplo, onde fez uma pós-graduação em Espiritualidade Missionária no Centre International Montfortain, em Lovaina.
Presidente do Centro Desportivo de Fátima "há para aí vinte anos", António Martins Pereira orgulha-se tanto de ter contribuído para o caminho do actual patriarca de Lisboa como de ter ido buscar o Rui Vitória para o Fátima.
António Martins Pereira foi o primeiro padre a jogar futebol federado em Portugal, em 1970. "Era avançado, meti golos, muitos golos". Amigo de Pinto da Costa, esteve no casamento do filho, que casou em Santo Tirso com uma familiar sua. No copo d'água, num restaurante, "na minha mesa estava eu, o Pinto da Costa, Adriano Pinto, o Fernando Gomes e Valentim Loureiro. Veja lá o que ali estava".
Ri-se com a provocação de se tratar de um grupo nada católico e passa por cima das menções à confissão. Sem falsas modéstias, conta que jogava bem. "Era rápido e, para aquela altura, era dos mais altos, dominava de cabeça. Mas corria muito, era quase imbatível: 100 metros em 11 segundos e meio".
O ex-professor de Rui Valério confessa que "o Rui não tinha grande jeito a futebol. Era mais para o cross e para bicicleta. Quando esteve no Alentejo, vinha com os ciclistas de Faro, Beja até Fátima". Agora, as corridas do patriarca de Lisboa são outras e ainda mais exigentes.
Ao lado do Museu dos Coches, em Belém, o Quake nasceu há um ano e meio e já recebeu mais de 200 mil visitantes. O projecto nasceu há oito anos pelas mãos de Ricardo Clemente e Maria Marques. "Queríamos fazer alguma coisa na área do turismo, mas diferente do que existia e do que se estava a fazer, muita coisa na área da hotelaria. Queríamos ter um espaço com conteúdo, onde pudéssemos contar um episódio marcante da história de Portugal. E chegámos à conclusão que o terramoto de 1755 é um tema muito transversal, tanto fala sobre ciência, como sobre história, com sobre religião, e proporciona entretenimento", conta Maria Marques ao SAPO24. "Foram oito anos a preparar conteúdos e a reunir com pessoas da área, de historiadores a sismólogos".
O terramoto de 1755 terá demorado entre três e nove minutos, os testemunhos diferem. Aconteceu a 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos, e resultou na destruição quase completa da cidade de Lisboa, não só pelos abalos, mas pela devastação causada pelos incêndios que se seguiram e por um maremoto, explica o historiador e amigo da casa, André Costa.
"Na época, a grande discussão era se uma tragédia tão grande podia ser obra de Deus", diz o historiador. "Por um lado, a Igreja dizia que sim, era castigo. Por outro, alguns pensadores, especialmente os iluministas, começaram a desafiar esse pensamento: ou Deus não é bondoso ou, então, não tem poder para controlar a natureza". E este é um debate que ainda não acabou.
Comentários