Rem Koolhas plantou no meio do Porto um diamante de betão. Sobe aos céus invictos à beira da rotunda da Boavista, entre a velha estação de comboios e as bôlas de Lamego. Monumento moderno, a Casa da Música marca a cidade como o brilhante numa filigrana preciosa.
Debaixo de uma das ondas em que assenta esse geodo desenhado pelo holandês, estão guardados pequenos milagres da engenharia: carros. Um concessionário de automóveis preenche a fenda com BMW. Trata-se do stand da BMcar no Porto, ali no princípio da Avenida da Boavista, artéria ligada ao automobilismo desde os primórdios.
Para assinalar a abertura, a empresa decidiu juntar os ofícios todos e abrir um concurso de arte, decidida a entregar cinco mil euros a quem concebesse a melhor proposta para suportes inusitados: longos painéis eletrónicos na fachada e no interior do espaço e um Mini Cooper. O vencedor será conhecido a 6 de dezembro.
Miguel Von Hafe Pérez, curador e crítico de arte, foi um dos membros do júri que selecionou os seis finalistas do concurso subordinado ao tema "Liberdade", e sentou-se com o SAPO24 para explicar o que é isso de escolher arte para uma loja de carros, mas sobretudo para perceber que alternativas pode haver ao financiamento público da produção artística.
Debaixo da Casa da Música, sentados ao lado dos mais recentes (e potentes) modelos da marca alemã, partimos do concurso para falar da arte em 2020, desde os apoios aos artistas, ao mecenato e à responsabilidade social (e artística) das empresas.
A arte é sagrada, ou pode expor-se em qualquer lado?
Essa pergunta tem aí uma questão filosófica estranha — a pergunta em si é estranha. Uma das coisas essenciais que todo o processo da modernidade construiu foi um pouco essa autonomia da arte, com a criação de museus, de espaços próprios para observar a arte — porque sabemos que grande parte da arte tinha um valer de culto, quer em questões religiosas ou antropológicas, mas associada a determinados locais.
Muitas vezes encontramos a arte em espaços que não estão convencionados e isso faz parte da nossa contemporaneidade.
Essencialmente a partir dos anos 60 do século passado, depois desta estabilização da autonomia da arte, aquilo a que assistimos foi a um estilhaçar das convenções e vemos muitos artistas, por exemplo os da Land Art, que vão fazer obras de arte na natureza; ou vemos muitos artistas que criam os seus próprios espaços de exposição, originando aquilo a que se chamou (e hoje ainda se chama) espaços independentes; e assistimos muito a uma sacralização, se quiser, de elementos que eram criados em contextos de rua, tornando-se eles também obras de arte — o exemplo maior serão os artistas como o Keith Haring, que criavam obras nas paredes e nos metropolitanos de Nova Iorque e que a partir de certa altura entraram no circuito artístico.
Hoje, com a profusão, por vezes até um bocadinho excessiva deste fenómeno da arte urbana, essa questão do local da exposição já começa a ser menos importante. Muitas vezes encontramos a arte em espaços que não estão convencionados e isso faz parte da nossa contemporaneidade.
Agora, saber se uma obra de arte é sagrada ou não... Isso é uma questão de fé, que se associa ao sagrado. Uma obra de arte é certamente uma parte significativa e estruturante daquilo que somos enquanto humanidade — tendo ou não alguma relação com a fé e com a religião ou o poder, qualquer que ele seja. Com a autonomização da obra de arte a modernidade impôs uma autorreferencialidade, deixando de estar ligada a um poder político ou religioso.
Mesmo no contexto das obras de arte religiosas olhamos para elas enquanto arte — se olharmos para uma obra da renascença, com certeza 95% tem motivos religiosos por trás, mas isso não quer dizer que a obra de arte se autodefina exclusivamente pelos motivos que trata, mas pelo que nos ensina, até pela maneira de olhar o mundo. E os artistas muitas vezes souberam até, de uma forma mais ou menos escandalosa, tratar temas ditos sagrados de forma inovadora.
Mas há a necessidade de traçar uma fronteira entre a democratização da arte e a sua banalização?
Isso é também um velho tema da modernidade — tratado de forma extensiva pelo Theodor Adorno, com a famosa noção da indústria cultural — e é um equilíbrio sempre muito difícil de fazer. Repare, ainda hoje se discute muito isso, na medida em que por vezes as pessoas acusam os museus de estarem muito reféns dos números de visitantes, de poderem chegar a um certo populismo na sua escolha artística, porque querem ter cada vez mais visitantes e precisam de receitas, e aquela que é a qualidade intrínseca de projetos que por vezes são mais difíceis, que não atraem tanto público.
Esta é a pedra de toque, mesmo em termos da política institucional e da política museológica hoje: como manter esse equilíbrio, entre conseguir chamar o maior número de pessoas para os museus, sem deixar de lado os quesitos de qualidade.
A arte não oferece respostas, se o fizer deixa de ser arte.
Agora, a questão da democratização da arte vai muito para além disso: fundamentalmente, para mim passa pela educação. É muito diferente quando, em certos países (talvez mais num contexto nórdico), percebemos que desde os quatro anos as pessoas têm um hábito de contacto regular e direto com a arte, com as idas aos museus ou com a música — basta ver que no Japão começaram a aparecer imensos músicos importantes, instrumentistas, exatamente porque as crianças a partir dos quatro anos aprendem e têm contacto direto com instrumentos. Aí torna-se mais fácil essa expressão de maiores profissionais no setor.
A presença da arte na escola poderia ser mais constante, e, também, pelos meios de difusão que hoje em dia são mais democráticos, como seja a Internet: a rede tem todo aquele lado positivo de acesso à cultura e a dados — há vinte anos eu esperava meses por uma revista para ler sobre qualquer coisa que me interessasse e hoje tenho 0,01 segundos de demora para aceder um documento qualquer de uma universidade qualquer. Depois há o lado negativo, que também já conhecemos, estes disparates que por vezes acontecem no contexto das chamadas redes sociais.
Portanto, temos de nos tornar cada vez mais críticos perante aquilo que vemos, isso sim. Mas a arte ensina-nos exatamente isso, a boa arte — não a sagrada, a boa arte — está permanentemente a colocar questões. Porque a arte não oferece respostas, se o fizer deixa de ser arte, é sociologia, é o que quiser. Aquilo que a arte nos deve trazer é exatamente um olhar diferenciado sobre o mundo e ajudar-nos a saber ser mais críticos.
Por vezes, também, como se viu ao longo da modernidade, isso aconteceu por muitos meios: pode ser o choque, como o famoso murro no estômago dos dadaístas. É esse questionar da realidade que a arte consegue trazer para a criação de um espectador mais crítico.
Esse desafio, confronto de ideias, pode colidir com os objetivos de uma marca?
Pode, com certeza, mas a associação de marcas a contextos artísticos é algo que acontece já há muito tempo. De alguma forma, se quiser também extrapolar, já que falou no sagrado, não eram marcas, mas eram estados e religiões que sempre se suportaram na visão dos artistas para poder difundir um determinado contexto ideológico ou político.
Quando se aprendia História da Arte, falava-se por exemplo no Românico e já se falava no Românico no sentido em que aquela presença escultural nas igrejas era um pouco para essa literacia cristã, que podia ser observada por todos. Iam aprendendo: aquele é o São Pedro, aquele é o São Paulo, etc. — havia sempre essa necessidade de comunicação.
No contexto de marcas comerciais, é algo indissociável de alguns projetos muito interessantes, na contemporaneidade. Lembro-me, por exemplo, que um dos artistas mais reconhecidos do contexto artístico do século XX, o Andy Warhol, começou a carreira profissional exatamente a trabalhar para marcas, ele trabalhava quer como curador de espaços de moda, mas também, essencialmente, como ilustrador.
Portanto, essa associação de artistas com marcas é algo que acontece já há muito tempo e a própria BMW tem uma tradição importante nesse contexto, desde os anos 1970, havia carros desportivos que eram pintados por artistas plásticos. Essa associação é quase natural, como é a associação mecenática em muitas outras coisas, como seja a música: sabemos muitas vezes que há orquestras financiadas por marcas.
Ao nível deste universo às vezes um bocadinho flutuante da publicidade, que por vezes pode ter uma marca mais ou menos artística, lembramo-nos também da presença fundamental, nos anos 80 e 90 do século passado, das campanhas da Benetton, que se tornaram irónicas dessa transcendência da necessidade única de comunicar uma marca e isso fazer pensar sobre outras questões social e politicamente relevantes.
E os finalistas escolhidos para aqui expor são publicidade, ou houve o cuidado de não o serem?
Isto não é uma exposição. Numa exposição, eu vou à procura de obras para criar um discurso expositivo. Isto é um concurso e nós não saberíamos à partida se as respostas iam ser toas maravilhosas e brilhantes — podiam ser todas medíocres, um concurso tem esse risco.
O que é interessante nas propostas, apesar de tudo, é esse cruzamento de universos de pessoas que vêm de áreas muito diferentes: ou estritamente artistas, ou pessoas que trabalham mais ao nível do design, e algumas até com experiência daquilo a que se chama hoje arte de rua. Esta adaptação dos diversos universos a esta proposta específica creio que tem um resultado final bastante interessante.
Já fui jurado em centenas de concursos e por vezes ficava muito frustrado. Principalmente em concursos estritamente de pintura, que hoje são cada vez mais raros, ficava muito frustrado quando nós íamos para um sítio qualquer onde estavam cem pinturas, porque é muito injusto para um júri, pode estar ali uma pintura de um tipo interessante que esteja num momento mau, ou o contrário. Hoje, como há relativamente poucos prémios em Portugal, acho que a estrutura dos concursos tem de ser bem pensada, para se poder aceder a maior qualidade e ter a garantia de que se está a premiar bem.
É sempre muito difícil ajuizar, mas não é impossível.
Foi necessário pensar a coabitação entre os projetos selecionados e estes automóveis?
A questão não se punha sequer, porque isto não pretende ser um concurso de arte exclusivamente; se assim fosse, a BMcar arrendava uma sala num museu ou noutro contexto para poder mostrar essas obras. Portanto, nessa convivência a interação entre a imagem criada e os objetos pré-existentes é também uma condição de influência mútua.
Por isso, como é um concurso lançado por uma marca, é natural que essa evidência se torne necessária no contexto expositivo — e se repararmos nos projetos, a linguagem proposta pelos artistas pode passar por um contexto divergente, mas que de alguma forma pode apontar para esta realidade do universo automobilístico, e, noutros casos, essa relação é até mais evidente.
Fazem falta mais concursos deste género?
Fazem falta exatamente porque todas as oportunidades que os artistas tenham para ver o seu trabalho reconhecido — e ser reconhecido não é só uma questão simbólica, é também material — são sempre muito importantes. E são ainda mais importantes quando são criados num contexto de grande dificuldade para o setor da cultura e para os artistas em particular.
Todos sabemos as questões que esta pandemia levanta em termos económicos e de sobrevivência da cultura e estes pequenos sinais são muito importantes. Acredito que o setor automóvel também esteja a sofrer. Mas quando estas empresas, que apesar de tudo ainda têm essa capacidade, convocam para o seu trabalho a cultura, e neste caso os artistas, premiando-os, é um sinal muito importante da solidariedade que deve haver na sociedade.
Porque não há mais? Falta de educação, medo de propostas que "ataquem" o negócio?
Não, não se trata disso. É uma questão estritamente cultural, exatamente porque os países do sul da Europa, desde o tempo da Revolução Francesa, sempre estiveram muito ligados a esse modelo mais "estatal" da necessidade de intervenção ao nível cultural. Os países do norte, enfim — podemos até discutir questões matricialmente religiosas ou não, a diferença entre os católicos e os protestantes —, têm uma intervenção da sociedade civil na cultura muito mais continuada e com uma tradição muito maior.
Infelizmente, aqui em Portugal, já desde o pós-25 de Abril, sempre se tentou também que a famosa lei do mecenato tivesse capacidade de atração para o investimento privado, que apesar de tudo nunca se concretizou e isso mostra bem a dificuldade deste país em atrair o setor privado para o universo da cultura — sendo a grande exceção em Portugal a Fundação de Serralves, que é um modelo de gestão mista entre privados e o Estado.
Antes do 25 de Abril, a iniciativa cultural estava nas poucas ações do Estado e na Fundação Gulbenkian.
Mas, se virmos bem, mesmo o mecenato ligado a instituições do Estado, que a certa altura foi bastante importante — como no Teatro D. Maria, o S. Carlos —, teve um período em que parecia que ia ser algo estabilizado, mas de facto está sempre ali num limbo periclitante, porque a própria lei do mecenato não é tão clara e tão efetiva como se calhar devia ser.
Portugal também tem uma história singular, não nos podemos esquecer de que atravessámos quase todo o século XX debaixo de uma ditadura, em que praticamente o Estado se demitiu de ter essa intervenção cultural — e, quando tinha, era uma intervenção censória.
Quando apareceu, em 1957, a Fundação Gulbenkian, o Estado respirou de alívio e disse "bom, deixamos a cultura entregue a esta instituição, aí não entramos muito com censuras, porque também foi uma sorte este senhor ter decidido que vinha para Portugal" — portanto, ficou tudo muito centralizado, esta iniciativa cultural, nas poucas ações do Estado e na Fundação Gulbenkian.
Depois do 25 de Abril, esperar-se-ia essa maior intervenção, que, como digo, se cristalizou — e bem! — na Fundação de Serralves, mas falta replicar esse modelo e falta que as próprias empresas tenham mais ativamente esse papel, embora já haja algumas com um nível de engajamento cultural bastante elevado: bancos, empresas de construção (em Braga, por exemplo, a dst tem uma atividade muito importante). Há algumas exceções, mas falta este lastro histórico e cultural e falta um incentivo do Estado, que muitas vezes diz que dá, dá, dá, mas depois vai-se a ver e ou dá pouco ou nem dá nada — esse incentivo não devia ser só fiscal, podia ter até outro tipo de visibilidade.
A cultura é muito mais do que estes protagonistas cimeiros.
Mas esperemos que nos próximos tempos esse lado solidário — porque nestes períodos de confinamento as pessoas percebem quão importante a cultura é: as pessoas começaram a ter uma noção mais exata do que é não poder ir a um concerto, ver um espetáculo, ir ao cinema, mas para isso é preciso pôr a máquina funcionar. Há muita gente com muitas, muitas dificuldades na cultura. E percebemos que a cultura é muito mais do que estes protagonistas cimeiros, há toda uma base que depois cai também se estes protagonistas não tiverem atividade.
Existe uma responsabilidade partilhada no apoio aos artistas, entre as marcas que se promovem à boleia da arte? Por exemplo, nos festivais, que agora não existem...
Aí estamos a falar de política cultural pura e dura. Não quero entrar por aí, mas acho que as marcas é que deveriam fazer um bocadinho esse esforço para se reinventar — veja como os artistas reinventaram as formas de comunicar, através da internet. Portanto, as marcas, se tiverem imaginação e se forem produtivas, podem ter essa capacidade de, não tendo o apoio específico para três ou quatro dias num festival, ver como durante esta fase se podem articular para essa criação de conteúdos, garantindo essa presença mais constante de pessoas que constroem visões do mundo fundamentais — sem os artistas, ficamos mais pobres.
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